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4 Proporção de recursos do SUS destinados aos hospitais psiquiátricos e aos serviços

2.3 Avaliação qualitativa em saúde na perspectiva do usuário

As avaliações são utilizadas desde 2000 a.C., na seleção de emprego e no plano da educação, mas demoraram bastante para competir com a supremacia do conhecimento religioso e com os interesses políticos predominantes. A sua ascendência se iniciou com a força das ciências naturais no século XVII, sendo fortemente influenciada pela pesquisa social no século XVIII. A avaliação dita formal (SCRIVEN, 1967), dotada de procedimentos sistemáticos, teve rápido desenvolvimento inicial em 1960-1970, mas apenas em 1980 houve um amadurecimento que a torna hoje uma disciplina ou transdisciplina emergente (WORTHEN et al., 2004).

Historicamente, admite-se o surgimento de quatro estágios da avaliação formal que envolvem diferentes perspectivas com aportes epistemológicos distintos, compreendendo que elas coexistem até os dias de hoje (GUBA; LINCOLN, 1989):

 avaliação de 1ª geração (1910-1940) - baseia-se na mensuração de resultados e na técnica, avaliando desempenho e produtividade;

 avaliação de 2ª geração (1940-1960) - fundamenta-se na identificação e descrição de como os programas atingem resultados;

 avaliação de 3ª geração (1960-1990) - a finalidade é julgar o mérito do programa, mantendo, ainda, as funções anteriores de técnica e descrição; e

 avaliação de 4ª geração (anos 1990) - é um processo de negociação com todos os atores envolvidos, valorizando as diferentes percepções.

Esta pesquisa11 aporta alguns elementos avaliativos da 4ª geração, visto que não busca apenas melhorar a gestão dos programas e as práticas assistenciais, mas também possibilitar a democratização dos dispositivos de saúde mental, mostrar transparência nos processos e ensejar aprendizado que empodere indivíduos e grupos. Intenciona-se que esta avaliação não focalize apenas os objetivos da avaliação ou as técnicas, mas, especialmente, as pessoas que as realizam e os mecanismos e relações que estabelecem ao praticá-las, percebendo a avaliação como uma prática social complexa (BOSI; UCHIMURA, 2006).

No Brasil, a avaliação dos programas e serviços de saúde teve maior visibilidade em 1990 (HARTZ, 1997), principalmente em dois momentos: (1) com o advento da Constituição de 1988, no qual ampliou os direitos civis dos cidadãos; e (2) no contexto das leis orgânicas de saúde, que alocaram o SUS nas três esferas do Governo. A ampliação dos serviços do SUS suscitou questionamentos sobre a qualidade dos serviços prestados e convocou a avaliação como instrumento na busca de respostas (NOVAES, 2000). Ressaltamos, porém, que o crescimento pelo interesse em avaliação no Brasil deu-se, sobretudo, nas universidades e no terceiro setor (FURTADO, 2006).

Ante essa nova conjuntura, a avaliação se tornou estratégia para verificar os aspectos de qualidade almejados nos serviços de saúde, tais como: a efetividade, a eficácia, a eficiência, a equidade, a qualidade técnico-científica, a acessibilidade, a adequação e a aceitação dos programas (VUORI, 1991). Tanto a palavra avaliaçã o

como o termo qualidade, contudo, são dotados de polissemia. Dada a complexidade dos referidos termos, os autores da área possuem diferentes perspectivas (BOSI; UCHIMURA, 2006).

Dentre algumas definições, Worthen et al. (2004) exprimem que avaliação é a determinação do valor ou mérito de um objeto de avaliação. Nessa perspectiva, a avaliação é a identificação, o esclarecimento e a aplicação de critérios defensáveis para determinar valor, qualidade, utilidade, eficácia ou importância do objeto. Percebemos, portanto, que a avaliação se caracteriza pelo seu julgamento de valor com origem na utilização de técnicas e métodos científicos.

