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As cores da nação : um estudo discursivo de artigos colocados em circulação pela mídia impressa sobre o novo lugar do "negro" no conjunto da sociedade nacional

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FABIANE TEIXEIRA DE JESUS

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ORES DA

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AÇÃO

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Um estudo discursivo de artigos colocados em circulação pela mídia impressa sobre o novo lugar do “negro” no conjunto da sociedade nacional

Campinas 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

FABIANE TEIXEIRA DE JESUS

A

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C

ORES DA

N

AÇÃO

:

Um estudo discursivo de artigos colocados em circulação pela mídia impressa sobre o novo lugar do “negro” no conjunto da sociedade nacional

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos pré-requisitos para a obtenção do Título de Doutora em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Carolina María Rodríguez Zuccolillo

CAMPINAS 2014

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vii RESUMO

“Isso tudo não está tão mal”, disse Montaigne, fazendo um relato considerado elogioso aos tupinambás. Lá pelas tantas, o filósofo desabafa: “Mas eles não usam calças!”.

Quase cinco séculos depois a desigualdade entre os homens ainda reverbera, afetando atuais formas de sociabilidade. Discutimos as “calças”, numa conjuntura em que ela desliza para “peles”: aquele nós-usamos-calças-e-eles-não toma a forma de eles-têm-pele-escura-e-nós-não. “O canto das três raças” entoado por Clara Nunes toma a forma de vividos cotidianos que atualizam essas tensões. Tema árduo, ardente e ardiloso recorrentemente abordado por intelectuais – e sentido na pele de uma Nação; vez e outra atiça olhares ansiosos por desembaraçar os emaranhados e contraditórios fios condutores de constituições identitárias. Como pensar esses sentidos “colados” à pele?

Um dos objetos de estudos frequentemente convocado com vistas à compreensão da formação social brasileira é a escravidão. Também incursionamos por estas trilhas de dizer visitadas (e também constituídas, conforme discutimos) por cientistas sociais. Mas realizamos alguns deslocamentos: (i) nossas análises não se embasam em uma correlação direta entre sujeito e instituições sociais, (ii) consideramos a constituição do corpus um primeiro gesto de análise: não tomamos, pois, um material previamente constituído para nele comprovar hipóteses e/ou responder às questões propostas e (iii) tratamos das nomeações escravo e liberto, interrogando-as, ao invés de nos atermos ao seu “sentido literal”, ou seja, “pronto”, já-dado.

Investigamos processos de subjetivação por silenciamento, em que sujeitos são despidos de sua historicidade e “vestidos” em pele escura. Nossas análises nos levaram a desdobramentos desta questão: ao deixar de atender pelo nome escravo e passar a ser chamado de liberto, o “negro” ocupa um novo (ou outro) lugar? Entre uma posição e outra, que sentidos deslizam? O que é preciso esquecer (silenciar/ apagar) para que novos sentidos irrompam? São novos?

Enveredamo-nos pelas tramas discursivas incrustadas em letras que tecem cadeias significantes nas “palavras de dicionário” (discurso lexicográfico) e nas “palavras de notícias” (discurso jornalístico). Nosso corpus é constituído por (i) artigos de jornais representativos que circularam no século XIX:

Diario da Bahia / Jornal de Noticias (Bahia) e Correio Paulistano / A Província de São Paulo (São

Paulo) e (ii) verbetes do Diccionario Contemporaneo da Lingua Portuguesa (Caldas Aulete, 1881). Sendo este objeto tradicionalmente abordado por cientistas sociais (inclusive afetando, conforme discutimos, não só imaginários que significam sujeitos, mas também a própria Nação), partimos deste quadro epistemológico e trazemos para a Análise de Discurso (em filiação a trabalhos como os de Orlandi, Pêcheux, Henry etc.) a discussão de questões que consideramos fundamentais e não podem ser contempladas no escopo teórico daquela área do conhecimento.

Trilhando acontecimentos de “Alices” em “corpos ideais” para adentrar no “país das maravilhas”, perscrutamos “frascos com poções transformadoras de corpos” (memórias) e “Alices” (sujeitos) na relação entre ditos (linguagem) e o que afeta sua constituição (condições de produção). Conduzimo-nos por questões como: quem produz (e com que direito) fra(s)cos, ou seja, memórias

que significam sujeitos e sentidos? Como? Por que estes – e não outros, também possíveis? De que modo gestos de interpretação (re)formulam “corpos ideais”/ país em que se inscrevem? PALAVRAS-CHAVE

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ix RESUME

« Tout cela ne va pas trop mal ». Ainsi Montaigne conclut-il son récit, considéré comme élogieux, sur les Tupinamba, avant d’ajouter : « Mais quoy, ils ne portent point de haut-de-chausses ! ». Pratiquement cinq siècles plus tard, l’inégalité entre les hommes retentit encore, qui affecte des formes de sociabilité actuelles. Nous discutons ce « haut-de-chausses » dans une conjoncture où il dérive vers « peaux » : ce « nous-portons-des-hauts de chausses-mais-pas-eux » cède la place à « ils-ont-la-peau-obscure-mais-pas-nous ». « Le chant des trois races » entonné par Clara Nunes prend donc la forme de vécus quotidiens mettant ces tensions à jour. Thème ardu, ardent et hardi régulièrement abordé par des intellectuels – et ressenti au plus haut point par une Nation ; il attise de temps en temps des regards désirant démêler les fils conducteurs enchevêtrés et contradictoires des constitutions identitaires. Comment penser ces sens qui « collent » à la peau? Un des objets d’études souvent convoqué pour comprendre la formation sociale brésilienne est l’esclavage. Nous avons également exploré ces sentiers de dires empruntés (mais également constitués, comme nous le discutons) par des chercheurs en sciences sociales, mais non sans y réaliser certains déplacements : (i) nos analyses ne se fondent pas sur une corrélation directe entre sujet et institutions sociales, (ii) nous considérons la constitution du corpus comme un premier geste d’analyse : nous ne prenons donc pas un matériau préalablement constitué pour y prouver des hypothèses et/ou répondre aux questions proposées, et (iii) nous traitons les dénominations esclave et affranchi en les interrogeant, plutôt que, au contraire, de nous en tenir à leur « sens littéral », soit « prêt », déjà-donné.

Nous avons examiné les processus de subjectivation par mise sous silence : comment des sujets sont-ils dénués de leur historicité et « revêtus » d’une peau obscure ? Nos analyses nous ont poussées à fractionner cette question : quand il cesse de répondre au nom d’esclave pour commencer à être appelé affranchi, le « Noir » occupe-t-il une nouvelle (ou autre) place ? Entre une position et l’autre, quels sens se déplacent ? Que faut-il oublier (réduire au silence/effacer) pour que de nouveaux sens surgissent ? Sont-ils vraiment nouveaux ? Nous avons dirigé nos pas vers les trames discursives incrustées dans les lettres tissant des chaînes signifiantes dans les « mots des dictionnaires » (discours lexicographique) et dans les « mots des informations » (discours journalistique). Notre corpus est constitué: (i) d’articles de journaux représentatifs ayant circulé au XIXe siècle : Diario da Bahia / Jornal de Noticias (Bahia) et Correio Paulistano / A Província de São Paulo (Sao Paulo) ; et

(ii) d’entrées du Diccionario Contemporaneo da Lingua Portuguesa (Caldas Aulete, 1881).

