• Nenhum resultado encontrado

4 Proporção de recursos do SUS destinados aos hospitais psiquiátricos e aos serviços

2.4 Experiências vividas nas práticas assistenciais

No que tange à compreensão dos processos psicológicos que constituem a percepção dos usuários nos distintos CAPS acerca da qualidade do serviço ao qual eles vivenciam em termos de cuidado, concerne a esta pesquisa definir o que é experiência. Consideramos esta noção um construto básico para estabelecer o acesso à apreensão de sentidos apresentados nos discursos dos usuários. De modo a conceituar experiência nesta pesquisa, utilizamos um recorte da perspectiva fenomenológica advinda de Husserl (2001) e Merleau-Ponty (2006).

Em linhas gerais, para a formação deste pensamento, é necessário que o leitor entenda a etimologia da experiência como uma palavra advinda do latim; “ex”

significa aquilo que foi retirado de uma provação (vivência) e “perientia” refere-se a um

conhecimento adquirido do contato sensorial com a realidade (AMATUZZI, 2007). O termo trata, portanto, de um conhecimento “diretamente produzido pelo contato com o real.” (p. 09).

Consideramos que o nosso organismo constitui-se como lócus em que acontecem todos os fenômenos epistêmicos de intuição, conhecimento e interação com o mundo. É com arrimo na experiência que se obtém a construção de sentido que comporá uma realidade a ser vivenciada em termos de percepção e reação comportamental ao que é percebido. Assim, a experiência pode ser tomada como conhecimento adquirido no mundo que se vincula diretamente com o organismo (MERLEAU-PONTY, 2006).

A experiência corresponde às sensações que acontecem em um corpo em decorrência do que é percebido ou sentido (em termos de emoções), simbolizado (em termos de sentimentos) e reagido (em termos de comportamento). Nesse aspecto, a experiência se constitui a partir de um contato com o mundo (Welt), estabelecendo, portanto, a apreensão de um dado (sentido) de realidade (MERLEAU-PONTY, 2006).

Tal concepção tem origem na fenomenologia de Husserl (2001), o qual estabelece duas concepções para o termo experiência: Erfahrung e Erlebnis.

Consoante Husserl (2001), Erfahrung significa “a experiência adquirida”,

uma espécie de “aprendizagem pela prática” que se adquire em contato direto com a vida (Leben). Logo, experiência, entendida como Erfahrung, denota um conhecimento aprendido na prática e no contato com diversos acontecimentos da vida (Leben).

Já Erlebnis (HUSSERL, 2001) tem vinculação com a emoção sentida atrelada a um determinado acontecimento ou a vivência de um fenômeno. Nessa concepção, Erlebnis significa uma “experiência vivida”, mais do que uma

“aprendizagem ou experiência adquirida” (Erfahrung). Ou seja, “Erfahrung seria mais o aprendido, enquanto Erlebnis, o vivido. O primeiro termo implica uma ênfase no cognitivo acumulado enquanto o segundo no emocional momentâneo” (AMATUZZI, 2007, p. 10, grifo do autor).

Assim, o conjunto de experiências vividas exprimindo o que é dado imediato no corpo (percepção, sensação, emoção, sentimento, comportamento e atribuição-captação de sentido) será definido como mundo-vivido (Lebenswelt), que remete ao substrato referencial para a elaboração de todos os sentidos que se disponibilizam para serem assimilados, elaborados e compartilhados em termos de conceitos, concepções e conteúdos da experiência (HUSSERL, 2001).

