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Necropsia de Cetáceos e Sirênios Parte

PROCESSO CARACÓIDE

1. Avaliação da carcaça

Os odontocetos no Brasil compõem cerca de trinta e três espécies e sete famílias (ver lista completa no protocolo de resgate de odontocetos), variando em tamanho desde a franciscana (Pontoporia blainvillei), com 121 cm de comprimento (Crespo, 2002), até o cachalote (Physeter macrocephalus), que pode chegar a aproximadamente 16 metros de comprimento (Whitehead, 2002). Essa grande variação de tamanho e as diferenças entre as famílias aumentam o desafio para a padronização de técnicas de necropsia.

Uma vez que a maioria dos encalhes registrados é de cetáceos de pequeno porte, será dada ênfase neste texto para a necropsia de pequenos odontocetos. Para animais maiores, como o cachalote, podem-se utilizar técnicas e recursos descritos no capítulo sobre necropsia de misticetos.

A anatomia externa básica de um odontoceto pode ser vista na figura 1.

Figura 1. Anatomia externa de um Tursiops truncatus. (Ilustração: Cristiano Leite Parente)

167 1.1 Condição da carcaça

A avaliação do estado da carcaça (Figura 2) servirá para se ter uma idéia do que será possível examinar e coletar. Nesse primeiro momento, avaliar- se-á o estado geral do ani- mal, a presença de marcas ocasionadas pelo ser humano (ação antrópica) ou

por predadores (mordidas, bicadas, etc), a presença de cicatrizes e outras marcas, a ausência de porções do corpo tais como cabeça e nadadeiras, se o animal está muito magro etc. Deve-se fazer uma estimativa da porcentagem de pele intacta no corpo.

A presença de ectoparasitos, tais como cracas e outros parasitos especialmente próximos às cavidades naturais (boca, fenda genital e orifício respiratório) deve ser pesquisada e registrada. Os parasitos encontrados devem ser coletados conforme especificado no respectivo protocolo.

Mordidas de tubarão são comuns, podendo levar os pequenos odontocetos à morte. A medida da largura e altura das mordidas deve ser registrada, bem como a distância entre as marcas dos dentes (Figura 3). A presença de hemorragia ao redor do local da mordida irá indicar se ela ocorreu com o animal vivo, ou imediatamente após

Figura 2: Exame externo de Sotalia fluviatilis (Foto: Acervo IBJ)

Figura 3. Mordida de tubarão em Globicephala macrochynchus. Notar pênis protundido. (Foto: Milton César C. Marcondes)

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Dentre as causas de morte de cetáceos devido à ação antrópica, uma das principais é a captura acidental em redes de pesca. Pedaços de rede ou sua marca ficam, em geral, nos pontos mais salientes do corpo tais como nadadeira caudal, peitorais e cabeça. Outros sinais de ação humana são cortes e perdas de tecido. Estes geralmente ocorrem após o encalhe, visando à obtenção de carne e gordura, por parte dos pescadores, para serem usados como isca ou, menos freqüentemente, para consumo humano. Cortes em linha reta e ângulos de 90º são altamente sugestivos de ação antrópica.

1.2 Identificação da espécie

O reconhecimento da espécie é fundamental para análise de taxa de mortalidade, freqüência de encalhes, etc. Dependendo do grau de conhecimento da equipe de resgate, bem como das características físicas do animal e do estado de conservação da carcaça, a identificação da espécie pode ser feita imediatamente, ou pode depender de análises mais apuradas de biometria ou genética. O uso de chaves de identificação ajuda no reconhecimento da espécie. O guia de identificação da FAO (Jefferson et al., 1993) é um dos melhores para esta tarefa.

Devem-se registrar, através de fotos e/ou vídeo, detalhes como padrão de coloração, formato da cabeça, presença ou não e formato da nadadeira dorsal. As informações obtidas através da biometria tais como, número de dentes e comprimento total, podem ajudar na identificação da espécie.

sua morte. Tubarões charuto (Isistius brasiliensis) podem atacar animais adultos, deixando cicatrizes no local da mordida, ou atacar filhotes, levando-os a encalhar (Marcondes et al., 2002).

169 1.3 Identificação do sexo

O sexo nos odontocetos só pode ser reconhecido externamente através do exame da região genital, pois a fenda genital da fêmea fica mais próxima do ânus que a fenda do macho. Uma exceção são as orcas (Orcinus orca): o macho possui sua nadadeira dorsal bem maior que a da fêmea.

Outra forma de se determinar o sexo é através da análise de DNA. Por meio de uma pequena amostra de tecido coletada pode- se chegar em alguns casos à determinação do sexo. Animais em decomposição avançada podem dificultar esta determinação. Na maioria das espécies de odontocetos o macho é maior que a fêmea. Nos animais em decomposição o pênis pode estar exteriorizado devido ao acúmulo de gás (Figura 3).

1.4 Pesagem

A pesagem do animal deve ser feita sempre que possível. O uso de uma maca e de um dinamômetro pode facilitar o trabalho em campo. Se houver perda de tecido por predação, ação de necrófagos ou ação antrópica, isso deve ser anotado, pois irá influenciar no peso final do animal.

