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Intencionalidades expressas em documentos oficiais

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3 O ENEM E A EDUCAÇÃO PÚBLICA NO DISTRITO FEDERAL

3.1 O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)

3.1.1 Intencionalidades expressas em documentos oficiais

A Portaria MEC nº 438 de 28 de maio de 1998 instituiu o ENEM e apresentou suas intencionalidades expressas:

Art. 1º - Instituir o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, como procedimento de avaliação do desempenho do aluno, tendo por objetivos: I - conferir ao cidadão parâmetro para autoavaliação, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho; II - criar referência nacional para os egressos de qualquer das modalidades do ensino médio;

III - fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior;

IV - constituir-se em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes pós- médio.

Nesses termos, o desempenho do aluno foi o pretexto para a criação do Exame, comprometendo-se com uma natureza mais formativa, uma vez que serviria de “parâmetro para a autoavaliação”, de “referência nacional para os egressos” e para “fornecer subsídios”.

O inciso IV até apresentava certa preocupação com a realidade de parcela significativa dos estudantes da escola pública, que eram os cursos profissionalizantes, embora a previsão de acesso só os contemplasse após a conclusão do ensino médio. Destaca-se que na teoria bourdiesiana, os cursos que permitam o acesso mais precoce ao mercado de trabalho se tornam preferência dos estudantes oriundos das classes populares, pois estes necessitam contribuir com a renda familiar e/ou a própria subsistência (Nogueira; Nogueira, 2016).

Todavia, os incisos I, II e III apresentavam objetivos um tanto despretensiosos, obscuros e/ou genéricos demais. Assim, os quatro objetivos arrolados na Portaria MEC nº 438/1998 receberam retoques nas mudanças que ocorreram em 2009. E, também para empoderar e legitimar o Exame, os objetivos aumentaram de 4 para 7, por meio da Portaria INEP nº 109, de 27 de maio de 2009:

Dos Objetivos

Art. 2º Constituem objetivos do Enem:

I - oferecer uma referência para que cada cidadão possa proceder à sua autoavaliação com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mundo do trabalho quanto em relação à continuidade de estudos;

II - estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho;

III - estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes, pós-médios e à Educação Superior;

IV - possibilitar a participação e criar condições de acesso a programas governamentais; V - promover a certificação de jovens e adultos no nível de conclusão do ensino médio nos termos do artigo 38, §§ 1º e 2º da Lei nº 9.394/96 - Lei das Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB);

VI - promover avaliação do desempenho acadêmico das escolas de ensino médio, de forma que cada unidade escolar receba o resultado global;

VII - promover avaliação do desempenho acadêmico dos estudantes ingressantes nas Instituições de Educação Superior;

O que ocorreu com o inciso III é um bom exemplo do empoderamento do Exame. O inciso III da revogada Portaria MEC nº 438/1998 deixou, por exemplo, de “fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior” e passou a, no inciso III da Portaria INEP nº 109/2009, “estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes, pós-médios e à Educação Superior;”. Deixou, portanto, de oferecer subsídio e se tornou em exame de seleção

a ser adotado na modalidade alternativa ou complementar para uma quantidade maior de cursos do que previsto anteriormente.

Além do mais, essa nova redação do inciso III e a redação do inciso VI deturparam completamente o objetivo inicial do Exame, que passou a gerar consequências graves ao sistema escolar. Dentre esses problemas, estavam a possibilidade de criação de rankings das escolas; a reorientação das políticas educativas nas unidades escolares, inclusive de escolas públicas que atendem a comunidades carentes, apenas para o Exame; e a omissão do Estado de ampliar aos estudantes desprivilegiados de capitais a possibilidade de cursarem o ensino médio integrado, o que retira de parte dos “excluídos da periferia” as expectativas quanto à escola, assim como ocorria com os “excluídos do interior” na “escola conservadora” francesa, apresentados por Bourdieu (2014).

Além disso, esses incisos permitiram a imposição sobre a escola pública da lógica própria das escolas particulares, onde o ensino médio é fundamentalmente etapa que precede o acesso ao ensino superior. Para legitimar tal lógica no espaço público, fortaleceu-se a ilusão de que o acesso ao ensino superior é possível a todos os estudantes desse espaço. Porém, políticas públicas que velam as desigualdades não são recentes na educação brasileira. De acordo com Frigotto (2003), as políticas públicas que se orientam pelos modelos que favorecem as classes sociais privilegiadas são marca da dualidade que desde a colonização está presente da educação brasileira.

A própria proposta apresentada à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) para que o ENEM unificasse os processos seletivos de todas as Instituições Federais de Ensino Superior, documento que contém suas controvérsias, apresenta já no primeiro parágrafo a verdadeira intencionalidade não apenas do ENEM, mas também de todo e qualquer exame de seleção:

Os exames de seleção para ingresso no ensino superior no Brasil (os vestibulares) são um instrumento de estabelecimento de mérito, para definição daqueles que terão direito a um recurso não disponível para

todos (uma vaga específica em determinado curso superior). O

reconhecimento, por parte da sociedade, de que os vestibulares são necessários, honestos, justos, imparciais e que diferenciam estudantes que apresentam conhecimentos, saberes, competências e habilidades consideradas importantes é a fonte de sua legitimidade. (INEP, 2009, grifo nosso).

Por essa proposta, o ENEM substituiria esses exames vestibulares, que serviam para “seleção”, por meio do “estabelecimento de mérito”, porque o acesso ao ensino superior é um “recurso não disponível para todos”. Enfim, nesse primeiro parágrafo está o reconhecimento oficial, ainda que não “intencional” por parte do INEP, dos principais elementos que caracterizam os exames seletivos, tal qual apontam Bourdieu e Passeron (2012).

Além disso, o que essa autarquia federal apresentou como exemplo de democratização no documento diz respeito a atender aos interesses dos “estudantes com mais condições de se deslocar pelo país”, e não de se criar oportunidades para aqueles que não possuem tais condições econômicas. Logo, o documento acabou por associar democratização com a melhoria de oportunidades apenas para os estudantes que já possuem condições econômicas para se deslocarem de cidade ou estado.

Após muitas polêmicas, o MEC decidiu finalmente pôr fim aos rankings do ENEM com os resultados por escola. Dessa forma, publicou-se no Diário Oficial da União a Portaria MEC nº 468/2017. Nessa Portaria, já não aparece a “promoção” da avaliação das escolas de ensino médio, a fim de coibir, assim, a publicação dos rankings das escolas, que incitavam alguns transtornos, como o da disputa entre escolas – como exemplificam Paula e Messina (2015) – e até a prática fraudulenta por escolas particulares, com artimanhas jurídicas e comerciais – como denunciada em diversas reportagens, dentre as quais se destaca a de Prado (2014).

Ao ignorarem os processos didático-pedagógicos das escolas e ao velarem a influência dos capitais econômico, social e cultural dos estudantes, os rankings acabavam por atribuir o desempenho dos estudantes exclusivamente ao trabalho da escola. Dessa forma, fomentava-se o senso comum de que as melhores colocadas eram as que desempenhavam o melhor processo ensino-aprendizagem.

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