Comme cet objet est traditionnellement abordé par des chercheurs en sciences sociales (ce qui, d’ailleurs, affecte, comme nous le discutons, non seulement les imaginaires signifiant des sujets, mais encore la nation elle-même), nous sommes parties de ce cadre épistémologique pour reprendre la discussion de questions, qui nous semblent fondamentales et ne peuvent pas être traitées dans le cadre théorique de ce champ de connaissance, dans le domaine de l’Analyse du Discours (affiliée à des travaux comme ceux d’Orlandi, de Pêcheux, d’Henry etc.).

En parcourant des évènements d’« Alices » dans des « corps idéaux » pour entrer au « pays des merveilles », nous avons minutieusement examiné des « flacons contenant des potions transformatrices de corps » (mémoires) et des « Alices » (sujets) dans la relation entre les dits (langage) et ce qui affecte leur constitution (conditions de production). Nous avons donc abordé des questions comme : qui produit des flacons/faibles, soit des mémoires, signifiant sujets et sens (et de quel droit) ? Comment ? Pourquoi ceux-ci, et non pas d’autres également possibles ? Comment des gestes d’interprétation (re)formulent-ils les « corps idéaux »/pays où ils s’inscrivent ? MOTS-CLES

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xi ABSTRACT

“All this is not too bad”, said Montaigne in his account, seen as flattering, on the Tupinambá. Before he added: “But they don’t wear breeches!”

Almost five centuries later, inequality among men still echoes, affecting current forms of sociability. We discuss “breeches” in a backdrop where they turn into “skins”; where this “we-use-breeches-and-they-do-not” becomes “they-have-dark-skins-and-we-“we-use-breeches-and-they-do-not”; where “O canto das três raças” intoned by Clara Nunes takes the form of everyday experiences that update/actualize these tensions. An arduous, ardent, and artful topic – which the Nation experiences deeply – regularly tackled by intellectuals; from time to time it catches the attention of whoever is eager to disentangle the disheveled and contradictory red threads of identity building. How can we think these meanings as “stuck” to our skin? One object of studies frequently called forth to understand Brazilian social formation is slavery. We also followed the trails of sayings taken (as well as constituted, as we discuss it) by social scientists. Yet we introduced shifts: (i) our analyses are not grounded in a direct correlation between subject and social institutions, (ii) since we consider the constitution of a corpus as the first analysis step, we do not take previously constituted materials to prove our hypotheses and/or answer the questions raised with it, and (iii) we question the designations slave and freedman rather than nail them down to their “literal”, i.e., “ready”, already-established, sense.

We investigated subjectivation processes through silencing, in which subjects are barren of their historicity and “dressed” with dark skins. Our analyses led us to unfold our initial question: when they no longer answer to the name of slave and begin to be called freedman, do “black people” occupy a new (or different) place? Between these two positions, which meanings shift? What should one forget (silence/ erase) so that new meanings burst in? Are these really new?

We headed towards the discursive webs embedded in letters that weave significant chains in “dictionary words” (lexicographic discourse) and “news words” (journalistic discourse). Our corpus is constituted by (i) papers of representative newspapers that circulated in the 19th century: Diario

da Bahia / Jornal de Noticias (Bahia) e Correio Paulistano / A Província de São Paulo (São Paulo)

and (ii) entries of the Diccionario Contemporaneo da Lingua Portuguesa (Caldas Aulete, 1881). Since this object is traditionally tackled by social scientists (which, as we discuss it, affects not only imaginations that signify subjects, but also the nation itself), we started from this epistemological framework to bring the discussion of issues, which we consider fundamental and that cannot be dealt with in the theoretical scope of this area of knowledge, into that of discourse analysis (affiliated to works as those by Orlandi, Pêcheux, Henry, etc.).

Following “Alices’” events within “ideal bodies” to penetrate into “wonderland”, we scrutinized “flasks with body transforming potions” (memories) and “Alices” (subjects) in the relation between “the said” (language) and what affects its constitution (production conditions). We were driven by such questions as: who produces flasks/frails, i.e., memories that signify subjects and meanings (and what entitles them to do so)? How? Why these – instead of also possible others? How do interpretation gestures (re)formulate the “ideal bodies”/ country within which they fall?

KEY WORDS

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SUMÁRIO

Introdução 21

O objeto 23

O problema 27

Como trataremos a questão 33

O lugar da Análise do Discurso 39

1. Um objeto de estudos tradicionalmente abordado por cientistas sociais 41

2. Desnaturalizando “evidências” humanas 71

2.1. Barão de Münchhausen, pântano e problema... 75

2.2. Os negros não foram colonizados porque são negros 81

2.3. O que faz (d)o brasil, (o) Brasil? 89

Escravidão / liberdade: o (E)estado da questão 93

3. A escrita e seus inscritos 103

4. Práticas discursivas: relação língua x sujeito x história 109

4.1. Discurso jornalístico: dominando uma história 109

4.2. Discurso lexicográfico: dominando uma língua 113

5. Constituindo o corpus 119

6. Os arquivos nos Arquivos 127

O novo lugar do “negro” na sociedade nacional 149

7. Há um ferimento sem nome: o de ter recebido um nome 151

7.1. Estabilização e apagamento 155

7.2. Nome(ado)s por “palavras de dicionário” e por “palavras de notícias” 189

8. “Fatos” e interpretações 193

9. Letra negra, imaginários brancos 201

10. Individualizando o “negro” 202

Considerações Finais 209

Bibliografia 217

Anexos 235

Anexo I – Verbetes do DCLP (1881) 237

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AGRADECIMENTOS

Ao Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, em especial aos funcionários Rosemeire Marcelino, Miguel Leonel dos Santos e Cláudio Platero;

À Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle e ao professor Jean-Marie Fournier; À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo;

À minha orientadora, Carolina Rodríguez-Alcalá;

Aos professores Marcos Barbai, Onice Payer, Guilherme Carrozza, Lauro Baldini e José Horta Nunes – e um agradecimento especial a Suzy Lagazzi, Eduardo Guimarães, Greciely Costa e Telma Domingues da Silva, por todas as contribuições na banca de defesa. Com admiração e respeito,

Fabi(ane) Jesus

À Daniela Quevedo, pela escuta. Fabiane

Aos amigos e familiares que acompanharam este percurso, ouvindo repetidamente: agora não dá, preciso terminar a tese...

Fabi

Ao meu pai e à minha mãe. Com amor,

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- Certa vez, a Mãe-Gavião mandou a filha ir buscar comida. Ela foi e trouxe um patinho. “Você se saiu muito bem”, disse a Mãe-Gavião à filha, “mas eu gostaria de saber uma coisa: o que foi que a mãe desse patinho disse, quando você arremeteu sobre o filho dela e o levou para longe?” “Não disse nada”, replicou a jovem gavioa. “Simplesmente se afastou dali.” “Então, você vai já devolver o patinho”, falou a Mãe-Gavião, “pois há algo de agourento detrás do silêncio”. A gavioa obedeceu e voltou novamente, dessa vez trazendo um pintinho. “Qual foi a reação da mãe desse pintinho?”, perguntou a Velha-Gavião. “Ela gritou e berrou como uma doida, rogando-me pragas”, respondeu a gavioa mais moça. “Nesse caso, podemos comer o pintinho”, falou a mãe. “Não há nada a temer dos que gritam.”

