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Como fazer para não vir a ser fascista mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento?

(FOUCAULT, 1994, p. 83-84).

É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 85).

Os efeitos de burocratização, centralização, exploração e dominação dos organismos criados para levar uma certa ideia de Revolução a termo sinalizam a totalização de um modo de ação política no qual o militante socialista foi constituído e se constituiu como se fosse “sabedor do destino da história” (CASTORIADIS apud SOUZA, 1999, p. 139).

Os mecanismos que engendraram esse modo de funcionamento encontram-se na genealogia que vimos traçando e evidenciam a atualização de valores religiosos e militares nessas práticas. Como afirma Souza,

Existe um poder e um saber que, de certo modo, envolvem, penetram e reproduzem este militante com uma incrível capacidade de institucionalizar os conflitos e normatizar o social. A eficácia do militante está na sua habilidade para imprimir os signos da totalidade na prática social. A racionalidade totalitária manifesta o desejo de nivelar o instituinte e o instituído. Ser militante, sob estas condições, implica em absorver a vontade de controlar o imprevisível e dominar o devir, o que, ressalta Lefort, implica

em abolir o histórico na história (1999 p. 140).

No final da década de 1960, entretanto, uma explosão de mobilizações segmentares (indígenas, negros, feministas, homossexuais, ambientalistas, etc) faz ruir a concepção segundo a qual as lutas sociais se fortalecem politicamente somente à medida que se integram numa organização centralizada e unificada, produzindo crises no modo militância-vanguarda que alteram as paisagens relativas ao funcionamento dos movimentos sociais.

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Nossa aposta se dá num devir-revolucionário que contemple a invenção e a coexistência de diferentes modos de luta. Assim, na contramão de críticas desqualificadoras, descompromissadas e naturalizantes, não pretendemos discutir as práticas de militância como se fossem portadoras de uma natureza totalitária inescapável e, muito menos, queremos fortalecê-las como monopólio de uma elite esclarecida.

Ao problematizá-la, acreditamos que podemos contribuir para a produção de aberturas neste campo privilegiado de ação-intervenção política, potencializando relações sociais rebeldes não hegemônicas; legitimando essas ações como práticas de diferentes sujeitos; a serem experimentadas em qualquer espaço e contexto. Discutir a militância a partir das ações de rebeldia dos trabalhadores de uma Política estatal não se deve, portanto, a avaliações políticas e/ou identificações de lugares estratégicos e prioritários onde os processos de transformação social podem ser melhor ensejados, pois acreditamos que esses não se dão a priori.

Não negamos, com isso, que existam diferenças de funcionamento no diagrama das relações de saber-poder, como também no esquadrinhamento espaço-temporal, nos quais se investem distintas tecnologias de contra-insurgência, que aí são testadas e moduladas. Se assim não o fosse, o Estado não procuraria capturar e integrar os movimentos sociais na sua lógica de funcionamento – tal como operada nos espaços institucionalizados de participação – e, muito menos, haveria a necessidade de esses movimentos debaterem questões de tática e estratégia. Os Tupinikim-

Guarani, por exemplo, nos mostraram que se a luta pela terra fosse travada estritamente por dentro da máquina administrativa do Estado, suas ações seriam facilmente neutralizadas e o efeito dessa participação seria inócuo diante do imbricamento de interesses em jogo. Suas batalhas, ao estabelecerem-se, principalmente, em outros espaços, por outros vieses, muitas vezes contrários ao modo de funcionamento estatal, evidenciaram a atualização desta máquina de extermínio e genocídio das populações minoritárias. Acionário, beneficiário e porta- voz dos interesses da multinacional Aracruz Celulose (atual FIBRIA), o aparato jurídico, militar, econômico e político do Estado foi mobilizado para manter e criar as condições ideais de um desfecho favorável para a empresa, o que os indígenas evidenciaram e frustraram numa resistência multitudinária e em rede.

Assim, diferente da figura do militante profissional, especialista em mudanças sociais (LUDD, 2002), burocrata da revolução (FOUCAULT, 1994), membro obediente e disciplinado de coletivos hierarquizados e permeados de profundas razões de Estado, as práticas de militância que nos referimos “não tem pretensão alguma de representar as necessidades humanas fundamentais dos explorados” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 436). Trata-se de uma modalidade que não opera procurando uma unidade na variedade, nem funciona na lógica da reprodução, unificação e totalização.

Falamos, ao contrário, de um modo de militância que funciona na lógica da diferença, que se “orienta em direção à multiplicidade, ao dialogismo, à plurivocalidade” (LAZZARATO, 2006, p. 159), a partir da instauração e ampliação de “ligações laterais” (FOUCAULT; DELEUZE, 2013, p. 74), do investimento e aposta em “processos de singularização, de auto-organização, de auto-valorização” (GUATTARI; NEGRI, 1987, p. 8). Desta perspectiva,

O militante não é aquele que detém a inteligência do movimento, que resume em si suas forças, que prevê as escolhas, que extrai sua legitimidade da capacidade de ler e de interpretar as evoluções do poder, mas é simplesmente aquele que introduz uma descontinuidade naquilo que existe. Ele faz bifurcar os fluxos de palavras, de desejos, de imagens, para colocá-las a serviço da potência de agenciamento da multiplicidade; ele reconecta as situações singulares, sem se colocar em uma perspectiva superior e totalizante. É um experimentador (LAZZARATO, 2006, p. 235).

(HARDT; NEGRI, 2005, p. 436), que faz da “resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor” (p. 437). Desejo, como diria Paulo Freire (1987, p. 107), de “criação de um mundo em que seja menos difícil amar”, ou, como afirmam os Zapatistas: “de criação de um mundo em que caibam outros mundos”.

Esse militante contemporâneo já não se reduz à lógica dos movimentos sociais, se entendidos como grupos organizados, portadores de reivindicações, bandeiras,

palavras-de-ordem, projetos e programas em torno de um ideal (um vir-a-ser). Para

falar desse novo militante precisaremos falar de outros modos-movimento, denominados aqui de movimentações.