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[...] a vida de cada pessoa não poderia se tornar uma obra de arte? (FOUCAULT, 2014).

O potencial de “alisamento” da Brigada manifestou-se sempre que espaços institucionalizados foram ocupados de forma inesperada, desestabilizando posições e relações de poder instituídas. Em oposição, aquelas intervenções que não se alimentaram de fatos imprevisíveis (e tampouco os produziram), parecem ter funcionado na lógica organizativa dos espaços que em tese se propunham a questionar, compondo uma paisagem naturalizada da qual simplesmente divergiam pelo conteúdo de suas bandeiras, faixas, cartazes e palavras de ordem.

Mudanças não-programadas, desvios de trajeto, ações não-planejadas, alterações

não-acordadas, fugas antecipadas que, para alguns movimentos seriam

prontamente julgados como atos de indisciplina, individualismo, espontaneísmo ou desorganização, passam a ser valorados – após a vivência das diferenças de efeito acima relatados – como possibilidade de auto-análise, auto-criação, transformação e produção de acontecimentos.

Não se trata, contudo, de uma espécie de culto do imprevisível, como se a incerteza não produzisse angústia e conflitos e seus membros não se movimentassem para contorná-los. Para cada ação havia sim um planejamento com projeção de efeitos, mas uma certa receptividade ao imponderável sinalizava um modo deste coletivo relacionar-se com algo do qual não era possível escapar, sendo melhor incorporá-lo na modulação das intervenções.

Os acasos são tomados, assim, como situações que podem conferir brilho aos atos, desde que sejam incluídos no processo de uma ação em curso. Por meio deles pode-se intensificar um movimento, revertê-lo, dar-lhe velocidade, lentificá-lo quando necessário, enfatizar um gesto ou recuar quando um cerco, ou obstáculo, assim o exigir.

O elemento incógnito, ao contrário de ser excluído, é tratado como condição de problematização e “alisamento”, oportunidade de ataques-surpresas e fugas inesperadas, compondo parte de uma estética de luta, entendida aqui como a invenção de novos modos de insurgência, como possibilidade de criação de novos modos de luta, esculpidas como obra de arte. Não a partir de modelos reivindicatórios/contestórios, mas a partir de experimentações e criações rebeldes. As ações diretas da Brigada inventam, assim, aos nossos olhos, uma estética dissidente em relação aos modos hegemônicos e regulamentares de protesto, constituindo experimentos subversivos que aparecem e desaparecem no tempo- espaço, em quantidades e qualidades imprevisíveis, animadas por afectos nômades exteriores à lógica estatal.

Como em uma prática de Parkour52– que subverte o uso ordenado e racional dos espaços, seguindo o princípio de mover-se de um ponto a outro o mais rápido e eficientemente possível – as ações construídas nas situações de intervenção, no

52 “Parkour (...) atividade cujo princípio é mover-se de um ponto a outro o mais rápido e

eficientemente possível, usando principalmente as habilidades do corpo humano. Criado para ajudar a superar obstáculos de qualquer natureza no ambiente circundante [...] como se estivesse em uma emergência”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Parkour>. Acesso em: 28 nov. 2013. “A inspiração para criar o nome veio da expressão ‘Parcours Du Combattant’. Foi uma referência ao percurso de obstáculos desenvolvido por Georges Hébert (1875-1957), pioneiro na prática de educação física na França como parte de seu ‘Méthode Naturelle’, ou Método Natural de Educação Física, concebido no início dos anos 20 e que foi utilizado por soldados franceses na Guerra do Vietnã para realizar resgates”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Parkour>. Acesso em: 08 dez. 2014.

curso do seu desenvolvimento, tornam-se, potencialmente, invenções criativas e singulares.

O estabelecimento de um objetivo concreto (a demarcação do território Tupinikim) e de ataques estratégicos a pontos específicos da rede de relações de poder que apóiam a posição da Aracruz Celulose, incita a Brigada a constituir todo um modo de funcionamento tático que a diferencia esteticamente de outros movimentos sociais organizados. Mecanismos sutis de conjuração de lideranças formais, de estruturas organizativas, ideologias ou programas repelem a produção de modos de funcionamento pré-estabelecidos (estatais) e abrem um campo de experimentações e criações provisórias, afastando-a de qualquer tipo de comprometimento com espaços de participação social instituídos.

