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Capítulo 3 – Underground Comix – Quadrinhos grotescos, independência e

5. FRANCISCO MARCATTI: escatologia, caricatura e riso carnavalizante

6.2. Desgraçados

Ainda no ano de 1991, Lourenço Mutarelli escreveu uma série de histórias curtas para a revista Mil Perigos, mais uma publicação independente que surgiu no rastro do “boom” editorial dos anos 1980 e início dos 1990. Em cinco edições, Mil Perigos trouxe às bancas alguns importantes nomes do período, como Marcatti, Luís Schiavon, Glauco Mattoso, Bira, Patati e Adão Iturrusgarai.

Estas histórias, antes independentes entre si, foram reavaliadas pelo autor e, após pequenas modificações, lançadas como uma só narrativa em 1993. Foi Glauco Mattoso quem enxergou nestas histórias a continuidade de acontecimentos e temáticas, sugerindo que Mutarelli fizesse pequenas modificações e acréscimos, de modo que as narrativas se entrelaçassem.

O resultado final é Desgraçados, uma graphic novel de 96 páginas, formada por seis capítulos, cada um deles aberto por citações bíblicas, em estética que se aproxima de iluminuras medievais. Não por acaso, o quadrinista escolhe as mais duras citações, aquelas que compõem a figura de um Deus cruel, como de fato ele o é em diversas passagens do texto bíblico. O primeiro capítulo, Porque sinto tanto prazer com a dor?, abre com uma passagem de Deuterônimos, o quinto livro da Bíblia, no qual Deus previne aos homens que lhe obedeçam. Caso não o façam, um mundo de doenças e derrotas pode abater os homens no limite de seus corpos: escatológico, o texto fala em infecções e excrementos, dando o tom punitivo – e não alegre e provocativo, como a escatologia em Marcatti – com que se tratará os pormenores da dejeção em Mutarelli.

O Senhor mandará sobre ti a indigência e a fome, e a maldição sobre todas as tuas obras que tu fizeres; até te reduzir a pó, e te acabar dentro de pouco tempo, por causa dos teus péssimos desígnios em que tu me abandonaste. O Senhor te mande peste, até que te faça parecer da terra, que estás para entrar a possuir. O Senhor te castigue com pobreza, com febre e frio, com calor e secura, com infecção de ar e com ferrugem, e te persiga até que pereças. (...) O Senhor te castigue com as úlceras do Egito, e fira de sarna, e de comichão aquela parte do teu corpo, por onde se lança o excremento; de sorte que não possas curar-te. O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de sorte que andes às apalpadelas no pino do dia, como costuma fazer o cego às escuras, e não acertes nos teus caminhos. (Deuterônimos, capítulo 28, versículos 20-29)

A citação antecipa o mundo morfético descortinado a partir de Por que sinto

cenas de sexo e violência. O primeiro, um jovem frágil, irá resgatar e acolher a debilitada Elizabeth, explorada financeira e sexualmente por Leviatã (Figura 81).

FIGURA 81 – Desgraçados. Mutarelli. 1993.

A escolha do nome Leviatã, contraponto a Jesus, é sintomática do grotesco teratológico em Mutarelli. Monstro da mitologia fenícia que engole os danados, Leviatã habita o imaginário cristão como figura disforme, gigante e animalesca, oscilando entre traços de serpente, dragão e polvo. Inspira imundície e espalha ameaça. O imaginário medieval o tem como figura constante na representação da danação (LE GOFF, 2011, p. 129) e sua força iconográfica como “imperador da dor” só será empalidecida no século XIV, quando Satã tomará mais destaque.

Vulnerável, o Jesus de Mutarelli acumula responsabilidades que não é capaz de administrar. Elizabeth, drogada e prostituta, está grávida. O bebê que carrega no ventre, descrito na trama como um “anjo negro”, proporciona brevíssimo momento de felicidade ao casal. Por um instante, pode-se dizer que tal gravidez insinua um passo em direção ao grotesco regenerador de Bakhtin (2008, p. 23), mas o doloroso processo de aborto vivido por Elizabeth impede esse sopro de vida.

Uma das tendências da imagem grotesca do corpo consiste em exibir dois corpos em um: um que dá a vida e desaparece, e outro que é concebido, produzido e lançado ao mundo. É sempre um corpo em estado de prenhez e parto, ou pelo menos pronto para conceber e ser fecundado, com um falo ou órgãos genitais exagerados. Do primeiro corpo se desprende sempre, de uma forma ou de outra, um corpo novo. (BAKHTIN, 2008, p. 23)

FIGURA 82 – Desgraçados. Mutarelli. 1993.

O segundo capítulo, Deus está em todas as partes, é protagonizado por Lucas Gog, cientista que acredita ter descoberto a partícula fundamental e onipresente, que seria a explicação científica de Deus. A divulgação de tal descoberta causa transtornos sociais que levam à perseguição implacável do personagem. Um exército cristão, sádico, porque cego na sua fé, o persegue e mata (Figura 83).

