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o que fica do lado de fora da discussão?

5. Constituindo o corpus

A constituição do corpus é o primeiro gesto de análise: a construção, o corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas195. Ele não é, pois, resultado de uma simples coleta do analista; trata-se de um material cuja seleção e análise relacionam suas condições de produção e seu funcionamento em discursividades sócio- históricas. Para operacionalizá-lo analiticamente, teoria e prática se constituem em um ir-e-vir entre a constituição do corpus e a análise propriamente dita. Um corpus pode ser constituído por apenas uma SEQUÊNCIA DISCURSIVA ou por um conjunto de sequências agrupadas conforme as regularidades enunciativas que apresentam: o que se deve ter em vista é a relação entre a(s) sequência(s) e suas condições históricas de produção. Trabalhamos aqui com um CORPUS COMPLEXO. Adentramos nas tramas dos discursos lexicográfico e jornalístico que circularam pelo país no século XIX, para analisar as

195 O

RLANDI, 2005a: 63.

SEQUÊNCIAS DISCURSIVAS

São sequências orais ou

escritas, de dimensão superior à frase(COURTINE,1981:25).

CORPUS COMPLEXO

É constituído a partir de

sequências discursivas produzidas ao mesmo tempo em sincronia e em diacronia

(COURTINE, 1981: 26). Uma definição estritamente sincrônica das condições de produção do discurso político apaga o fato de que o discurso sempre esteve lá. Assim, confundem-se as determinações históricas em um plano único, envolvidas no desenvolvimento de um processo discursivo e conjuntural, fatores circunstanciais ligados à situação do enunciado que têm sido asseguradas pela sincronia(2006: 66-7).

Mais adiante, Courtine prossegue: todo discurso

político deve ser pensado como uma unidade dividida, dentro de uma heterogeneidade em relação a si mesmo, que a análise do discurso político pode ser capaz de traçar(idem, 68).

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nomeações escravo e liberto e os termos que lhes são derivados (escravizar, libertar,

escravidão, etc.) e os que aparecem como sinônimos (como libertando, escravizado). Explicamos.

Gilberto Freyre196 busca representações sobre o “negro” nas páginas de jornais pernambucanos; Lilia Schwarcz investe na “importância da imprensa paulista de finais do século como fórum de debates centrais da época”197; (a) inscrevendo seus trabalhos em contextos específicos, estes pesquisadores (b) generalizam suas explicações para dizer do Brasil e seus processos identitários. Também temos vários outros trabalhos elaborados por pesquisadores considerados como referência no assunto, que não passam por (a) mas impreterivelmente realizam (b).

Chamamos a atenção para duas questões: (i) De quem se diz?

O termo “africano” já é efeito de um apagamento: foram trazidos para o Brasil povos constituídos por diferentes histórias. E são todos reduzidos ao denominador comum: africano198;

196 FREYRE, 1979.

197 SCHWARCZ, 2001: 15

198 Concordamos com PINCERATI (2008: 233): os termos afro-brasileiro e afro-descendente, por exemplo, marcam um apagamento pela afirmação de uma ancestralidade, a africana, como se houvesse UMA África, que, por outro lado, foi apagada, uma vez que os africanos transladados da África para o Brasil, durante a escravidão, foram “misturados” durante todo o translado, com o fim também de evitar a resistência pelo apagamento da “identidade” étnica e linguística. Ora, uma vez “misturados” não poderiam se comunicar (e se “identificar”), pois falavam cada qual a sua língua. Ressalta-se, ainda, o fato de que houve um apagamento absoluto da história desse translado.

121 (ii) De onde se diz?

Em geral, assume-se o escravizado africano como força motriz das atividades econômicas de UM Brasil – desconsiderando, pois, as diferenças entre as regiões e, consequentemente, diferentes possibilidades de inscrição dos “africanos” na vida econômica, social e cultural das províncias em que foram instalados.

Considerando que: L'ensemble des conditions de production constitue le champ des déterminations des textes199 (o conjunto das condições de produção constitui o campo das determinações dos textos), a construção do corpus desta pesquisa foi regido inicialmente pelas questões (i) e (ii). Tomamos a província de São Paulo por conta dos efeitos de centralidade produzidos: há uma memória do dizer que a significa como “cérebro do país”; e buscamos uma outra província que (i) mobilizou mão de obra escrava advinda de outra região da África e (ii) apresentasse diferenças constitutivas significativas em relação a São Paulo. Com isto, queremos confrontar as representações do “negro”: que sentidos são produzidos? As condições de produção seriam suficientemente diferentes para produzir sentidos distintos?

O segundo passo foi o de pesquisar regiões que tivessem uma imprensa constituída e significativa. Considerando que a Imprensa Régia foi instalada no Rio de Janeiro200 e, depois, em Salvador201, seguimos esta pista para avaliar a imprensa baiana. No século XIX “enquanto a impressão régia manteve seu monopólio no Rio

199 H

ENRY, 1968: 38

200 O Rio de Janeiro não atendia nossos objetivos, uma vez que as diferenças entre esta província e a de São Paulo não eram tão significativas: ambas mobilizavam escravos bantos.

