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Breve relato sobre o contato que nunca acaba da região de Boca do Acre Os riscos desses processos e usos descontrolados são herança da espoliação colonial que

CAPÍTULO II O POVO APURINÃ

Foto 05: Yrarewa Apurinã, fisioterapeuta da CASAI.

2.7. Breve relato sobre o contato que nunca acaba da região de Boca do Acre Os riscos desses processos e usos descontrolados são herança da espoliação colonial que

penetra e solapa todos os aspectos de nossas vidas. Assim, ainda que o propósito deste trabalho não seja discorrer sobre o processo de colonização ao qual foram submetidos os Apurinã e demais povos da região, é importante enfatizar analiticamente alguns pontos. Iniciemos ouvindo o que Yakutê (Antonio Apurinã) me disse sobre esse assunto, em um diálogo ocorrido em julho de 2018, na TI Kamikuã, aldeia de mesmo nome. Naquela oportunidade, indaguei:

Francisco Apurinã: Considerando o passado, presente e perspectivas

futuras, quero saber qual sua avaliação desses contextos.

Yakutê: Nosso povo no passado era escravo do kariua (não indígena),

os quais nos submetiam a serviços escravos, nos enganavam, roubavam nossas mulheres e nossa identidade. Éramos proibidos de falar nossa língua materna, inclusive sendo obrigados a deixar de praticar nossos rituais mais importantes e sagrados. Isso resultou que muitos de nós atualmente não falamos mais a nossa língua materna, mas isso não foi tudo. Ficamos vários anos sendo empregados dos patrões, na época em que a seringa dava muito dinheiro. A gente fazia algumas compras fiadas no comercio do patrão, que naquele tempo era chamado de “barracão” para poder começar “cortar seringa”. Um mês depois, quando retornávamos para entregar o produto, nesse caso, a borracha já pronta surgia um grande problema, - nunca tínhamos saldo, sempre ficávamos devendo, foi assim por vários anos. De qualquer modo, tínhamos que se sujeitar a isso, pois não haviam outras alternativas. Depois desse tempo, ouvimos falar que o índio tinha alguns direitos, tais informações vieram através dos missionários, mas não conhecíamos e nem tampouco sabíamos como acessá-los. Foi aí, que iniciamos nossas primeiras articulações fora da aldeia e foram também naquele período que os primeiros missionários chegaram às nossas aldeias. Alguns deles procuraram abrir nossos olhos e dizer, que poderia nos ajudar a conhecer nossos direitos. Realmente eles nos ajudaram bastante, mas essas mesmas pessoas que diziam serem nossas amigas, também de alguma forma nos prejudicaram. Foram eles que tentaram desconstruir nossa forma de enxergar o mundo, a partir dos mitos, das histórias contadas pelos mais velhos, incluindo nossas cosmologias e religiosidade. Logo depois desse período, apareceu a FUNAI falando a mesma coisa, que nós tínhamos direitos e que o órgão indigenista seria nosso chefe e representante para buscá-los. A FUNAI dizia que a primeira coisa que tínhamos de fazer era lutar pela demarcação da nossa terra. Isso nos deixava muito confuso, porque, na minha cabeça, a terra já era nossa,

90 afinal de contas, nascemos e crescemos nela. Já na década de 80 foi quando realmente demos conta que poderíamos buscar e fazer valer o que estava previsto na lei, sobretudo o que estava garantido na constituição de 1988. Foram momentos de tensões, principalmente quando iniciou o processo de regularização fundiária, que visou à demarcação dos nossos territórios. O fato foi que nesse período apareceram vários donos das nossas terras, os quais passaram a serem nossos inimigos, justamente aqueles que no passado se diziam nossos amigos. Essas pessoas eram em sua maioria fazendeiros que vieram de diferentes lugares do Brasil e se instalaram em nossas terras. Mesmo assim, muitos de nossos territórios foram homologados, mas para isso acontecer tivemos que brigar, derramar sangue e até morrer, mas também matamos alguns deles. Hoje a nossa Terra Indígena Kamikuã está devidamente homologada, registrada e carimbada, foi no ano de 1991 reconhecida pelo governo federal. Isso para nós representa uma grande vitória frente às diversas lutas que enfrentamos. É obvio que os problemas continuam existindo, mas podemos dizer que numa menor escala se comparado com antigamente. Ter uma terra para dizer que é nossa não se restringe somente em ocupá-la, mas, sobretudo, em defender e proteger as riquezas que há dentro dela, preservar as vidas que estão na floresta, porque tudo foi criado por Tsura, ele pediu para nós cuidar de sua criação, assim nunca nos faltaria alimento e a saúde. É dentro da mata que está a nossa história e essência, sem ela e os demais seres vivos perde o sentido de nossa existência.

