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Capítulo 3 – Underground Comix – Quadrinhos grotescos, independência e

4. Udigrudi: Apropriação e ressignificação do Comix nos quadrinhos

4.1. Revista Grilo

Com gibis circulando regularmente pelo país desde 1934, quando lançado o

Suplemento Juvenil, os leitores brasileiros já conheciam consideravelmente os clássicos de humor (Pafúncio e Marocas, Pinduca), faroeste (Zorro), aventura (Tarzan, Fantasma), terror (Terror Negro), infantis e super-heróis. O material trazido pela Grilo, contudo, era quase inteiramente inédito e surpreendente para o fã brasileiro. Fruto, sem dúvida, da trajetória dos editores da revista, jornalistas de formação esquerdista e já com experiência em revistas importantes como Realidade e a própria O Bondinho. Dedicada inteiramente aos quadrinhos, a Grilo teve seu primeiro número lançado em outubro de 1971 e logo ocupou um espaço ainda vago nas bancas de revistas brasileiras.

O primeiro número saiu com 50 mil exemplares e teve tiragem quase inteiramente esgotada. Em suas páginas, a princípio, havia material tido como mais

comportado, como Charles Schulz e Jules Feiffer, mas nem por isso sem sua relevância e carga de irreverência. A estreia já trazia editorial nem um pouco modesto (“Se isto é tão bom, se é o melhor humor do mundo, por que não publicar em português? Tudo que aparecer de boa qualidade do mundo vai estar no Grilo”) e ainda, na capa, o aviso de “Recomendado para Adultos”.

Como se não bastasse, ao separar a capa do miolo, o leitor deparava-se ainda com um pôster gigante em que a menina Lucy, conhecida personagem da série Peanuts, de Schulz, aparecia grávida e dizia: “Você me paga, Charlie Brown!”.

FIGURA 42 – Grilo número 1. 1972.

Na Grilo, o momento histórico exigia cuidados graduais ao ousar na escolha do que seria publicado. A sombra recorrente dos militares trazia a necessidade da autocensura. Antevia-se, ainda na redação, se o risco de publicar determinado material implicaria em tempo, esforço e dinheiro perdidos, uma vez que fosse censurado. Desse modo, o número quatro da revista trazia Luter, de Brumsic Brandon Jr., uma sutil crítica ao preconceito racial norte-americano. No número seis, depois de anúncios que vinham desde a primeira edição e extasiavam os leitores, finalmente estreou na Grilo a sensualíssima Valentina, de Guido Crepax. Contudo, os editores tiveram todo o cuidado de selecionar uma história um pouco menos picante, na medida do possível, evitando as alusões ao sadomasoquismo e bissexualidade, típicas da personagem.

Os quadrinhos de vanguarda chegariam de fato na segunda fase da revista, que passou a publicar, pela primeira vez no Brasil, HQs como Mr. Natural,de Crumb, Freak

Brothers, de Shelton, a voluptuosa Paulette, dos franceses Wolinski e Pichard, e o ultraviolento e escatológico Cacete em Quadrinhos, de Robert Williams. Para Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos, em Revistas Alternativas de Quadrinhos dos

Anos 1970, a revista:

(...) foi responsável por disponibilizar para os leitores o comix underground americano e quadrinhos de vanguarda europeus. Sua grande influência, e da maior parte das publicações alternativas da época, foi a Contracultura – movimento de contestação por meio da música, da literatura, do cinema e dos quadrinhos surgido na década anterior nos Estados Unidos, na onda dos protestos contra a Guerra do Vietnã e a massificação imposta pela sociedade industrial baseada no consumo. Esses produtos culturais desviavam-se da produção mainstream tanto no que se refere à forma quanto no que diz respeito ao conteúdo. (SANTOS; VERGUEIRO, 2010, p. 24)

Assim, a segunda metade das 48 edições do Grilo sofreu visível transformação em forma e conteúdo, trazendo diagramações mais ousadas e capas abusando das cores e colagens psicodélicas.

FIGURAS 43 e 44 – Sobriedade (número 14, de 1971, com Valentina na capa) e experimentalismo

(número 36, de 1972, com o Mr. Natural de Crumb) na Grilo.

Uma geração brasileira sedenta por novidades quadrinísticas encontrava ali a sua válvula de escape. Houve ainda edições especiais da revista, como o Almanaque do Grilo e Almanaque Underground, além de livros de Paulette, Valentina e Mr. Natural.

Como no Brasil os gibis atravessavam uma crise de saturação de super-heróis e gibis de terror, os leitores responderam positivamente às novidades que Grilo trouxe em sua nova fase. Para o editor da revista, “venceu a coceira alternativa que estava presente em nós”. (JUNIOR, 2012, p. 162)

Não por acaso, vários de seus leitores virariam grandes quadrinistas do país muito em breve. Embora a publicação de autores nacionais fosse quase nula (exceção feita a Cláudio Martins, que figura na edição 27, e Sérgio Macedo, que esteve em nove números), a Grilo número 32, de outubro de 1972, abria espaço para três histórias vencedoras do Segundo Concurso Universitário de Desenho de Humor, promovido pela Universidade de São Paulo (USP). O primeiro lugar ficou com o jovem Laerte Coutinho, então um estudante que flertava com o desbunde universitário da época, mas ainda não havia escolhido os quadrinhos como sua via principal de expressão.

Grilo foi fundamental para que Laerte apostasse nos quadrinhos. (...) O processo de conscientização política só veio para Laerte depois da ECA, por volta de 1973. Até então, lembrou o desenhista, a vida não passava de uma farra. E Grilo faz parte de seu universo de descobertas. (JUNIOR, 2012, p. 184)

Em outubro de 1973, depois de dois anos de resistência, a Grilo terminaria melancolicamente. Entre vários problemas com a censura, destaca-se o incômodo com a sexualidade das histórias de Wolinski e Crumb. As HQs deste último, naquela altura a grande atração da revista, sofreram diversas mutilações para adequar-se à moral exigida pelos militares. Não raro, a linguagem chula de Crumb era abrandada na tradução e as cenas de sexo explícito eram deliberadamente cortadas pelos próprios editores, resultando em empobrecimento e confusão da narrativa.

O DOPS (Departamento de Ordem e Política Nacional, órgão repressor do regime militar) não cedeu mais registro para que a revista pudesse circular “por considerar o conteúdo da revista atentatório à moral e aos bons costumes” – dizia uma nota de rodapé na edição derradeira.

Em decisão curiosamente análoga à solução de Kurtzman para a censura à MAD nos anos 50, a Grilo deixaria de circular como revista em quadrinhos para se tornar um tabloide de jornalismo e humor, batizado de Ex- (ironia fina dos editores, em função de serem todos jornalistas rebeldes renegados de outras publicações). Direcionada como “Jornal de texto, foto, quadrinho e imprensa” (como dizia o subtítulo), a nova publicação perderia o estigma da Grilo, junto à censura, de quadrinhos feitos para

perverter sexualmente a juventude. Por outro lado, seu conteúdo ganharia forte carga política e a censura, novamente, não deixaria de perseguir o trabalho.