201 Verger (1968) fala sobre a recusa dos paulistanos aos nagôs, considerados revoltosos. Em, Salvador, porém, os escravos seriam substancialmente de origem nagô.

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de Janeiro, qualquer outra publicação que circulasse em território brasileiro era apreendida pelas forças policiais. A única exceção seria a tipografia mantida - por autorização expressa de dom João VI - pelo negociante português Manuel Antonio da Silva Serva, em 1811, na cidade do Salvador”202. Mattoso203 considera a imprensa baiana bastante desenvolvida no século XIX e aponta o Diario da Bahia204 e o Jornal

de Noticias como grandes jornais da época.

Embora muito mais se possa dizer de São Paulo e de Salvador, resumimos as pistas que consideramos suficientes para confrontar diferenças entre estas províncias:

202 DINIZ, P. Uma breve trajetória da imprensa no Recôncavo da Bahia durante o século XIX. Disponível na internet: http://paginas.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/Uma%20breve%20trajetoria%20da%20imprensa.pdf. 203 MATTOSO (1982:207)

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Salvador São Paulo

D e o n d e v ier a m?

“1º ciclo” (século XVI): Guiné “2º ciclo” (século XVIII): Angola/ Congo

“3º ciclo” (século XVIII): Costa da Mina “4º ciclo” (século XVIII/ XIX): Costa do Benin205

Sudaneses Região de Angola206 Bantos207 C h e g a ra m onde ?

Primeira capital da sociedade nacional, berço de políticos que exerceram influência durante o século XIX208, solo que testemunhou as chamadas Revolta dos Alfaiates (1789) e a Revolta dos Malês (1835). Embora não possamos afirmar, pensamos no fato de estarem diante do caminho que os conduziu da África ao Brasil: o oceano, e uma das grandes celebrações que até hoje é realizada em Salvador é o dois de fevereiro, dia de Iemanjá. Além disso, a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (e outra grande festa, a lavagem de suas escadas), construída sobre uma pequena colina diante do mar. O Senhor do Bonfim remete à Oxalá, considerado o rei dos orixás, cuja cor é o branco; seu nome significa em iorubá “o rei do pano branco”, “o grande orixá”).

Fundada por jesuítas, teria na conversão do apóstolo Paulo de Tarso a origem de seu nome. Considerada uma das províncias mais antigas do Brasil, durante muito tempo teria permanecido isolada geograficamente de outras vilas. Em meados do século XIX, a ampliação da rede viária é objeto de grandes investimentos do Império209.

C o mo v iv e ra m n a / p a rt ic ipa ra m d a v ida n a s p ro v ín c ia s ?

Os “africanos” se dividiriam entre os que praticavam atividades agrícolas e agro-pastoris, serviços domésticos; também haveria sapateiros, pedreiros, barbeiros, carpinteiros, vendedores de rua, dentre outros serviços; alguns seriam alugados pelos senhores210. A Bahia foi um dos estados brasileiros com grande número de escravos: em 1872, concentrava a maioria dos cativos em território nacional (contava com 12,6% do contingente escravo no Brasil); em 1887, mesmo o número tendo sido reduzido para menos da metade (76 mil), ainda era o quarto estado brasileiro com maior quantidade de escravos. “Às vésperas da abolição, havia senhores de engenho que tinham 300 escravos em cativeiro. Os senhores da região resistiram à libertação até os últimos dias”. Ainda assim, havia um grande número de libertos no Recôncavo baiano, e teriam exercido um papel importante no processo que desencadeou a abolição211. Verger afirma que em “razão da enorme concentração de africanos trazidos de uma única região e do caráter belicoso dos mesmos, as sublevações e revoltas produziram-se, na Bahia, entre os escravos importados”212.

A prática da policultura, durante seus três primeiros séculos, teria mobilizado principalmente a mão-de-obra indígena; a presença de escravos africanos é considerada inexpressiva. No século XIX, com o desenvolvimento da lavoura canavieira, o estado teria se integrado à economia de exportação, determinando o desenvolvimento da escravidão africana.213

205 VERGER, 1968: 7.

206 Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul também eram “abastecidas” com escravos oriundos predominantemente dessa região. 207 LIMA, s/a: 03.

208 Durante o Segundo Reinado, por exemplo, vários soteropolitanos ocuparam ministérios (como Sousa Dantas, Zacarias de Góis, José Antônio Saraiva e Maria José da Silva Paranhos).

209 Cf. B

UARQUE DE HOLANDA,S.(1949)"Índios e Mamelucos na Expansão Paulista". Anais do Museu Paulista. São Paulo, XIII:177-290. 210 VERGER (1968: 500-507) aponta essas atividades, observadas a partir da leitura de anúncios de jornais da época.

211 Fraga Filho: 2006. 212 VERGER, 2002: 34. 213 Q

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Dentre os jornais que circularam nestas províncias, selecionamos:

Diario da Bahia214 / Jornal de Noticias215 (Bahia) e Correio Paulistano216 / A

Província de São Paulo217 (São Paulo). Além da mídia impressa cotidiana, também incluímos no corpus verbetes do Diccionario Contemporaneo da Lingua

Portuguesa (Caldas Aulete, 1881), para confrontar sentidos produzidos na língua em

uso (discurso jornalístico) e em dizeres estabilizados (discurso lexicográfico).

