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A avaliação no Brasil

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2 A (IN)COERÊNCIA HISTÓRICA DO SISTEMA ESCOLAR BRASILEIRO

2.3 A avaliação no Brasil

Para autores como Paiva (2015), é certo que historicamente a avaliação na educação brasileira carregou consigo o caráter seletivo e classificatório desde seu início no século XVI, visto que sua finalidade desde a colonização foi interpretada como sendo a de promover ou reprovar, típica de um sistema dual de educação. Essa visão equivocada da avaliação no Brasil atravessou cinco séculos e ainda resiste.

Portanto, as orientações neoliberais a partir da década de 1990 não são as únicas responsáveis pelos problemas da avaliação no Brasil. No entanto, não há como ignorar o cenário das avaliações internacionais nas últimas cinco décadas, nem o impacto das políticas neoliberais no sistema escolar brasileiro.

Bauer (2013) ressalta, porém, que os debates internacionais acerca do uso de informações avaliativas para subsidiar na elaboração de políticas públicas não são recentes. Desde meados do século XX essas discussões são intensas. Inclusive, nos Estados Unidos os dados avaliativos são utilizados desde a década de 1960. No entanto, até o início da década de 1990, o Brasil ainda não se utilizava desse expediente de exames em larga escala, que deveriam possibilitar “[...] planejamento e adequações das políticas públicas educacionais”, conforme apresentam Paula e

Messina (2015, p. 5).

A relação do Brasil com os exames em larga escala se iniciou nos anos de 1990. A Conferência Mundial de Educação para Todos – financiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), pelo Fundo das Nações Unidas para o a Infância (UNICEF), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial – no ano de 1990, em Jomtien (Tailândia), estabeleceu-se como um marco para as políticas que se seguiram na educação brasileira. O Brasil e mais oitos países se responsabilizaram em aplicar os compromissos acordados na Declaração de Jomtien.

Para Shiroma, Moraes e Evangelista (2011), as recomendações provenientes de Jomtien e de outros fóruns sob a promoção de organismos multilaterais propunham medidas que, de uma forma ou de outra, induziam à redução dos investimentos dos países signatários em educação, à transição do Estado administrador e provedor para o modelo do Estado avaliador e à gradativa privatização do sistema escolar.

A quantidade de exames em larga escala que se seguiram no Brasil oferece uma noção do impacto da prática de Estado avaliador: o SAEB, criado em 1990 e só aplicado regularmente a partir de 1995; o ENEM, em 1998; o ENCCEJA, em 2003; o Exame Nacional de Desempenho (ENADE), em 2004; a Prova Brasil, em 2005; e a Provinha Brasil, em 2008.

Com esse retrospecto, Cury (2006) já apontava que tal é a investida do governo brasileiro que as ações governamentais parecem demonstrar interesse em construir um Sistema Nacional de Avaliação e não o Sistema Nacional de Educação, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).

Os exames estandardizados, sob a alegação de subsidiar a melhoria na qualidade de ensino, estão longe de favorecê-la, pois seguem a lógica de mercado e não de educação: primeiro, porque promovem a meritocracia – como os vestibulares tradicionais já o faziam; segundo, porque possuem problemas estruturais e de concepção que não permitem subsidiar para a melhoria; terceiro, porque impõem o ranqueamento de escolas sob o artifício de que isso leva à melhoria da qualidade.

O próprio ranqueamento é um instrumento de controle social dos mais ardilosos, como defende Afonso (2009). Além de não fornecer subsídio às escolas e universidades para identificarem onde estão os problemas, acabam por imprimir a lógica do insuficiente. Afinal, qual a colocação definiria uma escola como “suficiente”,

uma vez que não é estipulado critério que indique a qualidade ou sua falta. Seria essa falta de critério explícito e transparente a razão de ser utilizado por parcela significativa da sociedade apenas a posição nos rankings criados pela imprensa, a partir das médias divulgadas pelo INEP?