Francisco Apurinã: qual sua visão de futuro para o nosso povo? Yakutê: com relação à parte do território, conseguimos dar um passo

importante, agora precisamos preparar pessoas, tanto com o nosso conhecimento cultural, quanto com o conhecimento do homem branco, acredito inclusive que a palavra de ordem seja organização, assim poderemos pensar como queremos caminhar daqui para frente, tendo em vista que não somos mais aqueles indígenas do passado, muitas coisas mudaram para melhor, outras nem tanto, mas podemos dizer que sabemos em qual porta bater para reivindicar nossos direitos, sem esquecer-se também de nossos deveres. Para tanto, precisamos resguardar aquilo que é da essência, da cultura, da tradição, do conhecimento e da origem do nosso povo, sem isso a gente vai traduzir uma coisa muito ruim, talvez no futuro questionar nossa própria identidade étnica, ou melhor, não saberemos se somos indígenas ou kariua. Penso, para o futuro, que devemos profundamente cada dia estudar essa questão dos nossos direitos culturais, nosso envolvimento e divisões clânicas, mas, por outro lado, devemos também estar a cada dia mais inserido na educação do homem branco para que possamos dialogar no mesmo nível com eles sobre qualquer assunto. Então a ideia é formar pessoas em diversos cursos, até mesmo por questão estratégica de defesa do nosso povo, pois na medida em que os debates forem surgindo nós iremos participar, mas de maneira preparada e qualificada. Daqui para frente, temos uma grande responsabilidade com essas questões e por isso, mesmo, precisamos projetar boas reflexões no sentido de absorver somente o que for melhor para nosso povo e para nossas aldeias. Yakutê, como prefere ser chamado, é uma pessoa admirável e, além ser uma referência para mim e também para muitos Apurinã, ele é um de nossos diplomatas.

91 Suas palavras são suaves, entusiásticas, coerentes e sábias – verdadeiras fontes de inspiração. Em seu depoimento, considerando o espaço temporal de nossa trajetória, Yakutê apresenta, com sofisticação e leveza, um panorama ilustrativo das dificuldades de um passado amargo, dos avanços do presente e de suas expectativas para o futuro.

De acordo com Virtanen (2016), antes da chegada dos não-indígenas à região do rio Purus, os deslocamentos dos povos indígenas eram bem distintos dos atuais; não havia limites territoriais para suas diversas atividades tradicionais. Os movimentos – tanto os do passado como os atuais – estão sobretudo ligados à subsistência, organização social e ocupação de território. Entretanto, atualmente, os deslocamentos estão muitas vezes também ligados à política e a re-territorialização. O processo de regularização fundiária imposto pelo governo federal – cujo discurso é “terras coletivas para uso dos recuros naturais” –, deixou nós povos indígenas restritos a pedaços de terra cercados por fazendeiros, ruralistas, assentamentos e outros vizinhos que tendem a invadir a área que nos restou. Além disso, alguns locais do nosso território que reconhemos como importantes – como cemitérios, moradas dos espíritos, colocações de caças etc. – ficaram, em muitos casos, fora dos limites territoriais demarcados pelos governos.

Como bem mostra a autora, a chegada de não-indígenas à nossa região – vindos de várias partes do Brasil, mas principalmente do Nordeste, com o intuito de explorar os recursos naturais amazônicos – causou, de fato, sérios impactos ao modo de vida das pessoas que estavam aqui. Poderia-se fazer uma extensa lista desses impactos, que foram e continuam sendo prejudiciais às nossas aldeias; entretanto, não é esse meu propósito, pelo menos não neste trabalho. Assim, seguirei falando de um processo nocivo, que desencadeou conflitos seguidos de mortes entre os povos originários dessa região, inclusive entre os Apurinã.

