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o que fica do lado de fora da discussão?

2. Desnaturalizando “evidências” humanas

2.1. Barão de Münchhausen, pântano e problema

... como sair dali? Rudolf Erich Raspe, em uma das narrativas características do famoso personagem100, sopra-lhe vida em surpreendente solução: o barão não se faz de rogado e, tecendo seus cabelos em trança, puxa a si mesmo para fora do espaço que o engolia.

Pêcheux alude a esta caricata cena chamando ironicamente de efeito Münchhausen a ilusão da evidência do sujeito como causa de si: Explica que se é verdade que a ideologia “recruta” sujeitos entre os indivíduos (no sentido em que os militares são recrutados entre os civis) e que ela os recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo os “voluntários” são designados nesse recrutamento, isto é, no que nos diz respeito, de que modo todos os indivíduos recebem como evidente

o sentido do que ouvem e dizem, lêem ou escrevem (do que eles querem e do que se

quer lhes dizer), enquanto “sujeitos-falantes”: compreender realmente isso é o único meio de evitar repetir, sob a forma de uma análise teórica, o “efeito Münchhausen”, colocando o sujeito como origem do sujeito, isto é, no caso de que estamos tratando, colocando o sujeito do discurso como origem do sujeito do discurso101.

100 “Karl Frederico Hierocracias Von Münchhausen (11 de maio de 1720 – 22 de fevereiro de 1797) foi um militar e senhor rural alemão. Os relatos de suas aventuras serviram de base para a célebre série As Aventuras do Barão

de Münchhausen, compiladas por Rudolf Eric Raspe e publicadas em Londres em 1785. São histórias

fantásticas e bastante exageradas, propagadas sobretudo na literatura juvenil. Um personagem que se equilibra entre a realidade e a fantasia em seu mundo próprio, onde enfrenta os mais diversos perigos, perpetra fugas impossíveis (sendo a mais famosa delas a fuga de um pântano onde afundava, tendo conseguido por puxar os próprios cabelos), testemunha fatos extraordinários e faz viagens fantásticas — sem jamais perder a fleuma” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_M%C3%BCnchhausen)

101 P

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“Quem é negro no Brasil?” A pergunta desperta inquietudes e move debates acalorados. Por quê? Ela justamente dá a ver fissuras, falhas, furos da noção de sujeito que o pretende já-dado, classificável, sem espaços de indistinção.

Em nossa perspectiva, o sujeito não é empírico: é constituído na / pela linguagem, em processos identitários inscritos em diferentes espaços de MEMÓRIA. O indivíduo, afetado pelo inconsciente, é interpelado em sujeito pela IDEOLOGIA, cujo trabalho consiste em produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência102. Nesse processo, há injunção ao que se pode / deve dizer: o sujeito é interpelado por discursos e já-ditos que o fazem significar/ ser significado em dada sociedade, em dada historicidade. 102 O RLANDI, 2007: 46. MEMÓRIA Ou interdiscurso, como definimos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-

dito que possibilita todo dizer

(ORLANDI, 2007:64. Grifos nossos).

Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço de divisões, disjunções, de deslocamentos, e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas econtra-discursos (PÊCHEUX, 2007: 56). IDEOLOGIA

Funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradição (...). O que aparece ao sujeito como sua definição mais interna e essencial é justamente o que o submete: quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída. Quanto mais certezas, menos possibilidade de falhas: não é no conteúdo que a ideologia afeta o sujeito é na estrutura mesma pela qual o sujeito (e o sentido) funciona:

(...) não é em ‘x’ que está a

ideologia é no mecanismo (imaginário) de produzir ‘x’, sendo ‘x’ um objeto simbólico. Isso tudo derivando do fato de que não há sentido se a língua não se inscrever na história. A ideologia não é ocultação, ela é produção de evidências

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Uma vez apagado (ESQUECIDO) o processo histórico- discursivo que o produziu como X, Y ou ...., a constituição do sujeito é apartada da constituição dos sentidos como se fossem processos distintos, separados, sem relação. Nas Ciências Sociais, seja assentando conclusões em “testemunhos de estrangeiros idôneos” como fez Freyre para sustentar sua tese sobre a benignidade da escravidão no Brasil103, seja relatando “casos diversos” para mostrar “os ajustamentos em que as pessoas interagiam como ‘negros’, ‘brancos’ e ‘mulatos’” tal qual Fernandes104, ou mesmo afirmando que “a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco obtém da desqualificação competitiva dos não brancos”105 como em Hasenbalg, discute-se os frascos que conteriam poções transformadoras de “Alices” em corpos considerados ideais. Daí escapam questões fundamentais: quem diz, e com que direito ao produzir

103 “Contra a lenda de uma escravidão do africano, no Brasil, sempre infernalmente cruel, opus toda uma série de testemunhos de estrangeiros idôneos no sentido de reconhecer-lhe aquela benignidade. Alguns até repudiando excessos de benignidade que testemunharam” (FREYRE, 1979: XII. Grifos nossos).