FIGURA 83 – Desgraçados. Mutarelli. 1993.

Paloma movia as pequenas coisas e Viver é morrer lentamente, os capítulos seguintes, seguem imagens punitivas e sadismo semelhantes. No segundo, Leviatã retorna à cena invadindo violentamente um velório para cobrar dinheiro dos presentes. No primeiro, Mathias, humilde pintor de parede, flagra o pedido de socorro de uma criança no orfanato do outro lado do muro. Paloma, a criança, é mais um personagem desenhado por Mutarelli de maneira absolutamente crua: a menina é magérrima, tem olhos esbugalhados e feridas pelo corpo. Seu vestido é perturbadoramente transparente e provoca sentimentos obsessivos em Mathias. O rapaz tem por ela piedade e quer resgatá-la, mas também não consegue esconder a atração sexual que aquela criatura mórbida inspira nele.

Lourenço Mutarelli, uma vez mais, aproxima a prática sexual aos prazeres mais perturbadores da mente. Na conduta degradante de seus personagens, prazer, obscenidade e sadismo se misturam irreversivelmente. Em A Literatura e o Mal (1989),

Georges Bataille observa a literatura e a vida do Marquês de Sade e enxerga, no arrebatamento da nudez e sexualidade, ocasião para confusão completa de tais limites.

O que destrói um ser também o arrebata; o arrebatamento, por outro lado, é sempre a ruína de um ser que se impusera os limites da decência. A nudez somente já é a ruptura desses limites (ela é o signo da desordem que desafia o objeto que a ela se abandona). A desordem sexual decompõe as figuras coerentes que nos estabelecem, para nós mesmos e para os outros, enquanto seres definidos (ela de antemão os desliza num infinito que é a morte). (BATAILLE, 1989, p. 109)

Os capítulos que encerram o livro, um intitulado apenas A quinta parte e outro chamado O duplo e o silêncio dos mortos, seguem temáticas e estéticas semelhantes. O quarto episódio expõe a figura do louco. O personagem Thiago, internado no sanatório, tem de lidar com um psiquiatra sádico, que afirma: “A única coisa que nos torna diferentes é que eu possuo a chave do portão” (MUTARELLI, 1991). Acuado, o paciente assassina o médico e Lourenço Mutarelli põe, como já o fez em

Transubstanciação, a morte novamente como fim da trama e confusa esperança de liberdade.

Pensemos, portanto, que se Mutarelli cria um psicanalista que não acredita no próprio ofício, mas ao mesmo tempo se preocupa com seu paciente mesmo na hora de sua própria morte, ele adota a impensável atitude de viabilizar o caminho do infortúnio, fazendo questão de nos avisar que devemos dar chance ao extremo: deixar a loucura consumir os loucos, a psicopatia consumir os psicopatas, a desgraça consumir os desgraçados. Considerando a prolífica carreira e sucesso atual, nas HQs, literatura e cinema, deste autor sui-generis que é Mutarelli, convém, com satisfação, pensar que Desgraçados de alguma forma cumpriu sua tarefa de expurgar um pontinho de melancolia em sua mente. E não só na dele. (MARCONDES, 2011)

Elizabeth retorna no final da trama como uma sádica freira, visão que não está clara, a princípio, se é realidade ou um delírio de Jesus. Fato é que Jesus é mutilado e Elizabeth, tornada freira, levanta suas vestes para defecar na mão arrancada de Jesus. Em frangalhos, destruído e paralisado, Jesus apenas recorda: “Teu corpo gargalhava enquanto defecava nas partes amputadas do meu corpo” (MUTARELLI, 1993, p. 50). Ainda que o ato em si possa habitar o campo do delírio de um louco, o resultado do castigo físico – a mão decepada – permanece como registro real da experiência até o fim de Desgraçados.

Claro, há viagens e viagens, e para mim os quadrinhos de Lourenço são diversões e sustos ao mesmo tempo. Daí a analogia com um parque brincalhão. Sim, Lourenço me faz rir, mas não é uma risada desopilante, é o

riso nervoso, riso cínico, cúmplice tanto na crueldade quanto na misericórdia que o autor dedica aos seus coleguinhas de espécie humana, todos uns pobres coitados, uns miseráveis – como diria Victor Hugo –, uns fodidos – como diria Sade – ou uns desgraçados, como diria o próprio autor, sem o “imprimatur” da Igreja Católica. (MATTOSO, 1993, p. 3)

Elizabeth retornará ainda no último capítulo, de novo limpa e gentil, acolhedora, revivendo a Pietà de Michelangelo ao acolher Jesus nos braços. A “Virgem Maria” de Mutarelli, prostituta, transmuta-se, em seguida, em mais uma das criaturas diabólicas do autor. De frente para a cena, Lourenço Mutarelli desenhou a si mesmo, a figura do autor, impassível diante do horror.