Basta observar, por exemplo, a lógica perversa de parte da mídia em qualificar poucas escolas e desqualificar as demais, a ponto de oferecer suspeitas quanto às suas intenções. Em um universo de milhares de escolas avaliadas, a mídia destaca normalmente “as dez melhores escolas brasileiras” ou “as cem melhores”, por exemplo. Então as demais unidades escolares estão fora da qualidade? Além disso, desde quando a concentração de alunos com melhor capital cultural é que define a qualidade da escola? Dessa forma, ao se valer de um critério escuso qualquer, tanto os rankings quanto uma parte da mídia deixam a maioria das unidades escolares sob a suspeição da má qualidade.

Ignoram, porém, que a avaliação em larga escala é um instrumento próprio para avaliação de redes, sistemas. No Brasil, as avaliações em larga escala têm sido equivocadamente utilizadas para “avaliar” as unidades escolares, como se tornou o caso do ENEM ao possibilitar a divulgação das notas em forma de rankings. Para Freitas (2014) e para Oliveira (2013), trata-se de uma inobservância da função de cada nível de avaliação.

No neoliberalismo, trabalha-se com o discurso conveniente para cada momento. Quando a intenção é justificar a abertura total do mercado, a culpa pelas crises recai sobre as ações dos governos não neoliberais. No entanto, quando a intenção é promover a derrocada da educação pública, o neoliberalismo se legitima pelo discurso de que a má qualidade na educação (pública) é responsável pelas crises econômicas, conforme denunciam Nascimento e Carneiro (2016).

Valendo-se desse último discurso, com a proposta de “avaliar para avançar”, implantou-se um sistema de avaliação de natureza meritória. Esse tipo de avaliação tem apresentado os seus avanços, bem como alguns problemas sistemáticos.

Desses problemas, destacam-se dois: primeiro, cria novas preocupações relacionadas à criação de classificações e rankings por pessoas e instituições que, ao ignorarem os indicadores contextuais e até alguns alertas do INEP, tornam seu conhecimento da dinâmica educacional e suas intenções questionáveis; e, segundo, é demasiadamente limitado, dentre outras razões porque não permite que a própria unidade escolar saiba onde intervir para solucionar suas deficiências. Logo, o único

sistema empregado pelo governo permite saber se há problemas, mas pouco contribui na busca por soluções.

Destaca-se, porém, que no Brasil há tendências que vão além da lógica dos exames estandardizados, especialmente quanto ao entendimento de que a avaliação deve ser utilizar de instrumentos próprios para oferecer subsídio aos agentes avaliados. Assim, a avaliação assume de fato a natureza pedagógica, ao invés de classificatória ou punitiva.

Mais do que apenas definir avaliação, Belloni e Belloni (2008) lançam também os fundamentos para que a avaliação atenda a sua razão de existir:

Avaliação, seja da aprendizagem, seja de uma instituição ou de um sistema, não é um fim em si mesmo. Por isso, antes de qualquer análise sobre alternativas ou modelos, é necessária a definição clara dos objetivos e finalidades da avaliação. (BELLONI; BELLONI, 2008, p. 14-15).

Esses autores esclarecem ainda que esses objetivos devem visar à continuidade do processo de desenvolvimento:

[...] Tecnicamente, avaliação refere-se a procedimentos que buscam identificar a distância em relação ao alvo, que são os objetivos expressos pelos indicadores adotados. A avaliação que busca apenas comparar indivíduos entre si, ou com um grupo de referência, desfoca o objetivo da avaliação. (BELLONI; BELLONI, 2008, p. 15).

Por sua vez, Boggino (2009) lembra que a avaliação ao longo da história se prestou tanto a funções quanto a modelos diversos, bastante atrelados ao contexto da sociedade que a empregava:

Ao longo da história o conceito de avaliação tem assumido diversas acepções, que não são fruto do acaso, mas estão sim intimamente associadas a diferentes posturas ideológicas, epistemológicas, psicológicas e, consequentemente, pedagógicas. (BOGGINO, 2009, p. 80).

Acerca da natureza da avaliação, Boggino (2009) ressalva, porém, que “a avaliação é algo benéfico e inevitável no processo de ensino. Benéfico porque possibilita a realização de intervenções pedagógicas ajustadas às possibilidades de aprendizagem e conhecimento dos alunos [...]” (BOGGINO, 2009, p. 82, grifos do autor).

