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CAPÍTULO II O POVO APURINÃ

Foto 06: Pessoas e animais convivem nas aldeias apurinã.

3.5. O xamanismo apurinã: o mundo dos kusanaty

Não é possível pensar essa discussão sem nos voltarmos aos modos de conhecimento xamânico. Assim, neste tópico, buscarei apresentar a perspectiva apurinã por meio de diversos depoimentos de alguns especialistas e de conhecedores do povo, tomando como fio condutor a figura do xamã kusanaty (ou mỹyty), sua identidade, atuação e formação.

O kusanaty é entendido por nós Apurinã como dotado de faculdades que lhe permitem transitar nos quatro cantos do mundo, em seu corpo ou no corpo de outro ser vivo, sendo visto ou não, em vida ou em espírito, acordado ou em sonho. Ele possui os códigos e técnicas para se comunicar e interagir com os espíritos, com os humanos e com não-humanos. Seus poderes são ilimitados, o que faz dele a figura mais importante entre os Apurinã.

Sua autonomia singular permite ao kusanaty ter domínio sobre os animais, fazendo com que eles ajam sob seu comando. Em muitos casos, o xamã ordena que uma cobra ou outro ser pique/machuque uma pessoa para que, depois, ele mesmo a cure – seja para demonstrar seu poder ou simplesmente para “brincar” com as pessoas de quem não gosta. Isso ocorre de uma maneira que somente outros pajés com saberes análogos podem compreender.

No perspectivismo proposto por Eduardo Viveiros de Castro (2015), todos os seres são representados do mesmo modo e com as mesmas categorias; além disso, todos eles veem (representam) o mundo da mesma maneira – o que muda é o próprio mundo que cada um enxerga. Partindo desse pressuposto, entende-se que cada povo ou sociedade possui mundos heterogêneos e também de representações.

124 Assim, para nós Apurinã, quando um pássaro de nome tykuã emite um determinado canto, ele está nos avisando que é o momento de matar caça grande. Já quando esse mesmo pássaro emite um canto diferente, ele está “agourando” a aldeia, ou seja, alguém poderá ficar doente e até morrer. Nesse caso, o tykuã não é um pássaro comum: ele é dotado de agência xamânica, ou melhor, ele foi um kusanty quando estava neste plano, e seu canto varia de acordo com o sentimento que ele tem pelas pessoas que o escutam.

Viveiros de Castro (2015, p.46) sustenta que a capacidade de ocupar um ponto de vista é mais uma questão de grau, contexto e posição que uma propriedade distintiva de tal ou qual espécie, pois esse último julgamento varia entre povos e mesmo xamãs. Sobre isso, Sarmento (2017c, p.17) afirma que, para os Tukano, apenas os wai mahsã ou yaiwa (pajés) poderosos têm capacidade de metamorfose, em momentos nos quais assumem (vestem a pele, roupa) a forma de animais ou mesmo de humanos, adquirindo suas características e habilidades físicas.

Os kusanaty apurinã são agentes responsáveis por transformações cíclicas do devir humano. Somente a eles, na condição de detentores de conhecimentos e poderes, é permitido transitar livremente pelos espaços do céu, da terra, da água e do ar. Nesses deslocamentos, os kusanaty podem se vestir ou se personificar na pele de qualquer ser existente, fazendo uso de seus conhecimentos e habilidades. Isso depende apenas de seu propósito, contexto e finalidade.

Por exemplo: muitas curas para determinadas doenças não estão aqui na terra. Em casos como esses, o kusanaty precisa viajar em sonhos para outras terras ou mundos. Em uma dessas viagens, ele pode ir até o mundo dos encantados, que fica debaixo d’água47. Para alcançar seu propósito, ele pode então se transformar, tomando a

pele de um ser aquático, como um ximaky (peixe). Da mesma forma, o kusanaty pode tomar a pele de um kyãty (cobra jiboia) para visitar o Kymyrury, a morada dos espíritos48. Viveiros de Castro (2015) sugere que, no momento de alteração em que o

xamã ocupa outro corpo, ele dispõe de um ponto de vista específico.

