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CAPÍTULO II O POVO APURINÃ

Foto 06: Pessoas e animais convivem nas aldeias apurinã.

3.4. Cosmologias ameríndias e noção de natureza e cultura

Antes, durante e depois de cursar as disciplinas do doutorado, realizei inúmeros mergulhos em textos cujos fundamentos são, sobretudo, as obras clássicas da antropologia. Paralelamente a isso, dialoguei muito com amigos indígenas e não- indígenas – momentos que resultaram em profundas reflexões. Certamente, esses momentos aguçaram minha curiosidade e desejo pela compreensão de muitos assuntos que são abordados por praticantes dessa ciência e de outras áreas de pesquisa. Entre os assuntos que discutíamos, estavam as dualidades natureza e cultura, humanos e não- humanos, conhecimento indígena e conhecimento ocidental; nós as contestávamos e questionávamos.

Minha intenção é enfatizar a necessidade e a importância de pensar o assunto também sob uma lente indígena. Partindo dessa proposta, a ideia aqui é promover um exercício de pensamento, e não esgotar ou resolver um debate. Meu objetivo não é desconstruir o que já foi dito por muitos autores, mas, sim, promover novas reflexões a partir de um ponto de vista indígena. Assim, ainda que este texto não esteja alinhado ao debate antropológico clássico, ele apresenta pontos de vista que não devem ser desconsiderados, pois busco falar de como nós indígenas entendemos nosso próprio mundo.

Por esse caminho, abordarei o debate sobre a dicotomia natureza/cultura e seu desdobramento acerca de humanos e não humanos, com suas controvérsias e ambiguidades. O experimento consiste em justapor as teorizações de dois eminentes representantes da dita “virada ontológica” – Philippe Descola, com o animismo, e Viveiros de Castro, com o perspectivismo ameríndio – à contribuição do pensador indígena Francisco Sarmento Tukano. Desse modo, o texto propõe-se debruçar sobre as ponderações, possíveis limites e contribuições desse debate.

Comecemos por Philippe Descola, que propõe uma reflexão comparada sobre diferentes modos de conexões entre os humanos e os demais seres existentes, tendo

118 como noção central o animismo. Para isso, ele sugere uma revisão dos princípios da distinção entre natureza e cultura. O autor apresenta seu pensamento, sobretudo, em Par-delà nature et culture [Além da natureza e da cultura] (2005). Nessa obra, Philippe Descola defende que muitos povos não-ocidentais parecem indiferentes a essa divisão, porque atribuem às entidades ditas naturais certas características da vida social como a dos seres humanos, concebendo-as e tratando-as como pessoas, com atribuições, portanto, de imperativos daquilo que se chama cultura.

Para Descola, os humanos concebem o meio ambiente e suas demais relações como integrados em um mesmo e único sistema ecológico e ontológico. Essa ideia advém da constatação etnológica de que, nas sociedades indígenas sul-americanas, não é estabelecida distinção entre natureza e cultura. Partindo desse ponto de vista, os não- humanos têm experiências que formam um todo com o mundo dos humanos. Esse modo de experiência se passa dentro de uma zona de intercâmbio ontológico, na qual se constituem diferenças e semelhanças, em que estão os vínculos entre a “fisicalidade”, isto é, as formas e as materialidades do mundo, e a “interioridade”, isto é, as “características internas do ser”.

Dessa forma, muitas sociedades atribuem às plantas e animais um princípio espiritual próprio e estimam ser possível estabelecer com essas entidades relações de pessoa a pessoa. No caso de sociedades da América do Sul e de outras regiões, plantas e animais são dotados de atributos antropomórficos (intencionalidade, subjetividade, uso de palavras, etc.), características sociais com uso de status de hierarquia, leis de parentesco, códigos de ética, rituais, etc.

No animismo, humanos e não-humanos são concebidos como possuindo uma interioridade de mesma natureza. A referência compartilhada pela maioria dos seres é a humanidade como condição e não como espécie. Entretanto, eles têm materialidades específicas, à medida que suas essências internas idênticas encarnam em corpos diferentes (“roupas”). Ao modo do perspectivismo ameríndio, no animismo os humanos e não-humanos “[...] têm então uma visão integralmente cultural de seu ambiente por causa de uma interioridade traçada a partir dos humanos, pois o mundo que eles apreendem parece diferente por causa de suas respectivas ‘materialidades corporais’” (SARMENTO, 2018, p. 7-8).

Assim, animismo seria o tipo de pensamento encontrado entre sociedades indígenas da América do Sul, ao passo que, no Ocidente, haveria um modo de compreensão ontológica chamado naturalismo. Ao contrário da ontologia animista que

119 pressupõe identidade de almas e diferenças de corpos, a ontologia naturalista pressupõe descontinuidade interior e continuidade material. É concebida, aqui, a coexistência entre uma natureza única e culturas múltiplas.

