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O presente trabalho propõe a análise de discurso como ferramenta para trabalhar o problema de pesquisa, sob estudo de caso das obras dos quadrinistas escolhidos, Lourenço Mutarelli e Francisco Marcatti.

Na interpretação dos fenômenos e atribuição de significados característicos de uma pesquisa qualitativa, tornam-se especialmente importantes, para esta pesquisa, os conceitos de exclusão propostos por Michel Foucault na sua Ordem do Discurso (1970).

Tendo como objeto obras quadrinísticas provocadoras, desafiadoras em seu desejo pela transgressão dos tabus em que estão inseridas, parece lógico que paire sobre elas, como certamente paira sobre tudo, um aparato social que procure controlar, selecionar e distribuir tais discursos (FOUCAULT, 2009, p. 9).

Sabemos que não é possível, na materialidade de um discurso, dizer tudo à qualquer hora, sob qualquer circunstância e sem agravantes do que é dito. Ao contrário, a vida em sociedade atinge a todos com procedimentos de exclusão. Entre eles, o mais claro é a interdição, cuja ligação íntima junto ao poder e à sexualidade torna-a indispensável quando da análise do discurso. Na interdição, cruzam-se três tipos: o direito privilegiado da fala, o ritual da circunstância e o tabu do objeto. Esse último, também chamado por Foucault de “palavra proibida”, junto aos discursos que só podem ser anunciados em determinadas ocasiões (o ritual da circunstância), são os tipos que mais interessam a este trabalho.

Nos procedimentos e rituais presentes em Marcatti e Mutarelli – o riso, o medo, o contato com o imundo, o dejeto posto à mostra –, há desejos que se manifestam e que se escondem, um jogo descontínuo do dito e não-dito que ultrapassa o texto em si (no caso, as histórias em quadrinhos produzidas por eles) e incidem sobre os valores que procuram transgredir. Na enumeração dos princípios e procedimentos da análise de discurso, Eni Orlandi (2007) situa o dito e o não-dito como casos de silêncio fundador (aquele que funciona como respiração da significação, precedendo um sentido que virá) e política de silêncio. Esta se dividiria em dois subgrupos, a saber: o silêncio constitutivo, em que o uso de uma palavra apaga a possibilidade de outra, ou seja, o analista do discurso pode localizar, no ato de alguém dizer algo, sempre outra coisa que não foi dita; o silêncio local, disposto como censura ou impossibilidade de se dizer algo em determinado âmbito e circunstância.

As relações de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura, de tal modo que há sempre silêncio acompanhando as palavras. Daí que, na análise, devemos observar o que não está sendo dito, o que não pode ser dito, etc. (...) Esta é uma questão de método: partimos do dizer, de suas condições e da relação com a memória, com o saber discursivo, para delinearmos as margens do não-dito que faz os contornos do dito significativamente. Não é tudo que não foi dito, é só o não dito relevante para aquela situação significativa. (ORLANDI, 2007, p. 83)

Os autores de histórias em quadrinhos do corpus desse trabalho atuam, cada um à sua maneira, na procura da tensão da linguagem. Elegem a tensão como força maior

de sua produção, transgridem quando insistem em fazer da palavra proibida a sua própria palavra.

A transgressão é um gesto relativo ao limite; é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples; a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos; ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento rapidamente se embaraça por querer apreendê-las. (FOUCAULT, 2009, p. 32)

Polissêmica por natureza, a arte das histórias em quadrinhos está constantemente jogando com a mesma tensão dos limites. Há, nas HQs, tamanha comunhão de signos, traços e letras, que criam-se nelas constantes tensões com processos parafrásticos (estes mais próximos à estabilização, ao dizer sedimentado), criando assim deslocamentos e rupturas de processos de significação (ORLANDI, 2007, p.36). É natural, e mesmo necessário, que os quadrinhos mais criativos brinquem com o equívoco, incompletude e imprecisão que há nos jogos discursivos.

Para empreender a análise das HQs de Marcatti e Mutarelli, fez-se necessário o levantamento bibliográfico de tudo o que foi publicado por eles e está acessível, escolhendo assim as obras-chave na carreira de ambos.

Dessa forma, viabiliza-se a investigação do fio condutor da estética desses quadrinistas, sob análise de parte do que eles produziram até o momento em que as

graphic novels e gibis em questão foram criadas.