47 Alguns esclarecimentos: o mundo dos “encantados” (seres espirituais) fica debaixo d’água ou no

Kymyrury; o que habita esse mundo e possui o poder do “encante” (encantar) é o “encantador”. O encante

ocorre por razões distintas: vingança que não conseguiu executar em vida terrena, vontade de querer estar perto de um ente querido, revolta ou punição pela invasão ou desrespeito às moradas dos animais, punição quando alguém rompe com os principio da cultura, etc. Independente de como ocorre, o que o sofreu o encante passa ao mundo dos encantados. De forma mais genérica, os termos “encantado” ou “encante”, no português regional, referem-se ao que está relacionado ao mundo não humano.

125 Essas metamorfoses, contudo, não significam que o kusanaty seja um peixe ou uma cobra e tampouco implicam transformação definitiva: tão logo sua missão esteja concluída, ele deixa o corpo que assumiu, volta a ser humano e segue vivendo normalmente em sua aldeia. Quanto ao peixe e à cobra, eles continuam a ser quem sempre foram – o peixe, inclusive, permanece parte da culinária apurinã.

Segundo Eduardo Viveiros de Castro (2015, p. 49-63), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, coisa que os leigos dificilmente podem fazer. Apenas os xamãs, que gozam de uma dupla (ou múltipla) cidadania cósmica, podem se comunicar entre as formas e os mundos sob condições especiais e controladas.

Para os Nambiquara, muitas vezes as entidades espirituais, premeditadamente, se apresentam a eles em forma de animais. As pessoas que não têm o dom da visão são facilmente induzidas a erro, uma vez que não conseguem reconhecer quem se dissimula sob aquela imagem. (COSTA, 2009, p. 274-275).

Por sua vez, os xamãs apurinã do passado eram vislumbrados viajando pelos rios como cobras, ou pela terra como onças. Com um esturro, eles tanto apareciam como desapareciam rapidamente do terreiro da aldeia. Ao fim da tarde, o mapỹkãuary (mapinguari) visitava os Apurinã para conversar e fazia chover fogo quando as crianças eram desobedientes (cf. SCHIEL, 2004).

Na concepção de muitos povos indígenas, os xamãs andam pelo mundo como onças; ser onça é uma “capa” que ele veste. Entre os pajés, é comum a existência de espíritos auxiliares, dos quais a onça muitas vezes é o principal. Segundo Viveiros de Castro (2002), a transformação em onça corresponde a uma alteração de ponto de vista; por isso, quando o xamã está onça, ele pode ver seus parentes como presas. Esta fala de meu pai exemplifica a questão das perspectivas e investidura de outro corpo:

Durante ritual de iniciação, o kusanaty em formação tem vários encontros no mato com seu guia espiritual ou professor, geralmente nessas ocasiões seu guia está na pele de kyãty (cobra jiboia) ou hãkyty (onça) e um dos propósitos é testar a coragem do iniciante. Quando ele ultrapassa essa etapa, é presenteado com arapany (pedra do conhecimento), a qual vai lhe conferir poderes tanto para fazer o bem como o mal. Mas, antes de entregar a pedra, seu guia que naquele instante é onça ou cobra jiboia, se transforma novamente em humano e convida o futuro pajé para passar awiry (rapé) em sua mão (Katãwiry, setembro de 2016, Rio Branco-AC).

126 O que dizer, então, dessas trocas de peles que oscilam constantemente? Penso que, nessa ocasião, o kusanaty possui um ponto de vista singular. Aqui, há racionalidade e um pensamento humano. Todavia, para aguçar ainda mais esse debate, deixo a seguinte indagação: a metamorfose dos xamãs ocorre de fato?

Obviamente, não se pode resolver essa questão. Mas, em termos antropológicos, podemos analisar suas relações. Uma vez que, ao nos depararmos com o problema, poderá surgir uma ou muitas ambiguidades, desejo informar algo a partir do que percebo no universo apurinã. A saber: nesses processos de metamorfose, o kusanaty que veste a pele de outro ser será visto por outros kusanaty poderosos como gente ou espírito. Os leigos (aqueles que não dispõem dos conhecimentos xamânicos), por outro lado, quando encontram os kusanaty que se transformaram ou teoricamente faleceram, vão dizer que viram uma alma, e não gente ou espírito, associando a imagem a algo sobrenatural ou nefasto49.