O perspectivismo ameríndio, pensado por Eduardo Viveiros de Castro (1996, 2004, 2006, 2015), é outra proposta antropológica acerca do conceito de natureza e cultura entre as sociedades indígenas. O autor entende que o resultado de seu método reflexivo é uma “hibridização” da aplicação dos conceitos ocidentais (multicultural e uninatural) e da imagem percebida na cosmopraxia ameríndia (unicultural e multinatural). Viveiros de Castro destaca que não se trata de um relativismo cultural, que assume a pluralidade das representações de uma única natureza. Para o perspectivismo, há uma diversidade de perspectivas, sempre relacionais, mas que não incidem sobre uma natureza única; antes, as naturezas são tão múltiplas quanto as perspectivas.

O multinaturalismo é um conceito criado a partir de análises das cosmovisões dos povos ameríndios e surge com os trabalhos desenvolvidos por Viveiros de Castro como uma tentativa de explicar as mitologias indígenas. Ele se opõe ao multiculturalismo: enquanto esse supõe a universalidade da natureza e da multiplicidade de culturas e, assim, uma espécie de unidade dos corpos e uma particularidade dos espíritos, o multinaturalismo concebe a universalidade da cultura e a multiplicidade da natureza, isto é, a existência de uma única cultura e diversidade dos corpos.

De todo modo, a etnografia da América indígena lida por Viveiros de Castro revela-se um tesouro de referências para uma teoria cosmopolítica que imagina um universo povoado por diferentes tipos de agências ou agentes subjetivos, tanto humanas como não-humanas (os deuses, os animais, os mortos, as plantas, os fenômenos meteorológicos e muitas vezes também os objetos e artefatos). Assim explica o autor:

Humanos e não humanos, todos são providos de um mesmo conjunto básico de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas, ou, em poucas palavras, de uma alma semelhante, incluindo um mesmo modo que poderíamos chamar de performativo, de apercepção. Os animais e outros não humanos dotados de alma se veem como pessoas, portanto, em condições e contextos determinados, são pessoas, isto é, são entidades complexas com uma estrutura ontológica de dupla face, uma visível e outra invisível (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 43-44).

120 Nota-se que, para o autor, os modos como os humanos veem os animais, os espíritos e outros personagens cósmicos são profundamente diferentes do modo como esses seres os veem e se veem. Os animais predadores e os espíritos, por seu lado, veem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou animais predadores. Viveiros de Castro completa que:

O perspectivismo raramente se aplica a todos os animais (além de quase sempre englobar outros seres – no mínimo, os mortos); ele parece focalizar mais frequentemente espécies como os grandes predadores e carniceiros, tais como o jaguar, a anaconda, o urubu ou harpia, bem como as presas típicas dos humanos, como os porcos selvagens, os macacos, os peixes, os veados ou o tapir (VIVEIROS, 2015, p.45).

A visão direcionada pelos povos ocidentais a outras sociedades humanas levou a uma assimetria dos pontos de vista. Segundo o autor, os ameríndios não seriam povos etnocêntricos, mas, sim, cosmocêntricos, visto que a natureza de humanidade não indicaria uma substância própria a este ou àquele ser natural específico, pois, a rigor, o humano é resultado da relação que estabelece em determinados contextos com os demais seres.

Nesse caso, Viveiros de Castro (1996, 2015) defende que todo o ser que possui um ponto de vista poderá ocupar a posição de sujeito, e logo poderá ser visto como pessoa. Assim surge o conceito de perspectivismo ameríndio. O autor sustenta, ainda, que a capacidade de ocupar um ponto de vista é uma questão de grau, de contexto e de posição, antes que uma propriedade distintiva de tal ou qual espécie.

Francisco Sarmento (2017c, 2018) faz um exercício de traduzir ou situar o pensamento tukano após discutir parte das teorias de Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro. Para o autor indígena, as teorias antropológicas verificam não existir o dualismo natureza/cultura em sociedades como as ameríndias. Nesse rumo, elas entendem que esse binômio, característico ao pensamento ocidental, não está bipartido nas sociedades indígenas; antes, ainda que ambas categorias estejam presentes, elas estão integradas ou em relação.

Para Sarmento (2017c), na relação cognitiva dos Tukano, existe a consciência de semelhanças que são socializadas e das diferenças dos modos de vida específicos de cada grupo étnico ou linguístico. Essa consciência da existência dos modos de vida específicos poderia se aproximar daquilo que se chama cultura na antropologia, conforme explica o autor:

121 Assim a concepção tukano de kahtiro kãsé nisé que poderia ser interpretada como “vida e/ou pensamento do povo Tukano” englobaria todo o modo tukano de viver e pensar – cada grupo étnico tem seu modo de viver e pensar. Isso é sentido como coisa propriamente dos coletivos humanos, da humanidade. O que não faz parte desses coletivos humanos (humanidade), mas que estão em relação necessária com estes, são: os animais, as plantas, os objetos materiais e o meio físico. Esses poderiam ser aproximados da noção de natureza. Vê-se que as duas categorias não precisam estar manifesta e imediatamente especificadas em relação às coisas no contexto indígena, pois isso depende da própria relação da vida (SARMENTO, 2017c, p.16).

