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Balanço da fonografia baiana

No documento Na Trilha do Disco (páginas 103-111)

Considerando-se a usual divisão do mercado fonográfico em indies e

majors, a indústria fonográfica na Bahia sempre restringiu-se às indies.

É conhecido o fato de Gilberto Gil ter gravado apenas violão e voz da música ““Aquele abraço”” na JS, porque problemas técnicos impossibi- litaram o acréscimo de outros instrumentos, e a fita seguiu para ser complementada por orquestra no Rio, com selo da Phillips. Já a WR,

151. Criada em 2005, por Jesus Sangalo, Fábio Almeida e Alexandre Lins, integra a holding Caco de Telha, que cuida da carreira de Ivete Sangalo.

segundo o próprio Rangel, nunca teve um selo de fato, e foi sempre uma produtora: ““as pequenas produtoras, elas faziam seus produtos, mas não tinham condições de botar no mercado. Não tínhamos dinhei- ro para prensagem, não tínhamos dinheiro para distribuição, não tínha- mos nada, então, tínhamos que estar à mercê dessas grandes gravado- ras”” (Rangel, 2004). Gravava-se na WR e o produto levava o selo de uma gravadora nacional, como a Nova República (Luiz Caldas, Gerônimo), Eldorado (Daniela Mercury), Continental (Durval Lelys, Gerônimo, Banda Mel) –– esta a que mais lançou produtos baianos.

Por certo, ambas as gravadoras baianas nasceram em função da de- manda do mercado publicitário local, mas o contexto nacional também favoreceu o surgimento da WR. Como lembra Rita Morelli (1991), o pe- ríodo de linha dura, que começou em 1968 e fez crescer o cerceamento à liberdade de expressão, as perseguições e torturas, foi também o do ““milagre econômico”” do governo Geisel, que permitiu à classe média um aumento do seu poder aquisitivo e consequente acesso ao mercado de bens de consumo. O mercado fonográfico aumentou o número de lançamentos em LPs e compactos e estes, por serem mais baratos, con- tribuíram para facilitar o acesso ao disco por parte de classes de menor poder aquisitivo, especialmente os jovens. Diferente dos grandes mer- cados internacionais, onde tinham participação significativa, os jovens brasileiros só então começavam a se fazer presentes, em parte devido ao sucesso da Jovem Guarda.

A expansão do mercado, na verdade, beneficiou a música estran- geira porque, apesar dos impostos, era muito mais barato importar a gravação em fita master para ser prensada no Brasil, do que arcar com todos os custos de uma produção local. Embora houvesse uma lei que restringia em 50% a música estrangeira nas gravadoras, o lucro era fa- cilmente alcançado devido ao baixo custo. Por conta da estreita relação entre a indústria fonográfica e a mídia, a música estrangeira predomi- nava também nas rádios. Essa demanda justificou a entrada, no merca- do brasileiro, de grandes gravadoras transnacionais.

Acentuando esse quadro, a música nacional, perseguida pela cen- sura assim como as demais manifestações artísticas, representava um risco de investimento para as gravadoras, porque bastaria uma assina- tura e seria inutilizado todo um lote de discos. Essa mesma censura foi, aos poucos, minando o sucesso dos festivais da década de 1960, que tiveram seu último exemplar em 1972.

Apesar dos riscos, é no transcorrer da década de 1970 que se começa a identificar cultura com mercado, e impulsiona-se o desenvolvimento da indústria nacional do entretenimento.152 No início dos anos 80, au-

mentam os investimentos no cinema nacional, na publicação de livros de autores nacionais e na música popular brasileira, o que proporcionou o recuo de multinacionais e o avanço de novas gravadoras nacionais. Citando Patrice Flichy, que as denomina ““multinacionais discretas””, Renato Ortiz explica que essas empresas ““atuam na periferia através de filiais cuja função é produzir discos com os cantores locais”” (Ortiz, 1995, p.194). É quando a WR passa a acreditar que ““santo de casa faz milagre”” e investe em equipamentos: ““os Studios WR, operando com 16 canais, estruturaram-se para a gravação de discos, com o nível das melhores gravadoras do sul do País e cria, com isso, um novo mercado de trabalho para técnicos, músicos, arranjadores, maestros, vocalistas”” (Tribuna da Bahia, 1983, p.18).

