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Conhecem-se os problemas que os Estados sempre tiveram com as

“confrarias”, os corpos nômades ou itinerantes [...] (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 36).

Sempre sobrevêm períodos em que o Estado enquanto organismo se vê em apuros com seus próprios corpos, e em que esses, mesmo reivindicando privilégios, são forçados, contra sua vontade, a abrir-se para algo que os transborda, um curto instante revolucionário, um impulso experimentador. [...] De repente, é como se o corpo dos notários avançasse de árabe ou de índio [...] (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 34).

Já não navegamos mais um rio caudaloso com a ubá. O solo que agora habitamos tornou-se árido. Deviemos nômades no deserto e, ao invés de seguirmos por caminhos margeados, construímos itinerários autônomos.

Nesta caminhada não usamos referências como astros siderais ou qualquer outro ponto fixo no horizonte. Nos guiamos, antes, por meio de pistas móveis, correntes de vento e de areia, estímulos táteis, olfativos e sonoros.

Ao longo desta jornada sem fim montamos acampamentos provisórios onde, abaixo apenas de estrelas e seres alados, nos reunimos ao redor de fogueiras para compartilhar histórias, experiências, façanhas do passado, presente e futuro; avaliando, a cada momento, a duração do nosso percurso e suas sucessivas re- orientações.

Nesses espaços efêmeros tecemos táticas de guerra e cultivamos as lutas e suas memórias; criamos épicos, canções, genealogias e lendas que alimentam uma mitologia rebelde. Por alguns instantes (que valem para a eternidade) conquistamos o mundo, produzindo-o a partir de múltiplas intensidades.

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O presente trabalho pretende alimentar uma mitologia rebelde no mesmo passo que a fomenta. Nossa escrita segue um percurso autônomo, por mais que precisemos nos curvar diante de uma ciência régia.

Ao longo dessa caminhada errante narramos histórias de experiências rebeldes constituindo desejos nômades (uma aposta); discutimos esta aposta diante dos

sentidos que lhes são produzidos e que produz (afirmando um modo militância- experimentação e um modo-movimentação para os processos coletivos de transformação) e apresentamos a lógica de funcionamento da forma-Estado, campo a partir do qual (e contra o qual) essa aposta foi exercitada.

Agora, com um corpo mais flexível (mas nem por isso menos radical), adentraremos nas experiências de militância processadas por dentro do aparelho de Estado: acampamentos nômades montados por bandos/maltas/confrarias/fóruns de

funcionários públicos, 104 coletivos de trabalhadores “direta ou indiretamente

encarregados pela operacionalização das funções de Estado” (MONTEIRO; COIMBRA; MENDONÇA FILHO, 2006, p. 10).

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Apesar de suas características centralizadas e centralizadoras, o aparato administrativo do Estado não constitui uma unidade homogênea. Formado por uma diversidade de agentes sociais, saberes, técnicas e estratégias, essa multiplicidade compõe um universo burocrático movido por relações de poder e saber, procedimentos e rituais executados por um corpo heterogêneo.

Essa heterogeneidade não garante, em si mesma, nenhuma transformação deste aparelho de dominação e soberania política, pois o Estado, como asseguram Monteiro, Coimbra e Mendonça Filho (2005), “funciona segundo certas lógicas e [...] ocupá-lo é, na maior parte das vezes, servi-lo na condição de operador de seus dispositivos” (p. 11). Nesta condição, “o operador não muda a máquina, ele a faz funcionar” (p.11), reproduzindo (na maioria das vezes), a lógica distintiva entre dominadores e dominados, entre governantes e governados.