Todavia, antes de prosseguir, cumpre destacar que as mortes às quais me refiro não se restringem aos casos de homicídio, nos quais o que se mata é o corpo de uma pessoa; aqui, falo também de crimes de etnocídio, que matam os valores oculturais, a substância que faz não apenas uma pessoa, mas toda uma comunidade ou povo. Esse processo genocida, etnocida e explorador recebeu dos seringalistas o nome de “correrias”, e era perpassado por um conceito de terra que muito difere do entendimento indígena. A respeito disso, vejamos o que diz Vanessa Watts-Powless (2017):

92 Ao longo do tempo e através de processos de colonização, as fronteiras corporais e teóricas da divisão epistemológica-ontológica contribuíram com as interpretações coloniais de natureza/criação que atuam para centralizar o humano e deslocar a natureza à periferia em uma relação de exclusão. Terra torna-se dimensionada e modificada em termos de progresso e avanço. Historicamente, a medida da interação colonial com a terra tem sido de violência e individualizações demarcadas, onde a terra está para ser explorada, não para aprendermos com ela e sermos parte dela (WATTS- POWLESS, 2017, p.11).

Por muito tempo, os donos de seringais utilizaram o termo “correrias” para designar o expediente pelo qual, a fim de ampliar as áreas de exploração da borracha e de outros recursos naturais, promoviam diversos massacres dos habitantes originários do local e a supressão de seus costumes. Nesse horizonte sombrio, a promoção de correrias foi uma estratégia seringalista que impulsionou a dispersão de povos indígenas na região. Depois daquele período assombroso, muitas aldeias deixaram de falar sua língua materna e de realizar seus principais eventos culturais (CONSÓRCIO CONTÉCNICA E LAGHI, 2016, p.96).

Para Iglesias (2010), as correrias eram realizadas “se a presença indígena ameaçasse seu desenvolvimento [da empresa seringalista], [e] elas seriam patrocinadas para destruir as malocas comunais, matar parte dos moradores, forçarem a saída dos sobreviventes e, em certos casos, capturar mulheres e crianças indígenas” (IGLESIAS, 2008:65). Como resultado desse período, restou um conjunto de sequelas, entre elas a discriminação racista.

2.7.1. Indianidade: afinal de contas, o que restou de nossa identidade?

Nesses contextos históricos, nós indígenas nos deparamos com um verdadeiro paradoxo, fruto de um sistema colonizador brutal, etnocida e preconceituoso, cuja primeira imposição foi nos forçar a abrir mão de nossa identidade para sermos aceitos numa sociedade extremamente etnocêntrica. Além disso, esse processo esquizofrênico nos tornou inferiores frente às demais pessoas; os colonizadores alegavam que nossa língua era feia e que nossos grafismos e rituais tinham origem e finalidade diabólica.

Sem identidade, sem valores culturais e com vergonha de sermos indígenas, muitos migraram para os municípios mais próximos em busca de novas identidades e de melhores condições de vida. Muitos, inclusive, vislumbravam tal possibilidade de melhoria na educação; fato que levou ao afastamento em relação aos territórios e aos aspectos culturais, assim como à perda da língua materna.

93 Nesse novo contexto de desafios e enfrentamentos, surgiram inúmeros termos para se referir a diferentes destinos impostos a nós indígenas: índio aculturado, índio exótico, índio do Paraguai, índio hippie e, ainda, índio falso. Ou seja, num primeiro momento ser indígena com identidade étnica reconhecível era perigoso e sinônimo de coisa ruim. Mas, num segundo momento, a ausência daqueles mesmos valores e práticas que fomos obrigados a deixar para trás nos deixa numa condição duvidosa, ao ponto de gerar até mesmo um autoquestionamento de identidade. Esse tipo de preconceito explícito se amplia quando fazemos uso de materiais, equipamentos ou qualquer outro objeto ou costume do mundo ocidental.