Chinua ACHEBE, O mundo se despedaça Há tantos diálogos Diálogo com o ser amado o semelhante o diferente o indiferente o oposto o adversário o surdo-mudo o possesso o irracional o vegetal o mineral o inominado Diálogo consigo mesmo com a noite os astros os mortos as ideias o sonho o passado o mais que futuro Escolhe teu diálogo e tua melhor palavra ou teu melhor silêncio. Mesmo no silêncio e com o silêncio dialogamos. Carlos DRUMMOND DE ANDRADE (O constante diálogo. Discurso da Primavera)

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O objeto

“Isso tudo não está tão mal”, disse Montaigne ao fazer um relato considerado elogioso aos tupinambás.

Lá pelas tantas, o filósofo desabafa: “Mas eles não usam calças!”1.

Quase cinco séculos depois a desigualdade entre os homens, característica fundamental das sociedades históricas2, ainda reverbera, afetando formas atuais de sociabilidade. Discutimos as “calças”, em uma conjuntura em que ela desliza para “peles”: aquele nós-usamos-calças-e-eles-não toma a forma de eles-têm-pele-escura-e-nós-não. Processos de subjetivação constituem identidades nessa relação entre um nós e um eles, tensionadas entre o mesmo e o diferente.

Como essa relação funciona no processo de constituição de subjetividades? Em linhas gerais, é disso que trataremos aqui. De modo mais pontual, investigamos a relação entre processos identitários que movimentam sentidos para o sujeito denominado como “negro” (e também para a própria Nação, conforme percebemos durante o desenvolvimento desta tese) envolvidos na discussão escravidão / liberdade. Investigamos processos de subjetivação por silenciamento, em que sujeitos são despidos de sua historicidade e visibilizados em cor de pele.

1 Os canibais (1578).

2 L

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24 *******

A preocupação com o lugar que o “negro” ocupa na sociedade brasileira não é recente: “um bando de ideias novas”3 convocaram a intelectualidade brasileira a discutir a questão da identidade nacional em finais do século XIX. Norteados por ideais de civilidade europeia, pensadores brasileiros se enveredaram pelas páginas das obras de Gobineau, Lapouge, Buckle etc para delas revigorar teses que mobilizavam o conceito de “raça” para dizer o “negro” e, ao mesmo tempo, formular projetos de Nação.

A classificação e hierarquização dos homens tinha bases “científicas” nas teorias positivistas, raciológicas e deterministas que “explicavam” a diferença, transpondo da biologia o conceito de evolução natural para a vida social. O preto representa o perigo biológico, disse Fanon com desgosto4. Enquanto isso, “estrangeiros idôneos” relatavam um tratamento considerado benigno aos escravizados no Brasil5, Louis Couty6 escrevia cartas ao senador francês Shoelder afirmando a “ausência de preconceito racial” no país7; paulatinamente o brasil-madeira entalhado em nome do colonizador desliza para Brasil-Nação, num processo regido por caracteres que

3 Esta expressão foi utilizada por Roméro (1926) Explicações Indispensaveis. Prefácio aos Vários Escritos de Tobias Barreto de Menezes. Obras Completas. Sergipe, t. X, p. XXVI.

4 2008: 143.

5 “Estrangeiros idôneos” é o termo mobilizado por Gilberto Freyre, ao afirmar que houve no Brasil colonial “um tipo de convivência senhor-escravo (...) de modo geral – admitidas exceções de modo algum desprezíveis – relativamente benigna” e cita depoimentos para embasar suas afirmações: “do francês Frezier ao inglês Lindley; do sábio Burton à cosmopolita Ida Pfeiffer; do norte-americano Comandante da U.S.N. Wilkes ao francês Tollenare” (FREYRE, 1979: 94-5).

6 Médico francês abolicionista com grande reputação, que veio ao Brasil em 1874 para compor o quadro docente da Escola Politécnica; em 1878, lecionou no Museu do Rio de Janeiro (COSTA, 2002: 82)

7 Para ilustrar, citamos um trecho de uma daquelas correspondências: “No Brasil, não somente o preconceito de raça não existe e as uniões frequentes entre cores diferentes têm formado uma população mestiça numerosa e importante, mas os negros livres e mestiços estão inteiramente misturados à população branca; eles têm com ela relações íntimas e diárias e lutam pela vida nas mesmas condições (COUTY, 1881 apud COSTA, 2002: 81).

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imprimem caráteres: seu modo considerado peculiar de tratar a diferença, de lidar com formas de sociabilidade afetadas por questões raciais, afetou (determinou?) sua inscrição no mundo em B maiúsculo8, subjetivando indivíduos e o próprio país.

Estes discursos circulam e produzem efeitos de discriminação (segregação?), em movimentos de dizer-e-des-dizer: da “ciência” raciológica do século XIX ao repúdio a atitudes consideradas racistas, o(s) conceito(s) de raça persiste(m) e funciona(m) nem sempre de modo evidente. É(são) (re)produzido(s) em discursos que se inscrevem num continuum estabelecido entre a ordem natural e a ordem social, e a analogia entre essas duas ordens é utilizada para justificar a desigualdade entre os homens, partindo de uma determinada interpretação das leis evolucionistas e da seleção natural9.

Embora esta pesquisa trabalhe com um objeto específico (o imaginário constituído em relação ao “negro” no conjunto da sociedade nacional), ele contempla uma questão bem mais ampla: atravessa/é atravessado por processos mundiais de sociabilização: notemos que palavras como igualdade, diferença, culturas e minorias sempre marcam presença em discursos que envolvem a chamada mundialização, sustentando discussões que colocam em jogo relações como local x mundial, o que pertence x o que não pertence, o do lugar x o de fora, etc10. Requentam o velho binômio natureza x cultura – que Lévi-Strauss aponta como uma das oposições centrais do pensamento

8 Desenvolveremos adiante este ponto: o “negro” foi tema de pesquisas que inscreveram o Brasil no mundo intelectual. Há uma relação indissociável entre “negro” x constituição das Ciências Sociais no Brasil (x Nação). 9 R

ODRÍGUEZ, 2001: 44

10 Tomamos algumas considerações elaboradas por Eni O

RLANDI, no trabalho Ser diferente é ser diferente. A

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humano – em um processo em que cultura funciona apagando o político; a expensas da ideologia, cultura funciona em uma concepção psicologista do sujeito.

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O problema

Em 2001, uma participante de um reality show chocou o país ao afirmar:

Eu não gostaria que a minha filha namorasse um negro... Eu vou ser sincera: eu não gostaria que ela, com 20 anos, namorasse um negro.