Que se pese, além disso, o fato de que ambos dialogaram com outras formas de comunicação ao longo da carreira: Marcatti esteve ao lado de músicos, trabalhou com publicidade, colaborou com publicações de cunho político, desenhou histórias em quadrinhos a partir de roteiros criados por outros e também fez uma longa adaptação de uma obra literária (A Relíquia, de Eça de Queirós) para os quadrinhos; Mutarelli lançou de longo hiato na carreira de quadrinista para se dedicar à literatura (área em que conta já com sete romances publicados e mais um em vias de publicação), incursões no cinema como ator e romances adaptados para as telas, bem como no teatro, em que possui um livro de peças publicadas e também atuou, como ator, em adaptações de seus textos para os palcos.

Sendo assim, nesse corpus inclui-se essencialmente, no caso de Mutarelli, duas

graphic novels: Transubstanciação e Desgraçados. No caso de Marcatti, cuja Mariposa é ainda a primeira incursão no universo das graphic novels propriamente dito, será usado também o livro Coprólitos, uma coletânea de todas as histórias em quadrinhos publicadas por ele entre 1986 e 1992, bem como algumas breves revistas/gibis que o autor publicou e republicou ao longo dos anos, protagonizadas pelo cultuado personagem Frauzio.

Mais que mera coletânea, Coprólitos figura nessa pesquisa como obra processual, por assim dizer, que captura o artista ainda em vias de encontrar sua estética própria, mas já intuindo alguns caminhos que seguiria. Coprólitos traz textos adicionais às histórias em que o próprio autor e convidados pontuam o contexto de produção, a técnica utilizada e o objetivo procurado com aquelas histórias.

Já a coletânea Seqüelas, de Lourenço Mutarelli, embora não componha o corpus diretamente, também auxiliará paralelamente. Isso porque, como Coprólitos, também traz depoimentos de convidados e do próprio autor. Além disso, ao agrupar as narrativas em fases e temáticas, chega a apresentar ao leitor mais de uma versão para a mesma ideia. Caso, por exemplo, da história O Nada, cujo argumento básico foi desenvolvido em três ocasiões diferentes, separadas entre si por anos, gerando três roteiros quadrinizados, cada um de maneira absolutamente particular.

Portanto, são eles os componentes desse corpus:

Autor Título Ano de

lançamento Editora Formato

Lourenço Mutarelli

Transubstanciação 1991 Devir Graphic

Novel

Desgraçados 1993 Vidente Graphic

Novel Francisco Marcatti Frauzio: Morve Blanc 2003 Edição do autor Revista

Frauzio: Carnegão 2003 Edição do

autor Revista

do Amor autor

Coprólitos 2013 Edição do

autor

Coletânea de histórias

Mariposa 2005 Conrad Graphic

Novel

Além disso, foi realizada a revisão bibliográfica de entrevistas com os dois quadrinistas em análise, bem como eventuais diálogos junto a autores acadêmicos, editores e outros quadrinistas que, direta ou indiretamente, tenham produção próxima aos autores em questão.

Em função da pouca bibliografia sobre o tema, metodologias como essa de coleta material tiveram função de agregar, em anexo e/ou ao longo do trabalho, não só impressões e opiniões sobre o tema, como também informações fundamentais quanto a cronologia, localização de publicações e possíveis bibliografias agregadas. Há um mosaico ainda em início de construção, que diz respeito não somente a esses autores e ao presente trabalho acadêmico, mas à toda a historiografia das histórias em quadrinhos nacionais.

Da mesma forma, toma-se em conta as histórias em quadrinhos como modo de linguagem próprio, de gramática e história particular, ainda que em incessante troca com outras expressões artísticas. No artigo A Linguagem dos Quadrinhos – Uma “alfabetização” necessária (2007), Waldomiro Vergueiro alerta do risco de analisar as

HQs sob parâmetros de outras artes que não essa, e afirma que:

Ligado a cada um dos códigos, os autores de HQs, ao longo dos anos, foram desenvolvendo e aplicando elementos que passaram a fazer parte integrante da linguagem específica do gênero, permitindo-lhes atingir a rapidez de comunicação exigida por um meio de comunicação de massa por excelência. Alguns desses elementos específicos foram criados dentro do ambiente próprio dos quadrinhos. Outros vão buscar sua inspiração em diferentes meios e formas de expressão, tomando emprestado e apropriando-se de novas linguagens, adaptando-as conforme a criatividade dos autores de HQs. (VERGUEIRO, 2012, p. 31)

Propõe-se, portanto, a revisão e análise não somente do que diz respeito ao que se entende como estética do grotesco. Também é preciso entender como igualmente fundamental, a linguagem e a história das histórias em quadrinhos desses artistas, Marcatti e Mutarelli, bem como do universo de HQs nacionais em que estão inseridos.