Tanto o que foi dito por Viveiros de Castro (2015) como o que foi dito por meu pai têm a ver com os aspectos ontológicos do ser kusanaty e sua capacidade de transformação. Não obstante, a partir dos conhecimentos apurinã, posso fazer a leitura de que ser ou estar na condição de onça cabe ao kusanaty em pelo menos três situações: (i) transformar-se em onça e permanecer em sua pele; (ii) transformar-se em onça para o cumprimento de um propósito apenas; e (iii) ser onça somente na visão de uma pessoa comum.

As três situações são ativadas pelo kusanaty, visto que apenas ele possui tal capacidade e a exerce de forma consciente. Nesse caso, é descartada qualquer ação

49 No universo apurinã, “espírito” se chama ỹburãny e “alma” se diz kamyry. Ambos fazem parte de uma mesma pessoa, porém possuem sentidos heterogêneos. “Espírito” é o que dá vida a todos os seres vivos e é também o que se vê como gente. Dizem os toty que, quando a pessoa morre, seu espírito vai direto para o céu, onde está Tsura. Eles acrescentam que o céu possui divisões para cada espírito, a depender do que causou a morte de cada pessoa. Os trovões também são parte integrante neste contexto, o nome será de acordo com o lugar que eles soam. Meu pai, quando escuta determinado trovão, logo diz que algum Apurinã morreu ou está muito doente. Em outro momento, quando troveja diferente, ele diz que está tendo ỹbyrykaru (festa no céu): Tsura e os espíritos estão fazendo festa para receber o parente que faleceu.

No caso da “alma”, trata-se daquela parte da pessoa que permanece nesta terra depois da morte, geralmente assustando ou perturbando as pessoas. Assim, é comum ouvir na aldeia: “Hoje eu escutei a alma de fulano batendo machado como ele gostava de fazer!”. De acordo com os toty, elas ficam por aqui na terra por um período indeterminado para pagar o que fizeram de ruim em vida; ficam até evoluir e, depois, finalmente sobem para o céu. Esse período na terra é tido como de sofrimento – inclusive, algumas almas aparecem em forma de sombras ou vultos para pedir desculpas a alguém a quem em vida ela fez algum tipo de maldade. Contudo, esse período na terra está condicionado à quantidade de coisas ruins que a pessoa fez. “As almas são temidas. Teme-se passar em cemitérios, moradias onde muitos já morreram, ou locais onde aconteceram conflitos. Para acalmá-las são realizadas isaĩ (festas) por dois ou três anos seguidos, ou enquanto a alma solicitar, em sonhos” (Schiel. 2005, p. 93).

127 inconsciente ou alteração de ponto de vista – coisa na qual as descrições ou debates etnológicos ainda não atentaram. Ou seja: nesses processos de metamorfose, o kunasaty opera de forma consciente e lúcida; não há perda de memória, muito menos irracionalidade.

No entanto, há ocasiões em que a onça ou qualquer outro ser age sob o comando do kusanaty – o que geralmente ocorre para fins particulares ou lúdicos. Quando se ordena que um macaco bata no caçador ou que uma cobra pique alguém, por exemplo, os seres que são manipulados pelos kusanaty apenas cumprem o que lhes foi ordenado. Em casos como esses, talvez possa haver ação inconsciente ou insatisfatória pelo lado do amal.

De acordo com Adilino Apurinã em depoimento a Schiel (2004), ser onça é uma “capa” que o pajé veste; em outras palavras, trata-se de algo exterior, sobre o que o pajé tem total controle. Ao conversar com meu pai Katãwiry sobre esse assunto, ele me disse:

Aquilo que as pessoas veem como bichos, o kusanaty vê como gente. Eles não morrem, apenas se transformam e vão habitar outros mundos. Quando isso acontece, eles dão instruções de como querem ser enterrados para facilitar sua saída dos buracos. Dias depois, eles eram vislumbrados entre bandos de irary (queixadas) e myyryty (porquinho). Pelo menos é nessa qualidade que conversam com os pajés humanos (Katãwiry, outubro de 2016, Rio Branco-AC).

A fala do meu pai nos ajuda a entender melhor como ocorrem as metamorfoses ou as múltiplas identidades do kusanaty. Consideremos, portanto, o que foi dito mais acima: a transformação do kusanaty em outro ser ocorre pelo menos em três situações. Para exemplificar a questão, mobilizo novamente a figura da onça. A morte de um pajé não é como a de outras pessoas. Ele não morre de fato; antes, é comum que se transforme em onça. É por isso que alguns Apurinã enxergam como parentes aquilo que muitas pessoas veem como animais.