(Deputados repudiam declaração de participante de “No Limite". O Estado de S.Paulo, 20/11/2001)

Ao ocupar uma posição que assume o desejo de distanciamento do “negro”, evidenciou uma postura racista. No entanto, conferimos artigos de jornal publicados pelo mesmo periódico (O Estado de S. Paulo) e por outra mídia impressa nacional representativa (Folha de S.Paulo) durante o período de 2001 a 2009, por se tratar de um momento histórico de intensas discussões sobre desigualdades raciais x desigualdades sociais. Este foi o único enunciado que manifestou claramente esta posição. Ousamos dizer, pois: o racismo que tem uma cara, um gesto, uma forma de ser identificado não é o único que existe, nem o predominante. Questionamos, pois, esse “racismo” sempre enunciado no singular: ele subsiste num formato único, reconhecível? Pensamos que não. Embora seja uma questão que pretendemos investigar em estudos futuros, apontamos que, em nossa opinião, não há o racismo, mas os racismos. E, no mais das vezes, sustentam dizeres envolvidos em invólucros isoladores dos fios condutores de significações em que o critério “raça” funciona de maneira não-evidente, classificando, hierarquizando e produzindo seus efeitos.

Também chamamos a atenção para o título deste artigo que tanto suscitou polêmica: “Deputados repudiam declaração de participante de ‘No Limite’". O que nos faz

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retornar ao que acabamos de expor, para dele fazer dizer isso que mora no recalque: certamente foi infeliz a postura manifestada pela referida participante, em se tratando de sua inscrição em um determinado país, num determinado momento, em determinadas condições11; mas destacamos um ponto que no mais das vezes passa desapercebido, diluído pelo efeito de naturalização: o objeto de “repúdio”. Notemos que os deputados não repudiam o desejo de distanciamento do “negro”, mas a declaração. É como se eles dissessem, em outros termos, que “é proibido falar que há discriminação racial no Brasil”.

Dizer especialmente comprometedor ao considerarmos a posição em que se inscrevem: o espaço enunciativo dos deputados é justamente o espaço em que jogam o político e o institucional. Ousamos, pois, afirmar que a referida participante só manifestou algo que já está aí; a reação dos deputados, ao negar o ato dela, sugere uma posição (institucional) que se manifesta não coibindo práticas racistas, mas objetando enunciações que evidenciem sua existência. Ou: há um espaço enunciativo em que o(s) racismo(s) se instala(m); ao falar a partir de uma posição que é institucional, não é questionada sua inscrição neste espaço (mecanismos, processos, funcionamentos... como isso se deu?), tampouco formas de lidar com o problema (o que foi/ deve ser feito nas esferas governamentais? O que os deputados teriam a dizer em relação àquilo que lhes compete?), mas dizeres que o evidenciam (ainda mais em rede nacional – e em um programa sugestivamente chamado “No Limite”, em que justamente este limite é transposto).

11 É a memória convocada para significar este enunciado que o inscreve numa posição racista: se ela tivesse dito “não gostaria que minha filha namorasse um ruivo / surfista / inglês ..,” os efeitos de sentido seriam bem diferentes.

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Vivemos, pois, em um país que ainda se debate para lidar com questões que envolvem preconceitos e discriminações, às voltas com prejuízos contra o “negro” – seja recusando, apontando, criticando... segue o racismo, contraditório monstro-que-morreu-e-ainda-vive.

Um dos objetos de estudos frequentemente convocado com vistas à compreensão da formação social brasileira é a escravidão. Houve “no Brasil escravocrático uma benignidade, da parte de senhores talvez mais caracteristicamente brasileiros que os cruéis, para com seus negros”12, afirma Gilberto Freyre em sua tese; dentre outros, Oliveira Vianna e Francisco Adolfo de Varnhagem também empenharam seus trabalhos na relação entre senhores benevolentes x escravos submissos. Clóvis Moura, Décio Freitas, Alípio Goulart são alguns dos primeiros pesquisadores que abordam a crueldade da escravidão. No trânsito entre a condição de escravo à de

liberto, a discussão também se abre em veios polarizados: de um lado, trabalhos como

os de Octavio Ianni consideram que o escravo “não dispunha de elementos para organizar uma crítica política de sua alienação e possibilidades de luta”13; Sidney Chalhoub vai no sentido oposto, afirmando que “os escravos (...) contribuíram para a desconstrução de significados sociais essenciais à continuidade de escravidão”14.

Os sentidos da escravidão e da liberdade (que, por sinal, são enunciadas no singular e não no plural) não são questionados. Estas palavras funcionam como unidades

12 F REYRE, 1979: XII. 13 IANNI, 1988: 53. 14 C HALHOUB, 1998: 235.

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cristalizadas, separadas; ao dizer de uma, assume-se a outra como o oposto. Com isto, ao se discutir o lugar ocupado pelo “negro”, é silenciada uma distinção fundamental para o político: a) o que é preciso calar (esquecer) para que apareça o novo; b) o que é calado para impedir o novo sentido15. Pensá-las em domínios (supostamente) opostos implica, por exemplo, em pressupor que (a) a configuração das relações histórico-sociais que sustentam o poder de chamar de escravo seria uma, e a que sustenta o poder de chamar de liberto seria outra, e (b) a história dos sentidos seria exterior e independente, palco em que sujeitos autônomos e conscientes se moveriam em práticas e teorias.

A uma (suposta) realidade já nomeada, articulam-se asserções formuladas para dizer das duas posições que são discutidas (escravo e liberto). Os nomes que representam essas posições, porém, funcionam como pré-construído, naturalizando uma relação palavra-coisa.

Há um ferimento sem nome, diz Derrida, o de ter recebido um nome16. Assumimos uma perspectiva em que os gestos de nomear são regidos por determinadas relações de poder (afinal: quem tem o poder de nomear?), e vão agenciando posições enunciativas, classificando e instaurando espaços de enunciação – e quem os pode ocupar. Além de classificar, um nome identifica17. É, portanto, atravessado pela historicidade: atribuir um nome é dizer a partir de um lugar,

15 O RLANDI, 2013: 55. 16 DERRIDA, 2011: 41. 17 Cf. R ANCIÈRE, 1994a.

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fazendo circular já-ditos e silenciando outras discursividades – e, ao mesmo tempo, é instaurar um lugar àquilo que se denomina.

Isso posto, perguntamos: ao deixar de atender pelo nome escravo e passar a ser chamado de liberto, o “negro” ocupa um novo (ou outro) lugar? Entre uma posição e outra, que sentidos deslizam? O que é preciso esquecer (silenciar / apagar) para que novos (ou outros) sentidos irrompam? São novos (ou outros)?

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Como trataremos a questão

Brasil colonial. Há navios ancorando em portos, vomitando gentes em suas diferenças indigestas. Atentamos para uma coincidência histórica: (i) as condições de produção e (ii) a cor materializavam, ao mesmo tempo, distinções evidentes. Havia pessoas (i.1) revestidas do poder de chamar de “seu” o país, as vestes, os alimentos; todas as condições (materiais) de produção / (i.2) que sobreviveram a uma travessia marítima pela qual passaram destituídas de todas essas condições e (ii.1) brancas / (ii.2) pretas.

E a diferença baseada na cor “colou”.