Nesse entrelaçamento de experiência adquirida (Erfahrung), experiência vivida (Erlebnis) e mundo-vivido (Lebenswelt), constata-se que Husserl não entende o mundo da vida como atitude natural, na qual todos os nossos interesses teóricos e práticos são dirigidos aos entes do mundo. O objeto de estudo da fenomenologia husserliana versa sobre o universo da intersubjetividade (ZILLES, 2008). Não obstante, Zilles (2008) considera que o mundo-vivido (Lebenswelt)

É o mundo histórico-cultural concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a imagem do

mundo elaborada pelas ciências [conhecimentos]. O Lebenswelt é o âmbito

de nossas originárias ‘formações de sentido’, do qual nascem as ciências [...] O erro do objetivismo foi esquecê-lo ou desvalorizá-lo como subjetivo [...] Cabe à fenomenologia recuperá-lo, tirá-lo do anonimato, pois o humano pertence, sem dúvida, ao universo dos fatos objetivos; mas, enquanto

pessoas, enquanto eu, os homens têm fins, perseguem metas, referem-se às

normas da tradição, às normas da verdade; normas eternas (p. 45, grifo do autor).

Destacamos que as experiências vividas (Erlebnis) e adquiridas (Erfahrung) de um eu se correlacionam com um mundo vivido (Lebenswelt). Deste modo (ZILLES, 2008),

Mundo da vida, no sentido de mundo experienciado pelo homem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa, que o próprio homem constrói.

Mas, ao mesmo tempo, o Lebenswelt é constituído pela história, linguagem,

cultura, valores... Quando se fala de experiência é ingênuo querer reduzi-la à

empiria sensível do mundo físico. A experiência, sem dúvida, é um ato da consciência. Vinculado a experiência ao mundo da vida [...] pode-se falar de experiência da subjetividade (p. 46, grifo do autor).

O Lebenswelt não é uma soma de objetos mas o mundo do subjetivo do qual emerge toda a atividade humana. O homem exerce sua função de criar fatos culturais no mundo da vida. Entre estes fatos está o mundo objetivo das ciências e dos instrumentos técnicos [...] supõe-se que cada experiência, cada dado ou cada palavra, se encontra num nexo global de sentido proveniente da intencionalidade subjetiva. Os dados e as experiências singulares compartilham ser e sentido com a totalidade na qual se inserem (p. 46, grifo do autor).

As ciências apresentam uma visão do mundo na qual predomina o objetivismo, a quantificação, a formalização, a tecnificação, etc. O mundo da vida, pelo contrário, apresenta-se como um mundo de experiências subjetivas imediatas, dotado em si mesmo de sentido e finalidade, pré-dado para explicações conceptuais (p. 47).

As noções de experiência vivida e mundo-da-vida dão uma pista de que toda vivência é perpassada por um horizonte histórico. Logo, uma abordagem fenomenológica compreensiva da experiência enfatiza o significado do mundo-vivido do outro, reconhecendo que esse contém elementos subjetivos singulares e, simultaneamente, componentes sociais objetivos, por serem comuns aos outros, inclusive “a mim”.

Em torno do mundo (Welt), circulam uma rede de expressões humanas que são físicas, ideais, tipológicas e eventuais. Essas são constituídas e constituem uma série de experiências vividas que cada pessoa possui e compartilha. Vida (Lieb) refere-se aos atos humanos ocorrentes no mundo e são ao mesmo tempo pessoais e coletivos (ALES BELLO, 1998). É no mundo-da-vida (Lebenswelt) que cada pessoa se encontra inserida num campo preliminar que constitui o seu horizonte de experiências, juízos e crenças.

Assim sendo, optamos, nesta pesquisa, por abordar a experiência em uma vertente fenomenológica, pois esta consiste em uma busca por descrições do que é vivido pelo sujeito (no caso os usuários dos CAPS), de modo a apreender (captar) quais são os seus conhecimentos acumulados com base no que eles vivenciam nos CAPS e

percebem em termos de sentidos relacionados às dimensões integralidade e humanização do cuidado.

Em suma, essa perspectiva nos conduz a advertir que a experiência desses usuários foi abordada, como significações acumuladas ou conhecimento adquirido (Erfahrung), de um lado; e como experiência vivida (Erlebnis), por outro. As estruturas dessas experiências consistem no ponto de partida para compreender quais os sentidos existentes sobre os CAPS em questão, nas suas dimensões de integralidade e humanização, e como estas estão disponíveis em termos de doação e captação de sentidos no mundo vivido (Lebenswelt).