Quanto à noção de humanos e não-humanos, no que concerne especificamente aos ameríndios amazônicos, Sarmento (2017c) entende que as teorias antropológicas estipulam que, no imaginário desses povos, o mundo está povoado de seres humanos e não-humanos engajados em constante relação de sociabilidade. Nessa medida, os não- humanos estariam também imbuídos das qualidades e características dos humanos, de modo que portariam uma alma, intencionalidade ou subjetividade idêntica ao modo humano e que viveriam com qualidades socioculturais.

Dessa forma, os não-humanos teriam as mesmas capacidades cognitivas e volitivas que os humanos, como indica Eduardo Viveiros de Castro. As plantas, animais, meteoros etc. seriam dotados de atributos antropomórficos e características sociais, sendo concebidos e tratados como pessoas – assim como disse Descola. Especialmente os animais de presa e os predadores, e os espíritos em particular, participam da mesma composição ontológica; o que varia é sua perspectiva específica, segundo a teoria perspectivista. Por seu lado, Sarmento especifica que:

No pensamento Tukano (que poderíamos aqui dizer, dos grupos Tukano Orientais ou mesmo do noroeste amazônico indígena) os humanos e não humanos estão em evidente e constante relação. No entanto os elementos como animais, plantas, pedras, etc., não são concebidos como portadores de humanidade (SARMENTO, 2017c, p.17).

Entretanto, Sarmento (2017c) sustenta que a categoria gente envolve uma questão diferente. Por exemplo, são chamados de wai mahsã os seres espirituais das dimensões cósmicas. Se traduzido literalmente, o termo wai mahsã quer dizer “gente- peixe”. Contudo, ele não faz referência direta ou exclusiva ao animal peixe; antes, o termo diz respeito aos seres que habitam camadas espirituais nas águas, nas terras, nas matas e nos ares. É por meio desses locais que esses seres estão ligados aos seus

122 respectivos animais. Os wai mahsã estão presentes desde as narrativas míticas, com agencialidades e subjetividades como as que possuem os humanos. Eles têm capacidade de metamorfose e de camuflagem, ou seja, podem assumir a forma de animais ou mesmo de humanos (ao vestir a pele ou a roupa), adquirindo suas características e habilidades físicas.

Sarmento (2017c, 2018) afirma que os animais, vegetais e mesmo os astros, podem ser pensados como gente, mas não possuem características antropomórficas no sentido de possuírem humanidade – ao contrário do que dispõem algumas teorias. Por exemplo: Francisco Sarmento, assim como João Paulo Barreto (2013) explicam que os peixes, nas narrativas míticas tukano, são originados através das partes descartadas e podres do corpo humano, do vômito de algum humano, de pedaços de peças de ornamentos corporais ou de pedaços de objetos. Se por acaso os peixes ou outros animais fossem humanos, eles não serviriam como alimento, diz Sarmento (2017c; conversa pessoal, 2018). Por isso, o autor propõe que dever ser

[...] reservada a categoria de humanos somente aos humanos reais. Portanto, estes seres animados de agencialidades dividiriam em comum a genticidade (ou personalidade) e não a humanidade, ainda que em ocasiões seus representantes especiais possam assumir a vestidura (corpo, roupa) e hábitos um do outro (SARMENTO, 2018, p.14).

Os wai mahsã são também fonte de sabedoria e conhecimento para os especialistas rituais tukano (yai, kumu e baya – três especialidades que completam a ordem de xamanismo dos Tukano). É apenas a esses especialistas, em suas ações interespecíficas, que os wai mahsã se tornam visíveis. Às pessoas comuns, eles aparecem ou se manifestam somente em sonhos ou em momentos de sinais maléficos. Suas manifestações costumam trazer doenças e até mortes aos seres humanos – principalmente quando as pessoas desrespeitam os lugares habitados por esses seres e pelos animais dos quais eles são donos (SARMENTO, 2017c, 2018).

Entendo que esse debate ainda é pequeno e bastante recente, de modo que são necessárias investigações mais aprofundadas, tanto para alcançar um maior entendimento como para oferecer mais e melhores contribuições para a discussão sobre ontologia. Para isso, acredito ser preciso adentrarmos os conhecimentos mais particulares de nossos povos.

123 De todo modo, também entendo ser grande a contribuição que nós pensadores indígenas podemos dar à antropologia em debates como, por exemplo, esse sobre natureza e cultura. Afinal, o que logo chama a atenção é que, quando a antropologia se depara com essa questão, ela geralmente toma os povos indígenas como parâmetros analíticos e investigativos.

Nesse sentido, creio que nosso papel enquanto indígenas é ajudar a pensar e reformular a discussão. Mas, afinal de contas, o que está por trás da pergunta sobre natureza e cultura entre os povos indígenas? Ou, melhor, porque o não-indígena vai buscar a resposta sobre essa questão entre nós? Qual é a nossa imagem para o não- indígena dentro de tudo isso? Essas são questões que devemos levantar.