Peterson e Berger (1975), em trabalho sobre a ocorrência de ciclos na música popular norte-americana no período de 1948 a 1973, iden- tificam cinco períodos que alternam uma intensa concentração em oli- gopólios com uma segmentação da indústria e do mercado em selos in- dependentes.153 Os autores mostram como essas mudanças afetaram a

152. Segundo Ortiz (1995), o Estado autoritário da ditadura militar aprofunda medidas econômicas do governo JK, reorganiza a economia brasileira e consolida-se o ““capitalismo tardio””. ““Em termos culturais, essa reorientação econômica traz consequências imedia- tas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens culturais, fortalece-se o parque industrial de produção de cultura e o mercado de bens culturais”” (p. 114). Ortiz afirma que os interesses do Estado –– ao mesmo tempo re- pressor e incentivador das ações culturais –– e dos empresários da cultura são os mesmos, diferenciando-se na ideologia, moralista do Estado e mercadológica dos empresários. Estes se queixam do excessivo rigor da censura, que acarreta prejuízos materiais, o que permite deslocar a questão cultura/censura para o plano econômico (p.120). Ortiz acres- centa que ““o que caracteriza a situação cultural nos anos 60 e 70 é o volume e a dimensão do mercado de bens culturais”” (p. 121), cuja expansão podemos comprovar nos números: livros, de 43,6 milhões de exemplares (1966) para 112,5 milhões (1976); filmes, crescem de 13,9% do mercado (1971) para 35% (1982). O mercado fonográfico deu uma arrancada em 1970, em parte devido à facilidade de aquisição de eletrodomésticos: ““entre 1967 e 1980 a venda de toca-discos cresce 813%”” e o faturamento das empresas fonográficas cresce 1.375% entre 1970 e 1976 (p. 127). Em 1970 havia cerca de 4 milhões de domicílios com aparelho de TV; em 1982, eram mais de 15 milhões, e o hábito se disseminara por todas as classes sociais (p. 130).

153. 1) de 1948 a 1955, houve uma intensa concentração corporativa em quatro compa- nhias, com controle total do fluxo da produção; 2) de 1956 a 1959, selos independentes ganham maior expressão e novos artistas e segmentos não prestigiados ocupam posi- ções predominantes; 3) de 1959 a 1963, o cenário manteve-se estável; 4) de 1964 a 1969, uma re-arrumação no mercado, motivada pelo surgimento de uma segunda geração do rock, provoca a volta à concentração nas grandes gravadoras; 5) de 1969 a 1973, selos

inovação e a diversificação da música popular e concluem que a grande concentração do mercado conduz à homogeneização e estandardização do produto. Os dois períodos nos quais há uma diversificação e expan- são de selos independentes –– 1956-1959 e 1969-1973 –– praticamente coincidem com o nascimento das duas gravadoras baianas, se consi- derarmos que, na época, a tendência internacional se refletia na esfera local com um certo retardo.

Os autores preveem, para depois de 1973, um longo período de in- tensa concentração em grandes companhias que controlariam todo o fluxo de produção e a consequente diminuição na inovação e diversi- dade de artistas e selos. No caso brasileiro, no entanto, o processo de segmentação do mercado nos anos 80 favoreceu a música nacional, oca- sionando tanto o relançamento de artistas tradicionais em CD, como o lançamento de música infantil, de segmentos ligados a identidades culturais locais –– a axé music, por exemplo –– e os influenciados por referências mundializadas, como o rap (Vicente, 2002). Nos anos 90, a estabilidade econômica se reflete no mercado fonográfico, e o Brasil ocupa o sexto lugar no mercado mundial, com acentuado crescimento no índice de música nacional (Canclini, 2003). O Brasil exporta música, e a Bahia também. Impulsionados pela alta tecnologia do trio elétrico e um esquema que envolve bandas, blocos, camarotes, produtoras, em- presas ligadas ao turismo e até o comércio informal, a axé music ganha o Brasil com a expansão dos carnavais fora-de-época. As principais ban- das integram o cast das transnacionais e se apoiam numa estrutura de divulgação que inclui programas de rádio e TV, videoclipes, sites e shows de palco.