Nesses casos, o kusanaty como onça geralmente passa a habitar outros espaços (terras dos encantados, terras das onças, o campo de natureza e até mesmo o céu, onde mora Tsura). Isso, entretanto, não é regra: ele também pode permanecer nesta terra, em corpo de humano ou de outro ser, a depender apenas do contexto e de sua intencionalidade. Porém, haverá casos em que o kusanaty – mesmo que já tenha saído deste plano físico – será onça somente para alcançar um determinado propósito. Nessas

128 ocasiões, quando visto como onça por pessoas comuns, a imagem será temporária e momentânea; depois disso, ele é visto como gente novamente.

Neste ou em outro plano, o kusanaty tem poder de se trasnformar no que ele quiser – inclusive nele mesmo –, e apenas outro xamã com poderes análogos pode compreender esses movimentos.

3.5.1 Kusanaty: os diplomatas do cosmos

As questões até aqui levantadas propõem uma discussão acerca da ontologia do xamanismo apurinã. As reflexões que seguem resultam de diferentes perspectivas: breves análises acadêmicas no campo da antropologia; a vivência nativa mediada pelo treinamento antropológico; e a vivência proporcionada por diálogos entre o autor e detentores desse e de outros conhecimentos.

Assim, visando a um melhor entendimento, será necessário conduzir a leitura por uma viagem mais profunda ao mundo dos kusanaty apurinã. Nela, serão descritos seu processo de iniciação e de aquisição de poderes, usados tanto para curar como para causar doenças; as transformações necessárias para habitar outras terras e mundos; os conflitos de vingança; suas dietas; a manipulação de objetos usados durante os procedimentos de cura; e também as práticas de atenção que os kusanaty realizam para promover a saúde e tratar as doenças, abordando, ainda, sua relação com o campo da biomedicina.

Iniciemos por esta informação: segundo nossos kiiumanhe (troncos velhos), há dois tipos de xamãs kusanaty: um trabalha somente com as plantas medicinais, encontradas na floresta e utilizadas para banhos, chá e rezas durante rituais de cura; o outro opera com poderes materializados em pedras introduzidas no próprio corpo, denominadas arapany50.

Aqui, é desse segundo tipo de kusanaty que tratarei. Eles são os verdadeiros diplomatas do cosmos: são os que detêm os conhecimentos tanto para curar como para causar doenças e até mesmo matar; os que dominam os códigos para se comunicar com os espíritos, habitantes de outras terras ou mundos; os responsáveis por acontecimentos inusitados que transcendem aquilo que nossos olhos estão habituados a enxergar; os que veem coisas que já aconteceram e preveem o que ainda pode acontecer. Esses kusanaty

50 O arapany é a pedra constituída de poderes adquirida pelos kusanaty durante sua iniciação, ela é ao mesmo tempo o que lhe permite curar e a que lhe permite causar doenças e até matar. Quando o kusanaty recebe uma pedra, ele a introduz em seu corpo e assim vai introduzindo todas as demais recebidas, cada uma possui um poder de e curar e de fazer o mal diferente.

129 atuam em cerimônias, em transes, em sonhos, em leituras dos sinais específicos, no plano físico e também plano metafísico, de um modo que somente outros pajés com saberes análogos conseguem compreender.

Em relação a isso, Katãwiry relatou que meu tataravô, que era kusanaty, agia da seguinte forma:

Meu bisavô Maruky sentava no terreiro da aldeia à noite e chamava seus netos para mostrar e falar da importância das estrelas para o mundo e também para os Apurinã. Ele pedia que nós focássemos nosso olhar numa estrela que estava mais distante das outras no céu, ali todos seguiam suas orientações observando bem a estrela indicada, e por meio do myxykanu51 meu bisavô puxava a estrela e botava em sua mão. O brilho dela era tão ofuscante que não conseguíamos olhar fixamente para ela. Minutos depois, ele soprava devolvendo-a para o seu lugar novamente. (Katãwiry, novembro de 2014, Rio Branco).