O que há são versões, diz Eni Orlandi na epígrafe de seu livro Discurso e

Texto; por entre réplicas, desdobramentos e (dis)sensos, a injunção à interpretação se

movimenta em um jogo entre versões de possíveis que vão agenciando posições. Se no real as condições (materiais) de produção determinam sentidos produzidos, no simbólico a cor é frequentemente tomada como mestre-guia na constituição de identidades. Não é “à toa” que trabalhos como Retrato em Branco e Negro (Lilia Schwarcz), Onda Negra, Medo Branco (Célia Marinho Azevedo), Preto no Branco (Thomas Skidmore), Brasil em Preto & Branco (Jacob Gorender) – só para mencionar alguns – estampamem suas capas títulos ilustrativos desse imaginário que divide os sujeitos em categorias dicotomicamente cromatizadas.

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Muito se diz, muito se perscruta; muito se discute em relação às consequências do entrelaçamento de questões raciais (que tomam a cor da pele como indicador18) com questões identitárias.

Entrementes... Como foi materializada na pele retinta a representação de determinados imaginários socialmente constituídos?

Pergunta elidida a expensas do efeito de naturalidade produzido: o “negro” funciona como algo que “todos-já-sabem” e, ao mesmo tempo silenciam. Faz soar um ponto nevrálgico, uma memória que se tenta apagar. A nosso ver, é justamente por silenciar a pergunta (e, ao mesmo tempo, evitar dizer “negro”) que o racismo “vai bem, obrigado!” na perversa acepção da expressão: o abate deste debate produz um recalque que vai habitar os recônditos do inconsciente e, pois, manifestar-se em posturas que no mais das vezes não são percebidas como racistas – inclusive nas que vão se materializar nas estantes de livrarias e bibliotecas como resultado de determinado fazer intelectual.

Traçamos um percurso um tanto incomum: partimos das Ciências Sociais (e áreas que lhes são adjacentes, como a Filosofia e a História) e levamos determinadas questões para a Análise de Discurso, em filiação a trabalhos como os de Pêcheux, Orlandi e outros pesquisadores. Identificamos algumas questões imperdoáveis que o escopo teórico-metodológico daquela área de saber não contempla, e as inscrevemos na perspectiva discursiva que habitamos.

18 Concordamos com PINCERATI (2008: 233): o conceito de “raça” persiste no Brasil como um discurso, qual seja, o de que há “raças”, e seu indicador é a cor da pele.

(35)

35 Por que...

.... Ciências Sociais?

Identificamos uma relação entre “NEGRO” x ...

... CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRA(Z)SIL

... INSCRIÇÃO DO PAÍS NO “MUNDO INTELECTUAL”

... DIÁLOGOS ENTRE UM PAÍS E O MUNDO

A própria CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRA(Z)SIL se deu a partir

da centralidade de questões relacionadas à nação e à identidade nacional19. Questões estas movidas por imaginários (re)produzidos em relação ao “negro”. Pode-se exagerar a ênfaPode-se nesta colocação, mas é impossível negá-la20. Nenhuma questão movimentou mais o século XIX do que esta, atiçando DIÁLOGOS ENTRE UM PAÍS E O MUNDO. Por entre o “Brazil” fragmentado em províncias, multifacetado em realidades

distintas, transitaram as ideias de Joaquim Nabuco (pernambucano), Francisco Adolfo Varnhagem (paulista), Nina Rodrigues (maranhense), Euclydes da Cunha (carioca), Tobias Barreto (sergipano), Sylvio Roméro (sergipano) dentre outros. Nesse / para esse trânsito, instituições foram constituídas: imprensa, universidades, bibliotecas, institutos etc.; Escola Baiana, Escola do Recife, Escola Paulista, Academia

19 ORTIZ, 1994: 13

20 Neste sentido, é bastante significativo o dizer de Skidmore: “Quando comecei este livro [Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro], intencionava compor uma série de retratos de intelectuais brasileiros, todos eles, aliás, representativos dos anos que medeiam as décadas de 1870 a 1930. Vi logo para espanto meu, que embarcava num exame das principais correntes intelectuais da época. E, só aos poucos, compreendi que marchava para uma análise minuciosa do pensamento racial brasileiro” (1976: 11).

Essa associação entre pensamento intelectual x pensamento racial já diz de uma posição na qual o Brasil fala/ é falado. Retomaremos este ponto adiante.

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36

Brasileira de Letras, Instituto Histórico e Geográfico, Biblioteca Nacional etc. Deglutindo e retornando letras, o país (ou parte dele, embora sob efeito de unidade) dialogou entre si e com o mundo (ou parte dele, embora sob efeito de totalidade). Imaginários constituídos nacional e internacionalmente em relação ao Brasil têm no “negro” um forte ponto de sustentação: constituiu um “passaporte” para INSCRIÇÃO DO PAÍS NO “MUNDO INTELECTUAL” e mesmo para a constituição da Nação, com sua

identidade, instituições e símbolos nacionais. .... Análise de Discurso?

A análise de conteúdo se assenta em “evidências” que, ao passarem incólumes pelas discussões, por vezes acabam reproduzindo mesmo aquilo que se pretende criticar. Investigamos a concretização da relação entre língua x sujeito x história materializada linguisticamente, buscando compreender funcionamentos discursivos de determinadas representações21, que se (re)significam num processo incessante da história dos sentidos.

Na primeira parte, em 1. Um objeto de estudos tradicionalmente

abordado por cientistas sociais, retomamos trabalhos inscritos no domínio da

memória (como os de Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues e Sylvio Roméro, dentre outros) e da atualidade (Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg e outros). O objetivo aqui é o de adentrar por entre expoentes nacionais para mostrar o

21 “Dentre aquilo que os afeta, existem algumas expressões que possuem a propriedade de ser automaticamente relacionadas/ relacionáveis aos objetos e aos sujeitos do mundo exterior, não simplesmente como causas, mas como algo que pode eventualmente valer em seu lugar. São as representações” (AUROUX, 2008: 125, grifos nossos).

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37

modo como o problema foi abordado em diferentes perspectivas teóricas inscritas no mesmo campo de saber. Recortamos autores cujos trabalhos foram historicizados como obras de referência, e deles destacamos pontos representativos. Em 2.

Desnaturalizando “evidências” humanas, questionamos concepções nas quais o

fazer teórico materializado (não só, mas também) nas Ciências Sociais se assentam: sujeito (2.1. Barão de Münchhausen, pântano e problema...), linguagem (2.2. Os negros não foram colonizados porque são negros) e mundo (2.3. O que faz (d)o brasil, (o) Brasil?). Embora indissociáveis, tratamos uma a uma de modo a expor

questões que apagam e o modo como funcionam. Seguindo em interlocução com a perspectiva que tradicionalmente vem se ocupando do problema que abordamos (ou constituindo?), trabalhamos (i) as noções que constituem nosso dispositivo teórico-analítico, dentre as quais, formação discursiva, formação ideológica, pré-construído, memória e acontecimento e (ii) questões que vão reger nossas análises: por que determinados sentidos (e não outros também possíveis)? Quem diz? Quem tem o poder de responder em seu nome? O que faz (d)o brasil, (o) Brasil?