Com este corpus amplo e representativo, investigamos a memória discursiva que reaviva os implícitos em relação ao “negro” no momento atual: interrogar, pois, a produção discursiva em movimento, que faz circular formulações já enunciadas218.

Enveredamo-nos pelas tramas discursivas incrustadas em letras que tecem cadeias significantes nas “palavras de dicionário” e nas “palavras de notícias”; antes, algumas considerações sobre os passos que não daremos:

214 Salvador, 1856-1956. Periódico alinhado à corrente política liberal, comprometeu-se com a causa abolicionista a partir de 1856. A periodicidade era diária (exceto às segundas-feiras) e seria o jornal de maior circulação. Impresso em quatro folhas (menos aos domingos, em que seis páginas eram publicadas), de um modo geral apresentava a mesma diagramação.

“O Diário da Bahia serviu de arauto àqueles que seriam mais tarde a cúpula do Poder Liberal em plano nacional”, afirma Kátia Maria de Carvalho Silva. Ruy Barbosa, Manuel Vitorino, Luiz Vianna e Augusto Álvares Guimarães são alguns dos políticos que se manifestaram em suas páginas. A historiadora também fez um levantamento dos assuntos mais discutidos nas páginas deste periódico durante os anos de 1884 a 1887: em primeiro lugar, estariam as campanhas eleitorais (51,4%), depois viriam a propaganda abolicionista (41,4%) e a “instrucção” (6,8%). 215 Salvador, 1879-1917. Dentre cerca de 400 periódicos baianos que circularam na virada do século XIX para o XX, o Jornal de Noticias foi, assim, como o Diario da Bahia e o Diario de Noticias, o que alcançou longevidade (a maioria dos jornais tinham uma existência curta, alguns deles se resumiam a apenas uma edição) e teria sido "alvo de preferências gerais” (CARVALHO FILHO, A. Jornalismo na Bahia- 1875-1960. Revista do IGHB, n.82, 1958-1960, p.19).

216 Pioneiro na circulação de periódicos diários em São Paulo – e terceiro do país –, firmou-se em 1854 e manteve presença nas bancas de revista brasileiras até 1963 (THALASSA, 2007: 3-4).

217 S

CHWARCZ afirma que A Província de São Paulo foi um jornal criado em 1875 “em nome de um grupo e de um partido” – o partido republicano (ver Schwarcz, 1987: 72-85). Após a proclamação da República, o jornal foi rebatizado como O Estado de S.Paulo.

218 Cf. C

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(i) Criticar a necessidade dos dicionários e dos jornais.

(ii) Denunciá-los como instrumentos de manipulação consciente de sujeitos que exerceriam pleno controle sobre o dizer.

(iii) Fazer uma análise de conteúdo, “revelando” o que estaria nas entrelinhas.

Esclarecemos.

(i) Não se trata de questionar a função, e sim o funcionamento. Investimos em práticas discursivas considerando sua materialidade linguística como lugar que concretiza uma relação entre a língua, o sujeito e a história. Assim como Orlandi deixa de reverenciar o dicionário (...) como monumento à língua, também não reverenciaremos o jornal como monumento à história; ao perder seu caráter monumental para ser um objeto tangível de nossa relação com a língua na história, ele[s] se apresenta[m] como vestígio de nossa memória histórico-social”219.

(ii) A língua nos “obriga” a dizer, afirma Barthes, mas temos a ilusão de um efeito inverso: o de que a dominamos. Os dicionários (e também as gramáticas) funcionam provocando essa mesma ilusão: com a produção do saber metalinguístico se cria a ilusão de que se pode, com ele, dominar a língua220; quanto aos jornais, o processo de construção das notícias é apagado. Se, por um lado, o dicionário é um instrumento linguístico que modifica a relação dos falantes com a língua”221 e o jornal

219 O RLANDI, 2013: 116. 220 ORLANDI, 2013: 117. 221 N UNES, 2006: 64.

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modifica a relação do interlocutor com os acontecimentos, por outro lado, é ao se inscrever na história que a língua significa; sujeito e sentido se constituem simultaneamente, em um processo em que ideologia e inconsciente se articulam. Práticas discursivas tais como o dicionário e o jornal funcionam, ao mesmo tempo, como representação da língua e índice de discursividades.

(iii) Concordamos com Orlandi: não é pelo conteúdo que chegamos à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos. O conteúdo ‘contido’ num texto serviria apenas como ilustração de algum ponto de vista já afirmado alhures”222. Não partiremos, portanto, de sentidos literais, “prontos”; o que há são possibilidades de interpretação: os sentidos não são empíricos, são constituídos em processos discursivos, na relação entre interlocutores. Em nossa perspectiva, o leitor não interage com o texto, mas com outro sujeito [...] nas relações sociais, históricas, ainda que mediadas por objetos (como o texto). Ficar na objetividade do texto, no entanto, é fixar-se na mediação, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele, logo sua significância”223.

222 ORLANDI, 1999: 90-1.

223 O

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