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Ressalta-se que os termos pesquisa e avaliação constituem abordagens com peculiaridades distintas,

embora se aproximem em determinados aspectos. A pesquisa tem como principal objetivo gerar conhecimento pelo uso de métodos e evidências, sem necessariamente emitir um juízo de valor ou contribuir na tomada de decisões, como no caso da avaliação.

Consoante Talmage (1982), a avaliação é uma ferramenta importante que contribui para as ações de planejamento e de tomada de decisões, incluindo sua função política. Observamos que este aspecto prático da avaliação é essencial no desenvolvimento desta pesquisa, visto que pretendemos recuperar e/ou formular estratégias de cuidado que possam qualificar os serviços em saúde mental, contribuindo para a efetivação da Reforma Psiquiátrica.

De acordo com Scriven (1967), a avaliação pode ser uma abordagem somativa ou formativa. A primeira é realizada ao final de um programa e busca ofertar aos gestores e aos consumidores potenciais julgamentos de valor ou mérito do programa, visando a encerrá-lo, mantê-lo ou expandi-lo. Já a segunda se desenvolve no decorrer do desenvolvimento do programa e propõe dar informações úteis para a melhoria do programa, possibilitando a compreensão do grupo-alvo e de suas necessidades. A avaliação de um programa em curso permite redefini-lo ou adapta-lo de acordo com as novas demandas percebidas.

São dois tipos de avaliação importantes e se complementam, todavia esta pesquisa se aproxima mais da avaliação formativa, visto que esta possibilita maior aproximação com o fenômeno em estudo. Ayres (2001) também emprega a referida nomenclatura e assevera que a avaliação formativa pretende reconhecer os projetos de felicidade que justificam e elucidam a realização do cuidado que se quer julgar, voltando para a dimensão subjetiva da qualidade.

No que concerne ao termo qualidade, este pode ser tomado como desfecho da avaliação dos programas de saúde e possui distintos sentidos no plano epistemológico e metodológico. Bosi e Uchimura (2006) destacam dois aspectos da qualidade: a multidimensionalidade intrínseca, que implica o caráter da qualidade adquirir diferentes significados de natureza objetiva e subjetiva, e a multidimensionalidade extrínseca, relativa à variação da qualidade de acordo com o interesse de grupos ou atores sociais.

Historicamente, há uma predominância do uso de abordagens avaliativas destinadas a verificar o êxito técnico dos serviços e programas mediante padrões e normas preestabelecidos, limitando-se à quantificação dos elementos formais de uma intervenção (AYRES, 2001). Contra-hegemonicamente, a avaliação qualitativa busca compreender os significados que os atores atribuem às dimensões do programa e o

modo como se realizam as ações, considerando as concepções e os discursos envolvidos nas práticas (DESLANDES; GOMES, 2004).

Para Bosi e Uchimura (2007) a avaliação qualitativa busca desvendar o universo simbólico dos atores sociais em sua complexidade e profundidade, materializado nas relações intersubjetivas estabelecidas nas práticas em saúde. Neste sentido, o emprego da avaliação qualitativa nos serviços de saúde mental está em consonância com o plano discursivo e prático de suas ações, visto que assistência em saúde mental implica, necessariamente, a utilização de tecnologias leves12 de cuidado. Há, portanto, uma confluência entre o objeto de estudo desta pesquisa e o uso da avaliação qualitativa da assistência prestada nas dimensões integralidade e humanização do cuidado em saúde mental.

A avaliação qualitativa no campo da saúde mental é, atualmente, uma necessidade emergente em decorrência da velocidade com que se vêm construindo e ampliando a rede substitutiva ao modelo manicomial, cujos efeitos ainda não são totalmente ou sistematicamente conhecidos. Observamos, também, nesta conjuntura, uma desordem epistemológica nas práticas em saúde mental em que há uma combinação de diversos saberes e fazeres: Psicanálise, Psiquiatria, Psicofarmacologia, abordagem sistêmica, reabilitação psicossocial etc. Daí a importância do uso de modelos avaliativos no campo da saúde mental que permitam refletir criticamente atitudes ideológicas tradicionais e estimar o impacto das intervenções em saúde (MERCADO, 2006).