Se não acreditamos na “ilusão de que se possa possuir o poder de Estado para usá- lo de uma outra maneira” (MONTEIRO; COIMBRA; MENDONÇA FILHO, 2005, p. 11) – desviando da especulação que marca um certo modo militância-vanguarda – e nem acreditamos na “possibilidade de reformas através de intervenções nas formulações e implementações de políticas públicas vinculadas ao Estado” (p.11) –

104

Assim como Monteiro, Coimbra e Mendonça Filho (2006), utilizaremos o termo funcionários públicos para designar “os agentes direta ou indiretamente encarregados pela operacionalização das funções de Estado, não importando o grau de formalização institucional de seu estatuto” (p. 10).

desviando de um certo modo instituído de movimento social – apostamos, por outro lado, que os operadores desse aparelho podem voltar-se contra sua maquinaria e interferir, mesmo que temporariamente, em sua lógica de funcionamento, produzindo avarias. Deleuze e Guattari escrevem:

Sem dúvida, os grandes corpos de um Estado são organismos diferenciados e hierarquizados que [...] dispõem do monopólio de um poder ou de uma função [...]. Todavia, parece que em muitos desses corpos, alguma outra coisa está em ação, que não se reduz a esse esquema. Não se trata somente da defesa obstinada de seus privilégios. Seria preciso falar também de uma aptidão, mesmo caricatural, mesmo muito deformada, de constituir-se como máquina de guerra, opondo ao Estado outros modelos, um outro dinamismo, uma ambição nômade (2012, p. 33).

Nossa aposta rebelde – que por intuição era alimentada cotidianamente – ganha, com isso, fôlego teórico e aspirações insurrecionais. Deleuze e Guattari (2012) afirmam que esses “corpos coletivos sempre têm franjas ou minorias” (p. 34), junto às quais afirmamos a possibilidade de agenciamentos coletivos funcionarem como fonte de enlevamentos nômades.

Contudo, é de crucial importância que não sejamos mal compreendidos. Nossa militância por dentro da máquina estatal não se move pelo desejo de integrar

movimentos e movimentações numa sociedade “civilizada”. Não se trata de um

projeto missionário: não falamos de um desejo conectado ao fortalecimento de uma sociedade de soberania na qual todos devem ser catequizados. Deleuze e Guattari nos alertam: “a máquina de guerra é sem dúvida efetuada nos agenciamentos ‘bárbaros’ dos nômades guerreiros (2012, p. 22).

Dito isto, esperamos que fique claro que nosso debate não tem a pretensão de sugerir métodos, procedimentos e objetivos ou propor mediações, medições, traduções ou regulações para as ambições dessas multidões. Estamos fartos dos efeitos colonizadores dessas práticas de militância “altruístas” e “redentoras”. Não queremos articular canais para que essas hordas guerreiras tenham acesso aos espaços de soberania, para que sejam reconhecidas como povo, para que ganhem algumas porções de terra, para que suas lideranças sejam coroadas (e amansadas) com títulos e funções de menor importância.

atravessa o Estado e os próprios movimentos sociais, produzindo burocratização, centralização, exploração, dominação; imprimindo e (re) produzindo movimentos de sedentarização nos quais multidões são apaziguadas e civilizadas, tornando-se politicamente confiáveis e governáveis.

Trata-se mais de um debate que aponta para a possibilidade de agentes (rebelados) no Estado estabelecerem alianças clandestinas, secretas, conspiratórias com esse “lado de fora”, sinalizando atalhos por entre os caminhos que compõem os espaços estatais; cavando buracos em seus muros; construindo túneis sob suas cercas; sabotando trancas e cadeados de celas e portões; facilitando fugas e invasões. Ao mesmo tempo, precisamos nos atentar para não sermos capturados em falsas questões, tais como a ação dentro do Estado (reformista) em oposição à ação fora do Estado (revolucionária).

Esses nômades exercitam a razzia, são corsários, são vírus. Sentem tanto o desejo quanto a necessidade de TAZs, acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, interzonas, oásis fortificados escondidos nas rotas de caravanas secretas, trechos de selvas e sertões “liberados”, áreas proibidas, mercados negros e bazares underground (BEY, 2011, p. 28).

Nossa proposta de analisar as experimentações desses coletivos de funcionários públicos, os trabalhadores sociais, em suas formas provisórias e mutantes – no entrecruzamento da militância, trabalho e máquina estatal – compõe o desejo de alimentar uma mitologia rebelde, dando visibilidade aos curtos “instantes revolucionários” em que “o Estado se vê em apuros com seus próprios corpos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 34).

3.8 MOVIMENTOS DE SEDENTARIZAÇÃO – A EXPERIÊNCIA DA COMISSÃO