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Capítulo 3 – Underground Comix – Quadrinhos grotescos, independência e

4. Udigrudi: Apropriação e ressignificação do Comix nos quadrinhos

4.2. Balão e Bicho

Apenas um mês após figurar nas páginas da Grilo, Laerte encontraria na resistência da imprensa nanica, ligada à vida universitária, a ocasião para principiar sua carreira quadrinística. Junto a Luiz Gê, então um estudante de arquitetura da mesma universidade, propôs a criação da Balão, primeira grande revista udigrudi inteiramente dedicada a autores brasileiros, com o intuito aberto de trazer, nas palavras de Henrique Magalhães em O Rebuliço Apaixonante dos Fanzines, “grande renovação gráfica e temática aos quadrinhos brasileiros, abrindo espaço para a publicação de trabalhos que não podiam circular em outras revistas por questões políticas ou por causa da proposta experimental” (MAGALHÃES, 2003, p. 18).

FIGURAS 45 e 46 – Revista Balão, números 1 (capa de Luiz Gê) e 8 (capa de Chico Caruso). 1971 e

1972, respectivamente.

Ao longo de nove edições, sob baixo custo de impressão, tiragens que não ultrapassavam 1.000 exemplares eram esgotadas na venda de mão em mão promovida

pelo coletivo de quadrinistas. Dentre eles, figuras como Xalberto, Angeli, Paulo Caruso e Chico Caruso. Cada edição propunha um tema, nem sempre seguido à risca pelos artistas: o futebol, a malandragem, a política local do campus, a política da América Latina, luta de classes, conflitos de geração nas famílias e a própria problematização entre o que era quadrinho underground e o que era mainstream.

As pequenas tiragens e o modo rudimentar de distribuição garantiam, ao menos, a liberdade de experimentação de linguagem e, mais que isso, a sensação de escape, mesmo que momentâneo e relativo, do radar da censura. Em entrevista à edição número 3 da revista Mil Perigos, de 1991, Luiz Gê contextualiza o panorama interno e externo da Balão:

Era uma época de repressão bem dura mesmo, Médici e tal. O Lamarca morrera um pouco antes, a destruição da guerrilha tava começando. Nós estávamos a fim de dizer cada vez mais coisas e aí a solução foi o papel ofício, dobrado ao meio e grampeado. Foi a maneira mais prática, rápida e barata de se fazer a revista naquele momento. (...) O contato, a troca de experiências, criou quase que um movimento, uma filosofia de trabalho. Foi a faculdade dentro da faculdade. A partir do Balão, surgiram uma porção de revistas underground do Brasil inteiro, mais ou menos nos mesmos moldes. (GÊ, 1991, p. 37)

Em História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros, Moacy Cirne atesta essa influência da Balão como estopim de toda uma movimentação da contracultura quadrinística, deglutindo o que vinha de fora de modo antropofágico, como já se fazia na música, no teatro e no cinema brasileiros. Para o pesquisador, em 1973 a Balão já encenava a luta subversiva do “‟luxo contra o „lixo‟, o „puro‟ contra o „impuro‟. Tio Patinhas contra Balão” (CIRNE, 1990, p. 70). Sob influência da abertura promovida pela revista de Gê e Laerte, Cirne lista o surgimento de mais de 20 publicações de revistas em quadrinhos no período, tais como O Outro (de Recife), Risco (Brasília),

Meia Sola e Almanaque de Humordaz (Belo Horizonte), Vírus e A Mosca (Rio de Janeiro), Garatuja e Boca (São Paulo). Essa última, promovida pelos alunos da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), chegou a publicar o então estreante Francisco Marcatti.

Nadilson Manoel da Silva, no artigo As Histórias em Quadrinhos tornam-se

adultas (2002), enumera seis pontos comuns entre tais publicações, todos eles consideravelmente parelhos àqueles promovidos pelo underground americano: a venda de mão em mão; a tiragem limitada; periodicidade irregular ou inexistente; o

desprendimento quanto aos lucros, que eram, no máximo, suficientes para o autogestão da revista, sem necessidade de anúncios; crítica aos quadrinhos tradicionais; tendência de expressar a visão de mundo do seu autor, reforçando a marginalidade e autoralidade daquelas páginas.

Nesse período, publicar um quadrinho era ao mesmo tempo uma atitude política. A estética desses quadrinhos tinha uma intenção explícita de desafio às propostas mais comerciais; os autores tentavam ressaltar que havia várias formas de se posicionar diante da realidade. (...) Pode ser dito que o Balão representou um ponto de mudança para os quadrinhos brasileiros e serviu como espécie de escola para novos autores, tais como Luís Gê e Laerte. Além disso, esse tipo de quadrinho era chamado de „udigrudi‟, uma adaptação brasileira para a palavra “underground” americana” (SILVA, 2002, p. 4 e 5). Crescendo no meio universitário e se tornando comentada entre outras publicações alternativas, a Balão entraria em divergência para rumos futuros: permanecer underground, quase um fanzine, ou profissionalizar-se e ir às bancas.

Na dúvida, acabou acontecendo a implosão da revista. E, dos restos dela, o reagrupamento através da revista O Bicho, essa sim uma publicação profissional, publicada pela Codecri, editora que publicava a turma do Pasquim. Cirne (1990) entende que está nas duas revistas, Balão e O Bicho, o germe do udigrudi: a primeira deu forma e força à produção marginal, enquanto a segunda viabilizou comercialmente a marginalidade.

Nas páginas das oito edições de O Bicho, havia espaço para jovens como aqueles mesmos da Balão, mas eles se encontravam naquelas páginas com histórias inéditas de veteranos como Jaguar e Nani, republicações de Millôr Fernandes e Luiz Sá, além do cartunista Fortuna, editor e aglutinador dessa ponte entre gerações. A tiragem era de 15 mil exemplares, vendidos em bancas, sob o slogan de “Cartuns e Quadrinhos Não Enlatados” (Figuras 47 e 48).

FIGURAS 47 e 48 – O Bicho, números 3 e 4. 1975.

A descontinuidade dessas revistas, contudo, deixou claro que ficaria para a década seguinte a responsabilidade de finalmente firmar, do ponto de vista mercadológico, histórias em quadrinhos de provocação sociopolítica e experimentação narrativa. De todo modo, o recado estava dado e a chama estava acesa – aqueles jovens brasileiros haviam entendido os comix e se apropriariam dos conceitos deles à sua maneira particular.

Portanto, compreender a história dos nossos quadrinhos alternativos é compreender o contexto de sua radicalidade. É compreender os seus problemas editoriais (a partir de problemas financeiros concretos) e as suas ilusões conteudísticas. É compreender a sua relação antropofágico- oswaldiana com os comix underground dos Estados Unidos. (CIRNE, 1990, p. 73)

A nova conjuntura política do país, claro, também contribuiria decisivamente para a mudança de discurso do que viria nas HQs a seguir.