A experiência indígena ensina o coletivo que a exclusiva submissão da luta a determinados procedimentos burocráticos e protocolos jurídicos restringem o campo de disputa a mecanismos estatais que tendem a interiorizar os movimentos em arenas afastadas do cotidiano, onde tende a exercer sua soberania. Códigos frios, “regras de etiqueta”, filtros de conduta e jogos de poder tendem a serem efetivados por especialistas na arte da negociação (muitos cooptados no seio dos próprios movimentos), produzindo uma cena para a apreensão e canalização da revolta, redução de sua potência. Nesses espaços estriados, esquadrinhados, esteticamente ordenados, restam poucas brechas para um movimento de ruptura com essa lógica instituída.

As intervenções, portanto, perdem sua potência ao agirem conforme esses regulamentos. Aqueles que se recusam a participar dessas arenas são apresentados como elementos perigosos, desgarrados, bárbaros, tentando-se cooptá-los, seduzi-los, desqualificá-los, marginalizá-los, criminalizá-los, reprimi-los e, se necessário for, exterminá-los.

Porém, o Estado não alcança aquilo que é pura velocidade. A imprevisibilidade da

máquina de guerra e a invisibilidade da TAZ compõem uma poderosa estética de

luta capaz de afirmar outras formas de resistências53.

53

Inúmeros agrupamentos rebeldes, em diferentes tempos e espaços, utilizaram técnicas de invisibilidade em situações conflitivas com exércitos nacionais e/ou grupos mercenários semelhantes: indígenas e quilombolas aproveitaram-se das densas florestas tropicais para realizar

Ao contrário do que possa parecer, não queremos discutir a experiência da Brigada como um modelo, um ideal de ação ou de organização. Queremos, isto sim, afirmar seu caráter experimental e provisório. Trata-se de uma invenção datada e localizada que interroga os modos institucionalizados de resistir. Assim como ela, outras experimentações em Vitória, no Espírito Santo, no Brasil e no mundo compõem o anúncio de um novo ciclo de revoltas, com estéticas e dinâmicas emergentes de luta. São “coletivos”, “grupos”, “redes”, “fóruns”, “frentes” que, apesar de origens distintas e ações diversas, emergem de críticas compartilhadas ao modelo da esquerda institucionalizada e suas estruturas piramidais de Partido e Vanguarda. Também, vale dizer, não pretendemos fazer uma taxonomia das resistências, cotejando os movimentos sociais. Mas discutir a experiência da Brigada na esteira dessas novas enunciações, procurando contribuir para a potencialização de seus eventos e de sua abertura do/no tempo e espaço. Elas podem ser temporárias, pequenas e localizadas, mas atingem uma rede difusa e globalizada de relações de poder.

Para além das múltiplas micro-experiências impossíveis de identificar, já é possível citar uma série de movimentos, a nível mundial, que funcionam experimentando novas estéticas de luta: as manifestações de Seattle, de Genova e dos Fóruns Sociais Mundiais; as mobilizações dos piqueteros na Argentina; dos cocaleros na Bolívia; dos indígenas no Chile e no Equador; o movimento Ocuppy Wall Street, nos Estados Unidos; a Primavera Árabe, nos países do norte da África e do Oriente Médio; as manifestações na Grécia, Espanha e Portugal, na Europa; as revoltas de junho/julho, no Brasil; etc; etc.

Ainda que diversos nas suas motivações, composições, bandeiras, esses movimentos valorizam princípios organizativos semelhantes, tais como: horizontalidade, autonomia, descentralização, independência, apartidarismo, decisões por consenso, apontando para um novo paradigma de lutas organizadas em/por redes (rede de redes, movimento de movimentos), que tem no levante do

fugas repentinas e/ou ataques surpresas, visando a defesa de seus territórios; os conselheiristas (Guerra de Canudos, 1896-1897), utilizavam roupas nos tons bege que os camuflavam em meio a paisagem típica do sertão baiano. Os vietcongs, em outro exemplo clássico, venceram o exército mais poderoso do mundo, na Guerra do Vietnã, utilizando túneis e galerias subterrâneas, por onde se deslocavam sem serem vistos.

Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ocorrido no dia 1° de janeiro de 1994, uma de suas principais fontes de inspiração.

No processo inventivo dessa estética dissidente, inúmeros coletivos vêm sendo criados e dissolvidos, formando-se a partir de experimentações organizativas democráticas, ousando ações locais e temporárias, articuladas e ecoadas pela Internet, constituindo, por vezes, redes de alcance global. Como as ações da Brigada contribuem para a análise dessas dinâmicas emergentes?