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CAPÍTULO II O POVO APURINÃ

Foto 02: Kyynyry ou Xingané, ritual sagrado do povo Apurinã.

2.5. Awiry: a planta do conhecimento

É difícil falar do povo Apurinã sem mencionar alguns aspectos, objetos e personagens da nossa cultura, que são integrantes da nossa história, ainda que alguns se destaquem mais que outros quando a contamos. Isso se evidencia nas narrativas dos kiiumanhe. Não temos como deixar de notar, por exemplo, o awiry. Tentarei apresentar sua origem, seus usuários, seus valores, sua finalidade e também a sua força quando é utilizado pelos kusanaty, mas também os riscos de seu uso indevido.

Awiry ou “rapé” é nossa principal erva medicinal. Ele é feito da folha também chamada awiry e, depois de passar por todo processo de produção, ele se torna um pó de cor verde, ficando da mesma cor da folha. Depois de pronto, o awiry é tradicionalmente armazenado dentro do mekaru (aruá – recipiente tradicional), que tem sua tampa enfeitada com penas, geralmente de xingane (tucano) ou kuia kuia (papagaio). Seu uso é

29 O sãkyre é uma apresentação mútua de identificação. Trata-se de um ato preliminar que antecede o ritual principal e que é praticado entre dois tuxauas de grupos inimigos dentro do espaço de realização da festa; o objetivo é apagar os conflitos entre eles, bem como reafirmar alianças.

30 Awiry ou rapé, este último termo herdado do homem branco, é a principal erva medicinal do povo Apurinã. Com ela os membros desse povo se previnem e curam doenças. Ademais, ajuda os pajés no diagnóstico dos doentes, permitindo também em sonhos saber o que houve com os espíritos das pessoas levados por outro pajé ou bicho da mata.

31 Isso nem sempre acabou em festa: meu pai conta que, no passado, o ritual podia terminar em sérios conflitos e até mesmo em mortes.

78 feito pela via nasal e se dá por meio do myxykanu – em outras regiões, há também quem chame de katukanu – que, tradicionalmente, é feito de osso da canela ou da asa do kukui (gavião real) ou do kamyku (alencó). É importante sublinhar que, antigamente, o uso do awiry era restrito ao kusanaty, sobretudo em seus procedimentos e rituais de cura; nessa época, havia uso apenas dentro da cultura indígena e respeito de todas as pessoas, porque elas compreendiam esse uso.

O awiry, assim como o meyxykanu e o mekaru são de uso ritual e, assim, são elementos vitais, preponderantes e indispensáveis para o kusanaty, em especial durante seus trabalhos de cura, estando ele acordado ou em sonhos, nesta ou em outras terras. De posse desses três elementos, o kusanaty é capaz de fazer coisas que, aos olhos naturais de pessoas leigas, são duvidosas32. Quando indaguei o kusanaty Makaputenyky

(Jaime Apurinã) sobre a origem do awiry, ele me respondeu:

Nosso awiry veio do kymyrury [campo de natureza33], quem trouxe foram os encantados, eles deram as sementes para nossos

kiiumanhe, esses plantaram em muitos lugares, mas agora quase em

todo lugares tem nosso awiry, mas só quem conhece são os Apurinã. Os brancos hoje conhecem porque nós somos bestas e vende para eles. Ninguém pode brincar com esse rapé, ele mata gente. Se o finado do meu pai ainda tivesse nesta terra, daqui mesmo ele puxava o myxykanu de dentro da patrona (bolsa que ele carregava na cintura) dele e jogava, ele ficava fincado naquele pé de biribá, lá mesmo já vira sary (pica-pauzinho), ainda ficava cantando, txi, txi, txi, sary, sary. Quando tem outro pajé perto, ele joga o myxykanu dele também e fica colado no outro que já está lá na árvore, e, se por acaso, tenha mais de dois pajés, aquele outro joga o mekaru, para demonstrar que tem mais poder do que os outros. Isso é a brincadeira deles para ver quem é mais forte. No dia que meu pai foi embora, ele deixou seu

myxykanu e mekaru dentro do seu balaio [cesto feito de cipó]

fincado na palha de casa. No dia seguinte, nós fomos olhar, não estava mais não, já tinha ido embora para onde ele estava (Makaputenyky, julho de 2018, aldeia Kamikuã, TI Kamikuã). Ao falar desse assunto ao meu pai, ele disse - incisivamente e no mesmo sentido da fala de Makaputenyky que reproduzi acima:

Tudo que Tsura criou e deixou para os Apurinã deve ser respeitado, meu filho! Hoje em dia, todo mundo usa awiry, pega no

myxykanu e no mekaru do pajé. Antigamente, só podia pegar com

autorização dele e se alguém teimasse, aquele myxykanu furava o nariz da pessoa, saia sangue até morrer. O mekaru dele saía voando e vai para onde ele manda, ele também virava cobra para morder aquelas pessoas que são teimosas ou que ele não gosta. Quando ele

32 Ver sobre o kusanaty no Capítulo 03 deste trabalho. 33 Ver sobre o kymyrury no Capítulo 04 deste trabalho.

79 quer saber notícias de outros parentes que moram longe em outras aldeias, até mesmo de outros povos, ele manda o myxykanu ir lá. Também é esse myxykanu que avisa o kusanaty quando alguém vai morrer ou vem atacar sua aldeia. Quando alguém pede awiry dele, primeiro ele acha graça, se for assim, a pessoa pode se aproximar que ele vai dá, mas se pedir e ele ficar sério, aí pode voltar, porque se continuar, ele bota doença na pessoa para nunca mais pedir (Katãwiry, fevereiro de 2019, Rio Branco-AC).

Percebemos, portanto, que há uma relação que se poderia dizer de “participação mística” entre o kusanaty, seus instrumentos de trabalho, os humanos e também os não-humanos, em um diálogo com o meio em que se vive. Nesse meio, todos interagem com todos, estabelecendo uma linguagem de aprendizagem pela alteridade recíproca e possibilitando mudanças, transformação, ressignificação, invenção e reinvenção. Talvez essas relações de “participação mística” sejam aquilo que Deleuze & Guattari (2004) nomeou “processos rizomáticos”: o que não tem começo nem fim – apenas meio.

Além disso, percebe-se que muito valores éticos estão inseridos nesse contexto, guiados por uma razão maior expressada nos depoimentos que transcrevi: a responsabilidade e o respeito que se deve ter com o awiry e seus agregados. Segundo ressaltou Kupaky (Celino Avelino Apurinã), conhecedor tradicional sobre o kusanaty e seus instrumentos de trabalhos, “o awiry é uma planta sagrada para nós Apurinã. É o awiry que faz todas as conexões entre o pajé, seus instrumentos de trabalhos, o mundo e tudo que nele existe. Penso que também é ele que permite aos pajés realizarem ações que a sociedade envolvente desconhece ou não quer conhecer”.

A intenção deste tópico não foi falar sobre os procedimentos de cura realizados pelos kusanaty, visto que essa discussão será realizada no terceiro capítulo deste trabalho. Entretanto, para que possamos adentrar o próximo assunto, devo destacar que o pajé é, sem dúvidas, o ator mais importante de nossas aldeias. Isso porque, antes da colonização e principalmente da chegada da biomedicina, era ele que fazia todo tipo de cura – tanto de doenças naturais como das causadas por espíritos – e ainda protegia suas aldeias dos ataques de inimigos. Naquela época, não havia equipe de saúde...

O contato com os não-indígenas desencadeia processos de exploração, colonização e aculturação dos povos indígenas. Nós Apurinã, assim como outros povos, fomos vítimas de terríveis violências nesse período assombroso. Tal processo influenciou diretamente na fragmentação de nossos aspectos socioculturais, incluindo a atuação dos kusanaty. Isso se intensificou com a chegada e execução de serviços

80 realizados pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI, o qual mais tarde deu lugar à Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

A partir desse período, a saúde indígena ficou sob a responsabilidade dessa fundação e poucas coisas avançaram. Contudo, é importante registrar que, com a chegada da FUNAI, houve algumas mudanças relativamente favoráveis, especialmente no que tange à demarcação de territórios tradicionalmente ocupados pelos Apurinã. Também naquela época, chegou a educação formal, que foi cogitada pelo nosso povo para ser uma ferramenta importante na organização e fortalecimento cultural. Pena que muitas dessas expectativas ficaram somente no pensamento, assim como o ideal de atendimento de saúde diferenciado permanece, até o presente, apenas no mundo das boas ideias e intenções.

Assim sendo, no próximo tópico abordo a situação da saúde indígena num contexto mais atual. Farei isso principalmente por meio de depoimentos de meus interlocutores apurinã. As condições de saúde, precisamos lembrar, são inseparáveis daquelas do território e do ambiente. Da relação entre nossos corpos e plantas, voltarei a tratar ainda neste capítulo.