Na segunda parte procuramos fazer alguns deslocamentos, o que nos conduz às / nas trilhas de dizer que incursionamos: recusamos a correlação “automática” entre sujeito e instituições sociais (o que apaga processos históricos de constituição, formulação e circulação de discursos), mostramos como nosso material de análise foi constituído e explicamos porque jornais e dicionários são um lugar significativo para tratar as questões propostas e delineamos nosso trajeto

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histórico-38

discursivo: o suporte material em que discursos são textualizados, documentos disponíveis (?) e modos de construir (ler) o arquivo e sentidos produzidos.

Em O novo lugar do “negro” no conjunto da sociedade nacional inauguramos efetivamente um espaço de escuta, investigando questões que afetam espaços de enunciação que constituem, formulam e colocam em circulação discursos do / sobre o “negro”.

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39

O lugar da Análise do Discurso

Com tantos estudos voltados para a escolha entre um frasco e outro de poção transformadora de “tamanho ideal” para dizer da

entrada de “Alice” no “país das maravilhas”...

... por que este?

De que modo pensar a constituição de “Alice”?

Ao discutir o

frasco “correto”,

o que fica do lado de fora

da discussão?

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41

1. Um objeto de estudos tradicionalmente abordado por cientistas sociais

Instituição das mais antigas, a escravidão assume historicamente diferentes formas. No “Brazil”, foi (re)significada nesta terra avistada por colonizadores, afetando processos identitários que produzem significações para um país e seus sujeitos.

Poderíamos abarrotar estantes com obras em cujos títulos a palavra “escravidão” marca presença, em recorrentes tentativas de compreender a formação histórica brasileira. Mas isso já é resultado de um longo processo constituído historicamente: se tomarmos, por exemplo, A História Geral do Brazil (1854-1857, Madrid: Imprensa da V. de Dominguez, 1220 páginas, 2 volumes) do paulista Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), o “Heródoto brasileiro”22, pouca ênfase lhe foi dada. Aparece mais discretamente por entre as poucas páginas do extenso livro em dois volumes.

Joaquim Nabuco (1849-1910) poderia ter ocupado um espaço nesta estante com seu A escravidão23, mas apostou efetivamente em outro feito: O

abolicionismo (1883, Londres: Typographia de Abraham Kingdon e Ca., 256 páginas).

22 É o que argumenta José Carlos Reis: "Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) é considerado o Heródoto brasileiro, portanto o fundador da história do Brasil, mesmo se, antes dele, entre outros, Pero de Magalhães Gândavo, Frei Vicente do Salvador, Sebastião da Rocha Pita, Robert Southey também escreveram, respectivamente, História da Província de Santa Cruz (1576), História do Brasil (1627), História da América

portuguesa (1730), História do Brasil (1810). Southey disputa com Varnhagen, sem nunca ter estado no Brasil,

aquele título historiográfico. (...) [Mas] Foi somente nos anos de 1850, com Varnhagen, que surgiu a obra de história do Brasil independente mais completa, confiável, documentada e crítica, com posições explícitas: a História geral

do Brasil, que superou as obras mencionadas anteriormente sem, no entanto, torná-las descartáveis" (REIS, J. C. (2006) As identidades do Brasil: de Varnhagem a FCH. Rio de Janeiro: Editora FGV, 8ª. Edição, p.23). 23 O manuscrito ficou inconcluso. Foi publicado postumamente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro, v. 204, p. 3-106, jul./set. 1949), depois de ter sido doado pela viúva D. Evelina Nabuco. Na primeira página, constaria a seguinte nota: "Este manuscripto foi escrito por mim em 1870 quando estudante do 5º anno, no Recife; morava eu então com o Dr. Santos Mello e o Barros Pimentel fazia bolsa comnosco" (PORTAL JOAQUIM NABUCO/ ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Artigos em periódicos. Disponível em http://www.joaquimnabuco.org.br/abl_minisites/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=joaquimnabuco&si

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É com a palavra “abolicionismo” (na época, ausente nos dicionários24) estampada na lombada de um livro que, além de espaço em prateleira, ocupa um espaço histórico significativo: a obra é considerada por estudiosos25 como marco dos trabalhos com vistas à relação entre escravidão e sociedade brasileira.

O político pernambucano que se junta mais de dois séculos depois aos “Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”26inscreve o país no cenário internacional em posição diferente da que até então ocupava. O “Brazil” era objeto de discussões em países “civilizados” (ou: centros econômicos e políticos; ou Inglaterra e Paris principalmente) que moviam teorias e práticas que o afetavam. Se é bem verdade que o posicionamento de Nabuco potencializa o poder de dizer daqueles países, também o é o fato de que abriu espaço para uma voz nacional (ainda que lhe pesem críticas27) nos debates da época (entretanto, como discutiremos, essa “voz nacional” se esforça em calar a de sujeitos nomeados como escravos28). Pensamos que quando, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso parte de Nabuco para dizer de Pensadores que

inventaram o Brasil (2013), motivos razoáveis sustentam essa escolha29.

24 Consideramos o dicionário como um instrumento linguístico. Ver 2.2. Discurso Lexicográfico: dominando

uma história.

25 Como o historiador e escritor carioca Evaldo Cabral de Mello. 26 Coleção organizada pela Folha de S. Paulo.

27 Atendo-nos, por ora, ao quadro teórico das Ciências Humanas e Sociais, mencionamos o artigo de Célia Marinho de Azevedo (2004) como um dos (poucos) trabalhos atuais que se propõem a “descanonizar” o ideário de Nabuco, apontando preconceitos a que ele estava sujeito.

28 Em Terra à Vista! (1990: 68), Orlandi mostra que no discurso da conversão, a voz do índio é dominada pela do branco; ou, dito de outra maneira, há uma simulação pela qual o branco fala de si e para os seus como se fosse o índio. E essa simulação não faz do índio um seu representante – ao contrário, o anula.

No discurso abolicionista, o branco não fala de si e para os seus como se fosse o negro – é justamente se distanciando dele que a voz do branco ressoa –, porém se coloca como representante “legítimo” dos interesses que seriam do negro, e que ele não seria capaz de sustentar. A voz do negro é anulada: o “representante” ocupa uma posição de sujeito, fazendo do “negro” objeto de discurso – o negro não fala, é falado.

29 Ainda que, ressalte-se, não nos alinhemos com a perspectiva do sociólogo, assentimos com o lugar conferido a Nabuco neste trabalho.