De acordo com Worthen et al. (2004), há diferentes tipologias de avaliação que fornecem uma perspectiva ampla de suas aplicações, dentre elas: a valiações centradas em objetivos - os propósitos de uma atividade são especificados e, nesse sentido, a avaliação concentra-se na medida em que esses propósitos foram alcançados;

avaliações centradas na administração - tem o intuito de contribuir com as pessoas nas tomadas de decisões; avaliações centradas nos consumidores - utilizam listas de verificação para avaliação de produtos e fornecem conhecimento aos consumidores;

avaliações centrada s em especialista s - dependem dos conhecimentos específicos de um profissional para emitir juízos de valor; ava liações centrada s em adversá rios –

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São três os níveis tecnológicos na atenção em saúde, segundo Merhy (2006): leve (tecnologias ou modos relacionais de agir na produção dos atos de saúde, ou seja, em intervenções pautadas nos relacionamentos interpessoais dos atores envolvidos), leve-duro (saberes tecnológicos clínicos e epidemiológicos) e duro (equipamentos, medicamentos e máquinas).

visam a equilibrar a tendenciosidade (em vez de reduzi-la), incorporando visões positivas e negativas dentro da avaliação; e avaliações centradas nos participantes - surgiram de uma reação às abordagens objetivistas, mecanicistas e insensíveis da avaliação, enfatizando a experiência dos participantes da atividade que está sendo avaliada.

Perante as tipologias descritas, optamos, nesta pesquisa, pela centralidade do usuário como avaliador autêntico das práticas do CAPS (PINHEIRO; SILVA JR., 2009), visto que os novos serviços e práticas em saúde mental são destinados aos usuários, sendo eles próprios capazes de avaliar o impacto dessas ações em suas vidas.

Atualmente, se observam dois dilemas no campo da avaliação: por um lado, é perceptível um aprisionamento conceitual no qual os conceitos são mais importantes do que os atores sociais e suas experiências; e, por outro lado, uma revalorização das práticas de promoção da saúde, que incluem usuários, famílias e lideranças (PINHEIRO; MARTINS, 2009). Acreditamos que o enfoque no usuário, conforme utilizado nesta pesquisa, valoriza o lugar do cuidado e das interações nos espaços de saúde.

Pinheiro e Martins (2009) asseveram que, sem desconsiderar a perspectiva do gestor (baseada em metas, prazos e prioridades estratégicas) e do profissional de saúde, é importante compreender as representações dos usuários, suas decisões sobre cuidados e seu modo de avaliar uma ação em saúde.

De acordo com Pinheiro e Silva Jr. (2009), a participação do usuário, quando acontece, ocorre de forma representativa em conselhos de saúde. Apesar da importância e da legitimidade das formas de representações, os autores alertam acerca da assimetria de informações e da predominância da lógica técnico-profissional dos debates em saúde, ensejando um discurso distanciado da realidade dos usuários e da comunidade.

Com suporte nesse entendimento, Pinheiro e Silva Jr. (2009) reiteram:

Quando o objeto a ser avaliado – neste caso, o direito à saúde – é aqui, no

caso brasileiro, plasmado na efetivação da integralidade do cuidado –, as

questões relativas à avaliação em saúde ganham relevo, pois implicam processo de reconhecimento dos atores e seus aspectos sociais, políticos e

culturais inerentes aos contextos nos quais o objeto a ser avaliado – o direito

à saúde – se insere. [...] Quando realçamos a avaliação na perspectiva do usuário, conferindo centralidade no usuário como mais um avaliador legítimo, as práticas avaliativas tornam-se amplificadoras desse direito,

influenciando de modo crítico a oferta de cuidados, possibilitando maior qualidade e resolutividade ao conjunto da população (p. 38-39).

Assim sendo, este estudo buscou compreender as experiências vividas dos usuários nas práticas assistenciais, com vistas a garantir a qualidade dos serviços ofertados no CAPS da SER III e no CAPS da SER V, em Fortaleza-CE.