1.5 Biometria

A biometria de odontocetos deve seguir o protocolo de biometria, sendo obviamente realizada antes do início da necropsia. Qualquer fator que possa interferir com as medidas, tais como posição do animal ou ausência de determinadas estruturas, deve ser anotado na ficha de biometria. Animais em decomposição avançada, com acúmulo de gases, poderão ter algumas de suas medidas prejudicadas.

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2. Incisão inicial

A rotina de necropsia deve ser padronizada, pois, assim, reduz- se o risco de deixar passar algum detalhe (Jefferson et al., 1994). Uma vez estabelecido um padrão e este sendo utilizado durante algum tempo, o trabalho passa a fluir automaticamente.

O animal deve ser posicionado em decúbito lateral, com o lado direito voltado para baixo. Antes de se proceder à incisão inicial, deve-se avaliar se há acúmulo de gases, pois isso pode fazer com que as vísceras “saltem” para fora durante a abertura da cavidade ab- dominal.

Utilizando-se um bisturi ou uma faca de necropsia, será feita a abertura de uma janela no flanco esquerdo (Figura 4) por onde se terá acesso às vísceras da cavidade abdominal. Inicia-se a abertura desta janela com um corte na linha alba (1), iniciando-se na altura do umbigo e seguindo até o ânus. Outros dois cortes são feitos perpendicularmente do meio do flanco até o umbigo (2) e até o ânus (3) e um quarto corte é feito paralelo ao corpo (4), formando, assim, um quadrilátero.

Retirada esta seção, teremos acesso aos órgãos da cavidade abdominal, os quais deverão ser examinados inicialmente in loco e posteriormente encaminhados para exame mais detalhado.

Figura 4. Abertura da Cavidade Abdominal (Ilustração: Acervo IBJ).

171 3. Sistema digestivo

A cavidade oral e o esôfago serão examinados à parte, quando a cavidade torácica for aberta. Os odontocetos em geral possuem homodontia, ou seja, todos os dentes apresentam o mesmo formato, não havendo especialização entre eles. Deve-se pesquisar, na cavidade oral, a presença de sinais de emese, tais como restos de peixe, a presença de corpos estranhos e de parasitos.

O esôfago dos cetáceos consiste de um tubo alongado e com paredes espessas. O seu comprimento depende do tamanho do ani- mal, mas corresponde a ¼ do comprimento total em odontocetos (Berta & Sumich, 1999.). Deve-se pinçar a porção final do esôfago para permitir a separação deste do estômago.

O estômago dos cetáceos é dividido em cavidades. Para maiores detalhes de sua anatomia, ver item 3 do protocolo de misticetos. Uma vez que este tenha sido separado do esôfago, deverá ser pinçada ou amarrada à porção final do reto e feita a separação do conjunto estômago-intestino.

A abertura do estômago se inicia a partir do meato esofágico. Deve-se pesquisar a presença de conteúdo estomacal, e coletar este material (peixes semidigeridos, bicos de lula, otólitos). Também é freqüente encontrar a presença de helmintos neste órgão, os quais deverão ser coletados de acordo com o respectivo protocolo. O ponto de eleição para a presença de corpos estranhos é o primeiro estômago. Verificar, na mucosa intestinal, a presença de úlceras ou áreas hemorrágicas.

O intestino delgado é bastante longo. Na ampola duodenal, encontramos o ducto biliar e o ducto pancreático, por isso é comum encontrar um fluido amarelado nesta região (Britt Jr & Howard, 1983). Os odontocetos não possuem ceco, portanto é difícil precisar a definição entre intestino delgado e grosso. Procurar por adesões

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nas alças intestinais, parasitos e sinais de inflamação por toda a mu- cosa. Deve-se abrir todo o intestino, iniciando-se no duodeno e seguindo em direção ao reto.

Qualquer material que vá ser coletado para exame histopatológico deve seguir os princípios básicos, comuns à necropsia de qualquer animal, como tamanho da amostra, relação amostra/ conservante, etc. Para maiores detalhes, ver o protocolo específico.

4. Fígado, vesícula biliar, baço e pâncreas

O fígado possui dois lobos alongados e finos para acompanhar o formato alongado do corpo (Britt Jr. & Howard, 1983), podendo estar presente um terceiro lobo (Berta & Sumich, 1999). Os cetáceos não possuem vesícula biliar (Direauf & Gage, 1990; Britt Jr. & Howard, 1983; Berta & Sumich, 1999).

O baço é escuro e arredondado (Direauf & Gage, 1990). Em Tursiops truncatus, ele é encontrado na superfície serosa do estômago, entre o primeiro e o segundo estômago (Stone, 1990). Esse órgão, nos cetáceos, é bem pequeno, correspondendo a 0,02% do peso corporal (Berta & Sumich, 1999).

O pâncreas é firme, alongado e é maior em fêmeas adultas que em machos. Ele se conecta ao intestino através de um ducto. Enquanto nos misticetos existem dois ductos, nos odontocetos há um único ducto pancreático (Berta & Sumich, 1999).