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Filho do senador José Thomaz Nabuco da Araújo – um dos poucos políticos de sua época que se opunham à escravidão –, o então diplomata pernambucano batizado como Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo publicou o livro em Londres, investindo nos 17 capítulos uma forma de intervenção política: impresso em português em gráfica inglesa, materializa pensamentos alinhados à corrente abolicionista internacional liberal, moderada e pragmática30. Atribui à escravidão a degradação do Brasil:

O que esse regimen representa, já o sabemos: moralmente, é a destruição de todos os principios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva—a familia, propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitaria ; politicamente, é o servilismo, a degradação do povo, a doença do funccionalismo, o enfraquecimento do amor da patria, a divisão do interior em feudos, cada um com o seu regimen penal, o seu systema de provas, a sua inviolabilidade perante a policia e a justiça; economicamente, e socialmente, é o bem-estar transitorio de uma classe unica, e essa decadente e sempre renovada ; a eliminação do capital produzido, pela compra de escravos; a paralyzação de cada energia individual para o trabalho na população nacional; o fechamento dos nossos portos aos immigrantes que buscam a America do Sul; a importancia social do dinheiro seja como fôr adquirido ; o desprezo por todos os que por escrupulos se inutilizam ou atrazam n'uma lucta de ambições materiaes; a venda dos titulos de nobreza; a desmoralização da auctoridade desde a mais alta até á mais baixa; a impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o paiz para melhores destinos, porque o povo não sustenta os que o defendem, não é leal aos que se sacrificam por elle, e o paiz, no meio de todo esse rebaixamento do caracter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura elevar-se honestamente, está como se disse dos Estados do Sul "apaixonado pela sua propria vergonha"31.

Notemos que as instituições sociais ocidentais são naturalizadas, ou seja, apaga-se a possibilidade de existirem outras (ou novas) formas de organização social: ao apaga-se colocar

30 “...que [como afirma A

ZEVEDO (2004: 94)] havia se imposto vitoriosamente na Conferência contra a Escravidão, realizada em Paris em 1867. Nesta Conferência, abolicionistas de diversos países deram-se as mãos para derrotar a corrente abolicionista francesa, de teor anarquista, que insistia em cobrar medidas radicais contra o Brasil escravocrata. Uma vez silenciadas as vozes abolicionistas radicais que denunciavam a violência dos senhores brasileiros contra os seus escravos, ganhou força o discurso abolicionista internacional que firmava o Brasil como um paraíso racial, onde a escravidão seria praticada sem a violência observada antes no Sul escravista dos Estados Unidos. Além disso, o Brasil primaria pela ausência de preconceitos de cor contra os africanos e seus descendentes, os quais se integravam facilmente à sociedade uma vez emancipados”.

31 N

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em contrário à escravidão mostrando “o que esse regimen representa”, é discorrendo sobre o

impacto que ela causaria em instituições sociais já-sabidas-e-legitimadas (família, religião, comércio, polícia, justiça, economia etc) que a recusa é constituída.

Com isto, conclui que “a escravidão é a causa principal de todos os nossos vicios, defeitos, perigos e fraquezas nacionais”32. Investe esforços para combatê-la, tentando deslocar as questões do discurso religioso para o discurso jurídico; é dentro da “lei” que se posiciona: “a emancipação ha de ser feita entre nós por uma lei que tenha os requisitos externos e internos de todas as outras”33 – e esse “nós” exclui os escravos, que só participam instalados como objeto de discussão:

A propaganda abolicionista com effeito não se dirige aos escravos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, alem d'isso, um suicidio politico para o partido abolicionista, incitar á insurreição ou ao crime homens sem defesa, e que ou a lei de Lynch ou a justiça publica immediatamente havia de esmagar34.

Para construir seu percurso argumentativo, são recorrentemente delineadas, retomadas e reforçadas as noções de abolicionismo35 e escravidão36 (e chega a tocar, ainda que rápida e superficialmente, no caráter plural da palavra “escravidão”37 – que, no mais das vezes, é enunciada como se existisse de modo único); já à noção de “raça”, a despeito de sua frequente mobilização e da força

32 NABUCO, 1883: 246.

33 NABUCO, 1883: 26. 34 N

ABUCO, 1883: 25.

35 Aparece nos capítulos: 1. Que é o abolicionismo? A obra do presente e a do futuro (p.37; 38-9); 2. O partido abolicionista (p.43); 3. O mandado da raça negra (p.47); 4. O caráter do movimento abolicionista (p.55); 5. “A causa já vencida” (p.59); 11. Fundamentos gerais do abolicionismo (p.108).

36 Aparece nos capítulos: 1. Que é o abolicionismo? A obra do presente e a do futuro (p.39); 4. O caráter do movimento abolicionista (nota 1, p.205-207); 5. “A causa já vencida” (p.59); 9. O tráfico de africanos (p.90); 11. Fundamentos gerais do abolicionismo (p.107); 12. A escravidão atual (p.116; 120-2); 15. Influências sociais e políticas da escravidão (p.152); 17. Receios e consequências – Conclusão (p.201).

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argumentativa nela investida, não lhe devota rigores conceituais. Tal qual Gobineau em seu Essai sur l’inégalité des races humaines (1855), assenta seu trabalho sobre a divisão racial dos homens mas... exime-se da definição do conceito. “Raça” é tomada como uma evidência inquestionável e, pois, de definição dispensável: funciona como pré-construído, ou seja, aquilo que se considera que todos sabem (ou deveriam saber). Por essa trilha naturalizada da noção de “raça” percorrem teóricos que nelas instalam trabalhos considerados como clássicos.

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A História geral do Brazil do paulista Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) antecede O abolicionismo em três décadas e ambos compartilham de imaginários produzidos em relação ao “negro”. Interessante notar, porém, que historicamente o peso atribuído ao caráter favorável aos “negros” é maior em Nabuco, quando a incursão nas páginas destes trabalhos mostra um olhar mais pessimista do que o alcançado por Varnhagen: enquanto este, por exemplo, diz também de contribuições africanas, aquele lhes atribui apenas prejuízos:

VARNHAGEN: Da Africa não recebemos só colonos africanos captivos. Ao trato de nossos navios em alguns de seus portos devemos acaso o monjôlo, pilão que usava talvez a nação monjôla. Ao mesmo trato devemos tambem a introdução de algumas plantas, como dos quingombós, quiabos e maxixes, do feijão preto, do capim de Angola, dos guandús e da malagueta, bem como de algumas comidas e quitutes conhecidos com nomes africanos, sobretudo na Bahia. A bebida do aloá pode ser introducção da Ásia, mas alguns a teem por africana. São também d'Africa as palavras quitanda, quenga, senzala, coco, macaco, papagaio, e outras muitas admittidas até na Europa38.

38 1854: 184-5.

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NABUCO: O principal effeito da escravidão sobre a nossa população foi assim africanizal-a, satural-a de sangue preto (...). Chamada para a escravidão, a raça negra, só pelo facto de viver e propagar-se, foi-se tornando um elemento cada vez mais consideravel da população (...). Foi essa a primeira vingança das victimas39.

Muitas das influencias da escravidão podem ser attribuidas á raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrazado, aos seus instinctos barbaros ainda, ás suas superstições grosseiras. A fusão do Catholicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionarios, com a feitiçaria Africana,—influencia activa e extensa nas camadas inferiores, intellectualmente falando, da nossa população, e que pela ama de leite, pelos contactos da escravidão domestica, chegou até aos mais notaveis dos nossos homens ; a acção de doenças Africanas sobre a constituição physica de parte do nosso povo ; a corrupção da lingua, das maneiras sociaes, da educação e outros tantos effeitos resultantes do cruzamento com uma raça n'um período mais atrazado de desenvolvimento; podem ser considerados isoladamente do captiveiro40.