Para compreendermos melhor o universo em que atuam os kusanaty, faz-se necessário olharmos mais atentamente a cosmologia do povo apurinã. Aqui, o kusanaty é sem dúvida a pessoa mais importante para o bem-estar coletivo, pois é detentor de conhecimentos fundamentais que lhe permitem curar os doentes e proteger as pessoas de sua e de outras aldeias contra os ataques de outros kusanaty. Isso em diversos planos: os kusanaty atuam tanto acordados como em sonhos, em forma de humano e de não- humano e ainda protegem seu grupo contra os ataques de seus inimigos visíveis ou não. Segundo relato de Valdimiro Apurinã (em SCHIEL 2004, p. 99), os antigos kusanaty poderosos controlavam o tempo. Nos temporais, podiam lançar doenças. Pois a pedra arapany do pajé podia acompanhar os fenômenos, como a chuva com sol, o tempo vermelho. Muitas epidemias eram atribuídas a essas pedras e alguns pajés eram responsabilizados pela morte de aldeias inteiras. Pajés habilidosos, acordados ou em sonho, aparavam com seu myxykanu (cano de aplicar rapé) as pedras de doença que vinham às suas aldeias.

Eles atuam interagindo em suas mais variadas ações nos quatros cantos do mundo: céu, terra, água e ar. Fazem isso sendo vistos ou não, em corpo humano ou não, com som ou simplesmente em silêncio. Por isso, os pajés são vistos por nós como os

51 Myxykanu ou katukanu é um objeto feito, sobretudo, de osso da asa ou da canela de kukui (gavião real), mas que também de outras aves como o kãbukyry (jacu), ytsamãnery (jaburu) ou mesmo do braço do

tykoty (macaco prego). É usado para tomar awiry (rapé). Em tempos anteriores era somente usado pelos kusanaty, principalmente para retirar as pedras que causam enfermidades nas pessoas. Durante o ritual de

cura, além de mostrar o tipo de doença, eles explicam quem a causou. Em seguida, a pedra é introduzida no corpo do próprio pajé para adquirir mais poder, ou é jogada no kusanaty que casou a doença.

130 “maiores de todos”: aqueles que orientam, que curam, que defendem ou protegem, que representam, que ressignificam e que se personificam em outros corpos existentes. Por essas e outras razões, talvez a expressão diplomatas do cosmos seja a designação que mais se aproxima de sua identidade representacional, mística e ontológica52.

Como é afirmado em narrativas míticas indígenas e confirmado por muitos pesquisadores em suas investigações, nos primórdios da humanidade, os animais falavam. Contudo, devo dizer que muitos deles continuam falando – se é que posso chamá-los de animais, uma vez que tanto eles como os kusanaty vivem em plena metamorfose, trocando de pele e ocupando o corpo de outro.

Os kusanaty, assim, oscilam entre a forma kãkyty (gente) e as formas hãkyty (onça), kyãty (cobra jiboia) e assim por diante. Quando é concluída sua missão neste plano físico, alguns deles permanecem aqui, enquanto outros passam a habitar o mundo dos espíritos no Kymyrury, em corpo de kãkyty ou não. Há, ainda, um grupo que vai morar em ykerexitxi (céu) ou “terra alta” com Tsura, mantendo a mesma relação de cuidado e proteção com suas aldeias.

Isso, a meu ver, aproxima-se da perspectiva yanomami apresentada por Davi Kopenawa, quando ensina que:

Mas [os xapiri] não são imagens dos animais que conhecemos agora. São imagens dos pais destes animais, são imagens dos nossos antepassados. No primeiro tempo, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados eram humanos com nomes de animais e acabaram virando caça. São eles que flechamos e comemos hoje. Viraram caça há muito tempo, mas seus fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de animais, mas são seres invisíveis que nunca morrem (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 2).

O universo místico que envolve os kunasaty é amplo e pessoal. Contam os kiiumanhe que os kusanaty são detentores de poderes capazes de cegar, mutilar ou até matar pessoas apenas com seu olhar. De um tempo para cá, a forte pressão colonizadora atrelada aos inúmeros impactos sociais, ambientais e culturais têm causado sérias transformações no modo de vida do povo Apurinã, implicando inclusive o enfraquecimento de práticas xâmanicas. Isso abriu discussões com afirmações,