A diversificação dos anos 80 implicou na adoção de um ““sistema aberto””, que estabelece vínculos com selos independentes menores e produtores de discos independentes e garante não só grandes lucros pelo monopólio da fase final de produção e distribuição, como a segu- rança de poder atender à instabilidade do mercado no que se refere à demanda por novos produtos (Lopes, 1992). Este cenário favoreceu o lançamento dos inúmeros produtos da WR nos anos 80 e 90. No final da década de 1990, porém, a lógica do blockbuster usada pelas majors, que

independentes são adquiridos pelas majors, uma estratégia para atender a toda gama de gosto dos consumidores, com a ampliação do leque de artistas; no entanto, apostam que a tendência seria retornar à posição inicial, de concentração e total controle do fluxo pelas majors.

se caracteriza por concentrar as ações e investimentos em poucos artis- tas, restringiu ainda mais as possibilidades das indies, que se limitaram a descobrir o talento e lançá-lo no âmbito local ou descobrir e passar seu contrato à major (Vicente, 1999). No entanto, as indies têm tido papel fundamental para o lançamento de artistas locais. Com o avan- ço da tecnologia digital, que possibilita a montagem de estúdios com baixo custo e boa qualidade de gravação, elas vêm se multiplicando, o que explica o sem-número de selos na Bahia. Uma pequena estrutura, como a da Jupará Records, garante produção e a divulgação de várias bandas regionais que dificilmente chegarão a constar do catálogo de uma major.

Em pouco mais de quatro décadas, muita coisa mudou na fonografia baiana. A JS começou com uma mesa, um gravador de 4 canais e uma máquina de gravar acetato. Segundo Jorge Santos, a gravadora encer- rou suas atividades em 1982 porque ficara impossível concorrer com o mercado do Sul e Sudeste. Reconhecia a necessidade de se atualizar, mas ““importar era caro e tinha restrições. Por exemplo: só podia vender depois de cinco anos. Tinha financiamento para equipamento de cine- ma, mas não havia para estúdio de som”” (Santos, 2004). A concorrência, no entanto, começava mesmo na Bahia, com a WR. Desde que entrou no mercado, em 1975, Wesley Rangel fez altos investimentos na estrutura física e em equipamentos, mas foi apanhado de surpresa por uma gui- nada no avanço tecnológico. Logo depois de adquirir uma sofisticada aparelhagem analógica, o mercado lançou equipamento digital e soft-

wares que ofereciam mais recursos e custavam muito menos. Além de

obrigá-lo a novo investimento, a inovação propiciou uma proliferação de estúdios caseiros. Paradoxalmente, embora a quase totalidade dos sucessos da música baiana das décadas de 1980 e 1990 tenha iniciado suas gravações na WR, raros levaram o seu selo, enquanto hoje nos per- demos em um mundo de pequenos selos da cena independente.

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Depoimentos

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EMMANUEL, José. José Emmanuel Ataíde. Via e-mail, 18 jun. 2004 a 21 nov. 2004.

JOVITA MARIA (CocoBambu Records). Via telefone, 5 jun. 2007. LEAL, Marcel (Jupará Records). Via e-mail, 1 e 2 maio 2007. MARQUES, Carlinhos. Entrevista, fev. 2005.

RANGEL, Wesley. Entrevista, 10 abr. 2004. SANTOS, Jorge. Entrevista, 9 fev. 2004. SANTANA, Bira. Via telefone, 29 maio 2007.

SILVEIRA, Valéria (Maianga Discos). Via e-mail, mar. 2007. VALLADARES, Júlia (Candyall Music). Via e-mail, 12 mar. 2007.

Sites

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MERCADO FONOGRÁFICO NACIONAL

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