104“As expectativas que regulam, reciprocamente, os ajustamentos em que pessoas interagiam como ‘negros’, ‘brancos’ ou ‘mulatos’ podem ser melhor compreendidas e interpretadas por meio da descrição de situações concretas. Por isso, selecionamos alguns dados, relativos a dez casos diversos, que ilustram, de forma típica, as predisposições psicossociais que orientavam o comportamento dos agentes” (FERNANDES, 2008 [1954]: 128. Grifos nossos).

105 1979: 85.

ESQUECIMENTO no.1 Apaga a interpelação ideológica. O sujeito se

constitui pelo esquecimento daquilo que o determina.

Mesmo não havendo marcas, todo discurso é atravessado por discursos outros: sabe-se

que esta coisa é o X que..., que corresponde a “sabe-se o que se sabe” (PÊCHEUX, 2009 [1988]).

ESQUECIMENTO no.2 Apaga, no interior da formação

discursiva, o modo como selecionamos certas palavras/ expressões e não outras. É o que produz a ilusão de que o que é dito só tem um sentido

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fra(s)cos, ou melhor dizendo, discursos que significam sujeitos e sentidos? Como se constituíram? Por que estes – e não outros, também possíveis? De que modo os GESTOS DE

INTERPRETAÇÃO produzem o efeito de “tamanho ideal”? Intervimos com Pêcheux: nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior. Inscrevemos estas questões no quadro teórico-analítico da Análise de Discurso, em filiação a trabalhos de Pêcheux, Orlandi e outros pesquisadores: diremos de “frascos” (memórias) e “Alices” (SUJEITOS) considerando a relação entre ditos sobre (linguagem)eo queafetasuaconstituição(CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO).

Recusamos, pois, este fazer intelectual que reflete sobre sujeitos empíricos, que dizem-o-que-dizem em movimentos de dentro-para-fora: como frascos sem exterior, recolheriam das prateleiras instaladas em sua consciência as palavras-rótulos que ilustrariam uma relação direta entre pensamento/linguagem/mundo. Em nossa perspectiva, o que dizem (não só, mas também) “estrangeiros idôneos” e “negros, brancos ou mulatos”, “negros, brancos e não brancos” – mencionados por Freyre, Fernandes e Hasenbalg respectivamente – já é

GESTOS DE INTERPRETAÇÃO

Ao utilizarmos a expressão gestos de leitura, como é próprio da análise de discurso, e no meu caso específico

gestos de interpretação,

estamos pois fazendo da leitura, e da interpretação, um ato simbólico dessa mesma natureza de intervenção no mundo. Uma prática discursiva. Ideológica. Com suas consequências. Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou seja, ela intervém no real do sentido (ORLANDI, 2007: 84).

SUJEITO

O sujeito na análise de discurso não é o sujeito empírico, mas a posição sujeito projetada no discurso. Isto significa dizer que há em toda língua mecanismos de projeção que nos permitem passar da situação sujeito para a posição sujeito no discurso. Portanto, não é o sujeito físico, empírico que funciona no discurso, mas a posição sujeito discursiva (ORLANDI, 2010: 15).

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

As condições de produção incluem (...) os sujeitos e a situação. A situação, por sua vez, pode ser pensada em seu sentido estrito e em sentido lato. Em sentido estrito ela compreende as circunstâncias da enunciação, o aqui e o agora do dizer, o contexto imediato. No sentido lato, a situação compreende o contexto sócio-histórico, ideológico, mais amplo. Se separarmos contexto imediato e contexto amplo é para fins de explicação, na prática não podemos dissociar um do outro, ou seja, em toda situação de linguagem esses contextos funcionam conjuntamente (...) Faz ainda parte das condições de produção a memória discursiva, o interdiscurso (...)

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interpretação, é (efeito de) sentido produzido na História e materializado pelos sujeitos interpelados por determinada ideologia, em um processo afetado pelo inconsciente. É, pois, resultado da identificação com alguma das “poções transformadoras de corpos ideais” disponíveis (posições-sujeito)106.

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