O indígena deixa de ser indígena quando sai de sua aldeia para residir na cidade? Se assim for, o norte americano, o japonês ou o boliviano deixariam de ser quem são quando vão para outros países, inclusive para morar? A meu ver, independentemente de sua raça, religião, cor ou etnia, as pessoas sempre vão trazer algo de sua origem e de seu modo de ser. O que verdadeiramente conta é como essas pessoas se percebem no mundo e estabelecem suas relações com seus lugares de origem. Por tanto, os lugares de residência e o uso de objetos ou quaisquer outros elementos não podem ser tomados como parâmetros para medir e questionar a indianidade de alguém, desvalidando uma identidade que se traduz em luta e resistência.

Esse olhar preconceituoso de muitos abre precedente para pensar, por exemplo, que quando um português vem passear ou morar no Brasil, e aqui compra um óculos ou outro objeto qualquer para usar, certamente deixa de ser quem é. Ainda usando o português como exemplo, agora no contexto do primeiro contato do europeu com os indígenas, é certo que as indumentárias usadas por Pedro Alvares Cabral não são as mesma usadas pelos portugueses contemporâneos.

Partindo dessas observações, questiono: o aspecto dinâmico da cultura – que inclui mudanças, transformações, ressignificação, invenção e reinvenção – por acaso não se aplica aos povos indígenas? Ou se aplica apenas quando conveniente às outras sociedades? Ou, ainda, por que somente os indígenas, para serem reconhecidos como tal, têm que se manterem na aldeia, usando suas indumentárias, adornos, pinturas corporais e sem nenhum acesso às coisas de fora?

Acredito que esses estereótipos e argumentos já deveriam fazer parte do passado, porque é descabido lançar mão das consequências do processo genocida e etnocida que é a colonização para – parte de um movimento fundamentalmente etnocêntrico – deslegitimar nossa indianidade. Nesse sentido, devo dizer que ser

94 indígena é muito mais que o prescrito pelo estereótipo; é algo que não está na condição do querer, mas, sim, na qualidade do ser, por razões óbvias e fundamentais: nossa memória, nossa história, o pensamento coletivo, as ideias e interesses mútuos são aspectos relevantes para a autodeterminação e afirmação de nossa identidade.

Ao menos no contexto a partir do qual falo, o indígena pode passar grande parte de sua vida morando fora de sua aldeia, falar outra língua, adquirir novos hábitos e mesmo construir família fora de seu povo. Ainda assim, ele nunca vai deixar de ser quem é, pois ele possui uma identidade própria e específica que o torna diferente dos demais. Isso me faz lembrar do conceito de transfiguração étnica de Darcy Ribeiro (2010). Dentre outras coisas, o autor ressalta que nem mesmo as transformações étnicas impostas pelo processo colonizador – que obrigaram muitos índios a deixarem suas aldeias para se instalarem nas periferias das cidades – puderam fazer com que os indígenas deixassem de ser aquilo que são; basta que eles vejam, ouçam ou lembrem-se de algo de sua aldeia para que sejam transportados imediatamente ao seu lugar de origem.

Assim, finalizo este capítulo citando o que disse a também indígena Vanessa Watts-Powless (2017, p. 19):

[C]omo pessoas indígenas, a comunicação com Lugar- Pensamento (cerimônias com a terra, território, as quatro direções etc.) não é apenas uma obrigação, ela assegura nossa capacidade contínua de agir e pensar de acordo com nossas cosmologias. Evitar estas práticas nos ensurdece. Não é que o mundo não humano deixe de falar, mas nós passamos a compreendê-lo cada vez menos. É por isso que, apesar de quinhentos anos de colonialismo, nós ainda não estamos completamente colonizados e nós ainda continuamos a lutar; nós temos dentro de nós a capacidade de nos comunicarmos com a terra, mas a nossa agência como povos indígenas foi corrompida no interior da estrutura colonial.

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CAPÍTULO III – UM OLHAR SOBRE O COSMOS:

RELAÇÕES ENTRE HUMANOS E NÃO-HUMANOS