É bem verdade que historicamente o aluno foi encarado como o agente a ser avaliado. Nas últimas décadas, acentua-se a tendência de superação desse

paradigma. Essa mudança de perspectiva acerca da avaliação levou à inclusão de outros agentes nesse processo de avaliação. De certa forma, é um reconhecimento de que o aluno não é o único envolvido no processo ensino-aprendizagem.

Isso porque no processo escolar se encontram gestores (tanto na esfera institucional quanto governamental), professores, alunos, pais, servidores. Naturalmente que há a possibilidade de outras pessoas e instituições estabelecerem parceria com a escola. Nesse caso, elas também podem ser incluídas no processo avaliativo.

Embora com uma prática por vezes contraditória, o Ministério da Educação identifica, nessa nova perspectiva de avaliação, indícios de uma mudança positiva do paradigma educacional:

Ao focalizar o processo ensino-aprendizagem como o eixo do trabalho da escola e, portanto, foco do trabalho do Conselho Escolar, tende-se a identificar apenas um dos elementos básicos desse processo: o estudante. E, mais que isso: busca-se identificar apenas o produto do processo educativo demonstrado pelo estudante. Ocorre que, numa educação emancipadora, cuja qualidade é socialmente referenciada, a prática educativa inclui a aprendizagem do estudante, mas não se restringe a ela. (BRASIL, 2004, p. 34).

Essa mudança de perspectiva avaliativa representa um rompimento com uma limitação conceitual. Esclareça-se, pois, que a avaliação na prática deve se pautar em fundamentos teóricos bem delineados.

Não é por acaso que essa perspectiva ganha força no Brasil. Com a redemocratização do Pais em 1988, aos poucos a cobrança passou a ser por políticas públicas que promovam a democratização em todos os setores. Logo, por ser o sistema escolar – ao menos no senso comum – um mecanismo de democratização e, ao mesmo tempo, representativo da democracia, passou a receber cobranças nesse sentido.

Porém, sob o artifício de propiciar a melhoria e a democratização da educação, as avaliações em larga escala seguem em outro sentido, pois têm acentuado a natureza classificatória e mercantilista no sistema escolar. Porém, bem adverte Vianna12:

A avaliação de um sistema educacional resulta de um conjunto de ações que não pode ser improvisado. A avaliação tem como infraestrutura uma

12

Doutor em educação pela PUC/SP e pesquisador da Fundação Carlos Chagas. Autor de obras como “Introdução à avaliação educacional”.

teoria, que serve de base para orientar a linha de desenvolvimento da investigação. (VIANNA apud GADOTTI, 2000, p. 197).

Independentemente de quem esteja envolvido, e de seus possíveis interesses pessoais ou de classe, a avaliação em larga escala deve realmente ter como objetivo o aperfeiçoamento dos sistemas, das instituições que os compõem e da aprendizagem dos alunos. Daí Gadotti (2000, p. 198) ser taxativo: “se não for para melhorar o desempenho dos trabalhadores em educação, das escolas e do sistema, a avaliação, por si mesma, não tem sentido”. Nesses termos, a avaliação em larga escala não deveria funcionar propriamente em formato de exame, ou seja, para selecionar, excluir, classificar e desclassificar; mas para diagnosticar e subsidiar as melhorias.

Assim, este capítulo buscou desvelar a natureza desigual e elitista ao longo da história da educação brasileira, em todos os níveis de ensino, acentuadamente o ensino médio e o superior. Trouxe também o contexto atual dos exames em larga escala, que apregoam a igualdade formal e a concorrência, segundo orientação político-econômica do neoliberalismo.

Identificou-se neste capítulo que as desigualdades são o aspecto central na relação com o sistema escolar brasileiro, com o neoliberalismo e com as avaliações em larga escala. As desigualdades no sistema escolar brasileiro remontam à origem deste. Por sua vez, no neoliberalismo as desigualdades lhe são inerentes, porquanto a ideologia neoliberal as identifica como essenciais ao desenvolvimento econômico, seu objetivo central. Do mesmo modo, a relação entre as desigualdades e os exames em larga escala é direta Isso porque, sob o pretexto de melhorar a educação, esses exames mantêm as desigualdades, apenas inserindo a lógica mercadológica e classificatória.

CAPÍTULO 3:

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