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Os exames e suas lógicas/intencionalidades costumeiras

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1 SISTEMAS ESCOLARES DESIGUAIS: A PENOSA AQUISIÇÃO CULTURAL

1.4 Os exames e suas lógicas/intencionalidades costumeiras

Para a compreensão do que ocorre no sistema escolar é imprescindível que se destaque a sua não neutralidade. Do investimento à avaliação, as escolhas do sistema de ensino não são desinteressadas, seguem uma lógica proposital que favorece as classes privilegiadas.

Conforme revelam Bourdieu e Passeron (2012), os exames de seleção e de classificação exercem papel estratégico nas sociedades, nas instituições e sistemas escolares. Os autores apontam que o predomínio do exame nas práticas dos agentes e instituições se dá por algumas razões, dentre as quais a de disseminar o protótipo da mensagem pedagógica – tal qual a disputatio fazia na Universidade Medieval e o pa-ku-wen operava na China das épocas Ming e Ch’ing – e a de legitimar a exclusão daqueles que não são autorizados a prosseguir estudos.

Para comprovar sua tese de que o exame demarca a mensagem pedagógica, os autores citam a dissertação à francesa, que requer regras de escrita e de composição textual, dentre outras, que apontam para a ambição intelectual das instituições, assim como ocorreu em outros países em épocas remotas. Nesse raciocínio, os autores acabam por demonstrar que “[...] o exame exprime, inculca, sanciona e consagra os valores solidários com uma certa organização do sistema escolar, com uma certa estrutura do campo intelectual e, por meio dessas mediações, com a cultura dominante” (BOURDIEU; PASSERON, 2012, p. 172).

Bourdieu e Passeron (2012) situam a origem do exame, com a lógica atual, a partir da modernidade. Assim, defendem que o fato de a mensagem pedagógica em tese corresponder às exigências do sistema escolar e não do sistema econômico contribui para que, com aparência de seleção técnica, a seleção social seja dissimulada, legitimando dessa maneira a reprodução das hierarquias sociais.

Dessa forma, Bourdieu (2014) assinala que os exames são mecanismos que legitimam as práticas da reprodução social. Isso porque os exames são empregados com o respaldo do sistema escolar no intuito de que a escola se mantenha conservadora e, assim, reproduza as desigualdades em suas práticas.

Uma vez demonstrada a finalidade de instituir a mensagem pedagógica, Bourdieu e Passeron (2012) desvendam como o exame legitima a exclusão. Para isso, esclarecem de antemão que a exclusão não é atributo exclusivo dos exames,

ao apontar que, nos sistemas de educação desiguais, ocorre seleção social durante todo o processo escolar dos indivíduos, portanto da alfabetização à universidade.

Essa seleção anterior aos exames é classificada pelos autores também como social porque, dadas as circunstâncias materiais e simbólicas adversas, parcela significativa dos estudantes originários das camadas populares sucumbe pela elevada taxa de autoeliminação acentuadamente no ensino secundário. Aos originários dessas classes desprivilegiadas que persistem no ensino secundário os autores denominam de “adiados”, uma vez que são grandes as chances de serem eliminados pelo exame, ao mesmo tempo em que os denominados “acolhidos” tendem a ser classificados, aprovados.

No caso brasileiro, a eliminação sem exame ocorre em todas as fases, mas seus efeitos ficam bastante evidentes ao final da educação básica. Em 2014, por exemplo, verificou-se que 43,3% dos jovens de 19 anos não tinham concluído o ensino médio, segundo Relatório (IBGE, 2015).

Não bastasse isso, os estudantes pobres que porventura conseguem concluir o ensino médio enfrentarão a verdade adversa dos exames, mais especificamente do ENEM. Nesses termos, estudantes desprivilegiados que superaram a condição mais efetiva de eliminação, que é a origem social, encontram ainda no exame outro dispositivo de eliminação também severo (BONNEWITZ, 2003).

No resultado da edição de 2015 desse Exame (INEP, 2016), as escolas com as melhores médias concentravam corpo discente com os indicadores de nível socioeconômico (INSE) “alto” e “muito alto”. Por sua vez, as escolas que concentravam estudantes de INSE “baixo” e “muito baixo” figuravam entre as de piores médias.

Conforme esclarecem Bourdieu e Passeron (2012; 2015), o sucesso escolar diz respeito muito mais às condições de vida do estudante, à disponibilidade econômica e cultural da família e à complexidade de suas relações sociais do que a fatores como o dom ou a vontade pessoal do estudante. No entanto, por meio dos exames, o sistema escolar tende a minimizar os fatores mais influentes do rendimento estudantil e a enaltecer as supostas habilidades naturais, legitimando as desigualdades.

Destaca-se que, para Bourdieu e Passeron, o êxito escolar dos estudantes no sistema escolar francês se devia a dois fatores em especial: o nível de competência

linguística ante a classe social de origem e a relação entre a possessão de um capital cultural normalmente herdado da família.

Bourdieu e Passeron (2012; 2015) orientam que, para compreender essas relações, tem que se levar em conta dois conceitos, o grau de seleção e o de capital cultural de natureza linguística. O grau de seleção diz respeito à seleção e distinção existente entre estudantes, normalmente de diferentes sexos e origens sociais.