173 5. Sistema reprodutivo

5.1 Masculino

Os testículos são intra-abdominais (endórquidas), localizados levemente abaixo e lateralmente aos rins. Possuem aspecto fusiformes e são bastante grandes em algumas espécies.

Em Delphinus delphis, os testículos são encontrados na região posterior da cavidade abdominal e possuem cerca de 30 cm de comprimento, chegando a 1/5 ou 1/4 da cavidade abdominal (Britt Jr. & Howard, 1983; Direauf & Gage, 1990).

Das glândulas acessórias, os cetáceos possuem apenas a próstata, que se localiza ao redor do canal urogenital. Os cetáceos não possuem osso peniano. Em todos os cetáceos a ereção ocorre pela ação de fibras musculares e não por vasodilatação (Berta & Sumich, 1999).

5.2 Feminino

Nos cetáceos, os ovários encontram-se na cavidade abdomi- nal, já nas odontocetos, eles são mantidos com uma bolsa ovariana bem desenvolvida. Os ovários dos odontocetos são esféricos e lisos. Existe uma predominância de um dos ovários, Rosas & Monteiro- Filho (2002a) observaram que, em Botos cinza (Sotalia fluviatilis) da costa paranaense, há a predominância do ovário esquerdo (Berta & Sumich, 1990).

Após a ovulação, o corpo lúteo degenera-se em corpo cor- pus albicans. A maioria dos cetáceos apresenta como característica a persistência de corpus albicans por toda a vida, (Berta & Sumich, 1999). Rosas & Monteiro-Filho (2002b) constataram que, em Pontoporia blainvillei, os corpus albicans regrediram totalmente e

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desapareceram da superfície do ovário sendo muito difíceis de serem observados, inclusive histologicamente.

O útero é bicórnico como em outros mamíferos, com os cornos uterinos juntando-se para formar um curto útero. A vagina é longa e separada do vestíbulo por uma prega himenal. Possui pregas longitudinais e transversas chamadas “pseudocervix”. Tanto o ânus como o vestíbulo, abrem-se em um orifício comum, cercado por tecido muscular, que atua como esfíncter (Direauf & Gage, 1990; Berta & Sumich,1999).

Ao se examinar o aparelho reprodutor feminino, além das observações do número de corpus albicans, devem-se procurar sinais de gestação tais como a presença de corpus luteum ou feto no útero.

6. Sistema urinário

Os rins dos cetáceos são alongados, multilobados, lembrando um cacho de uvas. Cada lóbulo é denominado renículo. O número de renículos em um cetáceo pode variar de centenas a milhares por rim.

Uma vez que cada renículo é funcional e autônomo, possuindo seu próprio córtex, medula e papila, cada unidade funciona como um pequeno rim e pode ser afetada por um processo infeccioso, sem que as demais sejam necessariamente afetadas. Dover (com. pess.) relatou um caso de Tursiops truncatus que ficou por seis meses sem querer se alimentar, mantido com alimentação forçada e não reagindo a nenhuma medicação feita. Como as chances de sobrevivência deste animal eram pequenas, ele foi submetido a uma laparoendoscopia, sendo o primeiro cetáceo no qual esta técnica foi utilizada. Ao exame, constatou-se que este animal apresentava o comprometimento de parte de um dos rins devido à deposição de complexos antígeno-

175 anticorpos provenientes de um abscesso. O animal foi tratado com

uma dose alta de antiinflamatório e sobreviveu.

Tumores podem ser encontrados neste sistema. Adenoma re- nal já foi descrito para Tursiops truncatus (Migaki et al., 1978). Também há nefrite ocasionada por Staphyloccocus aureus (Ketterer & Rosenfeld, 1974).

A bexiga encontra-se geralmente contraída e vazia, possuindo parede espessa (Britt Jr. & Howard, 1983).

7. Sistema circulatório

A cavidade torácica é bastante larga nos cetáceos, ocupando aproximadamente 2/3 do comprimento do corpo (Direauf & Gage, 1990.). Para acessar os órgãos em seu interior é necessária a abertura de uma janela, a exemplo do que foi feito na região abdominal (Figura 5) sendo obrigatória a desarticulação de algumas costelas do esterno.

Figura 5. Abertura da cavidade torácica. (Ilustração: Acervo IBJ)

O sistema circulatório dos mamíferos aquáticos é um dos mais modificados para atender às demandas fisiológicas do mergulho.

O coração apresenta as paredes dos ventrículos espessas. A relação do tamanho corporal e do coração apresenta, em algumas espécies de cetáceos, um valor elevado. As cordas tendíneas são bastante desenvolvidas. A artéria aorta é bulbosa e elástica (arco

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A rete mirabilis é um sistema de anastomoses de vasos que pode ser encontrado principalmente na subpleura da região torácica e na região lombar. Sua função é agir durante o mergulho no controle da pressão sanguínea e redistribuição do volume durante o mergulho, bem como na retenção de calor (Direauf & Gage, 1990; Berta & Sumich, 1999).

O sistema de contracorrente nos plexos arteriovenosos das nadadeiras caudal e dorsal permitem o controle da temperatura cor- poral através da dissipação ou retenção do calor corporal.