O capital cultural de caráter linguístico, por sua vez, diz respeito à habilidade de manejo da linguagem, especialmente a linguagem mais erudita e suas estruturas mais complexas. Na verdade, a competência linguística confere enorme vantagem aos estudantes oriundos de classes privilegiadas social, econômica e culturalmente. Essa vantagem se caracteriza desde a alfabetização, e se manifestará ainda mais decisiva em provas que a exijam acentuadamente, como a redação. Além disso, sabe-se que as variações de capital linguístico se dão devido às diferentes origens sociais. Logo, o sistema escolar acaba por reproduzir nos processos educativos a hierarquia social.

Como ocorria com a maioria dos estudantes franceses oriundos das classes populares, cujas limitações tal qual a de natureza linguística os impediam de passarem nas etapas de seleção da carreira escolar, essa realidade é observada atualmente no Brasil. Isso porque os estudantes das classes de baixa renda e de baixo capital cultural são submetidos a uma superseleção. Grande parte desses estudantes é contida nas mais diversas etapas: antecedem aos exames, abarcam- nos e continuam mesmo após estes.

Assim, os estudantes pobres que conseguem seguir adiante nos estudos passam por um processo de alta seleção entre os de seu meio social. Esses representam os poucos que conseguiram se adaptar e incorporam o habitus próprio das classes dominantes. É, portanto, um processo de superseleção a que os estudantes socialmente desprivilegiados são submetidos.

Em um sistema escolar seletivo e excludente, quanto maior a proximidade da cultura do estudante com o estudado, maior a probabilidade de êxito do discente em exames como o ENEM:

Nesse sentido, a cultura legítima, referendada pelos exames e diplomas, vem a ser aquela pertencente às classes privilegiadas. O ensino pressupõe implicitamente “um corpo de saberes, de saber-fazer e, principalmente, de saber-dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas”. Assim, o que se estabelece como dom natural constitui-se geralmente em manifestação

de afinidades ligadas a valores sociais bem determinados e às exigências do sistema escolar. No limite, o privilégio social e as habilidades adquiridas na família burguesa travestem-se em méritos individuais, “dons naturais” que o indivíduo possui. Logo, “para os filhos de camponeses, de operários, de empregados ou de pequenos comerciantes, a cultura escolar é aculturação”. (CATANI, 2002, p. 65, grifo do autor).

A grande valorização do exame no sistema de ensino brasileiro reflete o esforço das camadas superiores em fazer dele uma exigência de seleção social, tendo a oportunidade e os meios dados pelo Estado. Nesse intuito, é maximizado o valor social das qualidades humanas e das qualificações profissionais produzidas, controladas e consagradas conforme seus interesses.

Por isso, segundo Bourdieu e Passeron (2012), as classes privilegiadas transferem cada vez mais o poder de seleção às instituições escolares. Essas classes operam com a aparência de que transmitiram seus privilégios a uma instância supostamente neutra. Por se tratar de uma sociedade que proclama ideologias democráticas, é que o sistema escolar brasileiro dissimula muitas das funções que desempenha.

De acordo com Bourdieu e Passeron (2012), o exame surgiu efetivamente com a finalidade de promover e legitimar a distinção pessoal, profissional e social. Nesses termos, os exames de seleção não são justos nem neutros porque velam a relação de desigualdade que há entre a estrutura de classes e o sistema de ensino. Sob o pretexto de ser justo e neutro, o próprio ENEM chega até a reconhecer de forma ampla as condições socioeconômicas dos estudantes, mas em hipótese alguma as considera para efeito de nota e de classificação.

Dessa forma, os sistemas educacionais reprodutores utilizam-se dos exames com o objetivo de construir e manter uma hierarquia social na qual suas posições correspondam aos níveis mais elevados, por isso, a valorização do capital cultural, no qual se destaca o de natureza linguística. Entretanto, Bourdieu e Passeron (2012; 2015) esclarecem que isso não ocorre sem a influência de outras formas de hierarquização social, formuladas por setores sociais diversos, como é o caso, por exemplo, do mercado.

Tal é a seletividade dos exames no Brasil, como os vestibulares tradicionais e o ENEM, que ante a baixa oferta em face da demanda chegam mesmo a conferir o direito de acesso ou não ao ensino superior. É com a baixa oferta ante a grande demanda que esses exames se revestem do poder de determinar quem prossegue

nos estudos e quem não o pode fazer, conforme se verifica no ENEM. Isso porque, mesmo esse Exame, que surgiu sob o pretexto de avaliar a qualidade do ensino médio, cumpre o papel de seleção dos que prosseguem os estudos no nível superior.

Sistemas e instituições escolares que se utilizam de exames, como os vestibulares tradicionais e o ENEM, acabam por induzir os estudantes detentores de um capital cultural “inferior” a escolherem cursos e modalidades de menor prestígio social (como as licenciaturas do noturno). A seu favor, contam com o alto grau de seletividade dos cursos socialmente privilegiados.

Entretanto, Bourdieu e Passeron (2015) compreendem que, ao escolherem os cursos de menor prestígio, os estudantes desprovidos dos capitais econômico, social e cultural assim procedem como estratégia plausível para poderem continuar seus estudos em um nível de ensino mais avançado.

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