Teria Varnhagen tido mais liberdade de falar sobre aportes africanos por ter instalado a palavra “escravidão” mais discretamente? O efeito da palavra “abolicionismo” encheria os olhos e silenciaria a escuta? Apontamos estas questões para destacar que a recusa à escravidão que ressoa nacional e internacionalmente de forma mais marcante se assenta, em síntese, em um tripé: atribuição ao “Africano”41 de aspectos que se converteriam em mazelas ao país (associado ao apagamento de contribuições), naturalização das instituições sociais ocidentais42 e deslocamento do discurso religioso para o discurso jurídico43. É assim que, tentando conciliar o passado e o presente, o projeto de nação pensado por um dos “heróis da abolição” instala esta escravidão no centro das atenções: como manifestou na conhecida (porém menos sobressalente) Minha

39 1883: 136-7.

40 1883: 144.

41 Na versão original dos livros, “Africano” aparece iniciada com maiúscula ao se referir aos sujeitos nomeados como tal. As edições recentes alteraram essa grafia imprimindo todos os caracteres em minúsculas. Tal procedimento não é questionado, no escopo teórico-metodológico das Ciências Humanas e Sociais trata-se apenas de mero detalhe, sem importância. Em nossa perspectiva, que é discursiva, esta “simples” alteração da letra é significativa. Falaremos disso adiante.

42 Na terceira parte (Escravidão / liberdade: o (E)estado da questão) desenvolvemos esta questão (ver principalmente págs. 93-5).

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formação (1900, Rio de Janeiro; Paris: H. Garnier Livreiro Editor, 311 páginas), assumia que

“a grande questão para a democracia brasileira, não é a monarchia, é a escravidão”44. *******

No período que chamaríamos de D.S. (Depois da Senzala), o “logar para o Africano em nossa historia”45 agita a agenda de debates sociais: a “mestiçagem” é o objeto de estudos que adquire centralidade nas décadas subsequentes46. Embalada por teóricos poligenistas (Louis Agassiz), darwinistas sociais (que acabou sendo incorporada pelos poligenistas, não obstante o monogenismo que sustentava a concepção darwinista) e da “escola histórica” (Joseph Arthur de Gobineau), teorias racialistas nacionais entram em cena para apresentar os personagens do enredo luso-tropical, movendo-se por entre projetos de Nação. Ideais positivistas estampados na bandeira nacional são movidos por esses ventos.

Em um país de população predominantemente “bronzeada” – seja pela melanina, pelo sol e/ou pelo contato sexual de peles contrastantes – o racismo cientificizado se manteve na esteira das teorizações identitárias formuladas no século XIX. Partindo da divisão da humanidade em raças, as perguntas giravam em torno de: estariam “prontas” ou sujeitas a um processo evolutivo? Em havendo a possibilidade de evolução, em que direção isso se daria?

44 N

ABUCO, 1900: 205. 45 ROMÉRO, 1888a: 101.

46 Mostramos adiante que é só a partir da década de 50 que a discussão sobre a escravidão volta a ganhar espaço e é direcionada para rumos até então interditados (ver primeira parte, 1. Um objeto de estudos tradicionalmente

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Havia uma (tentativa de) releitura das teorias explicativas disponíveis: a produção nacional não era simples “cópia”, mas tentativas de formulações “autênticas”. A questão é: esmiuçavam adjetivos, deixando incólumes os substantivos. Em outros termos: falam do mesmo lugar (que é o do eurocêntrico), mesmo que para criticá-lo; não há deslocamento.

O maranhense Nina Rodrigues (1862-1906), fundador da Escola Científica (ou Escola Baiana, ou Escola de Nina Rodrigues), o sergipano Sylvio Roméro (1851-1914), formado em direito na Universidade Federal de Pernambuco47 e membro fundador (com Machado de Assis e outros) da Academia Brasileira de Letras, e o carioca Euclydes da Cunha (1866-1909), celebrizado por seu Os Sertões, que lhe rendeu fama internacional e lugares na ABL e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro48, são apontados por Renato Ortiz como “teóricos que são considerados, e com razão, os precursores das Ciências Sociais no Brasil”. Segundo o sociólogo, eles teriam constituído um “paradigma” de estudos que “adquire com Arthur Ramos a configuração definitiva de ciência da cultura”49.

Não vamos discutir se lhes cabe o lugar de “precursores das Ciências Sociais no Brasil”. Nosso ponto é: esse recorte deixa do lado de fora da historiografia uma

47 Sylvio Vasconcelos da Silveira Ramos Roméro se destacou como crítico e historiador; ocupou-se, porém, de diversas atividades: ensaísta, poeta, jornalista, político, intelectual e professor.

48 Euclydes Rodrigues da Cunha investiu seus estudos e análises por entre as chamadas ciências humanas, biológicas e exatas: dedicou-se à História, Sociologia, Geografia, Hidrografia, Zoologia, Geologia, Botânica, Engenharia, Física. Suas reflexões foram registradas em artigos de jornal, romances, ensaios e poesias. Desligado do exército em 1888 por conta de suas convicções republicanas, foi reintegrado e promovido após a Proclamação da República.

49 O

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posição significativa constituída na historicidade nacional50: se os três porquinhos brasileiros “consideram [a inferioridade social dos negros] transitoria e remediavel”, onde estão os que “a reputam inherente á constituição organica da raça e, por isso, definitiva e irreparavel”51?

Nenhum destes autores mencionados como “precursores” se inscreveu na posição eugenista – que, conforme discutiremos adiante, ocupou espaço considerável inclusive em políticas de Estado. Ao reler atualmente “clássicos” que deram ensejo à constituição de um campo de saber na sociedade nacional, é constatado o racismo cientificista alimentando teorias e práticas; ainda assim, a possibilidade de corrigir problemas atribuídos às “raças atrasadas” que subjaz o pensamento daqueles teóricos apaga a posição eugenista. O passado é condenado, ao invés de ser entendido – o que é um gesto a-histórico: ao mesmo tempo em que o recupera, também o elimina com os apagamentos que opera.

Mas vejamos como Rodrigues, Roméro e Cunha pensaram a questão da “mestiçagem”, objeto de estudos que atiçava o olhar irrequieto de teóricos preocupados com a intrínseca relação entre Nação e identidade nacional.

50 Retomamos o próprio Ortiz (2006[1985]: 14): “o que surpreende o leitor, ao se retomar as teorias explicativas do Brasil, elaboradas em fins do século XIX e início do século XX, é a sua implausibilidade. Como foi possível a existência de tais interpretações, e, mais ainda, que elas tenham se alçado ao status de Ciências. A releitura de Sylvio Roméro, Euclydes da Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que não um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista, mas que aponta, para além desta constatação, um elemento que me parece significativo e constante na história da cultura brasileira: a problemática da identidade nacional”.

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Raymundo Nina Rodrigues (1862 – 1906), médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo, registra em Os Africanos no Brasil (publicado postumamente em 193252) as posições frente ao “negro” manifestadas na organização social da época:

De facto, não é a realidade da inferioridade social dos negros que está em discussão. Ninguem se lembrou ainda de contestal-a. E tanto importaria contestar a propria evidencia. Contendem, porém, os que a reputam inherente á constituição organica da raça e, por isso, definitiva e irreparavel, com aquelles que a consideram transitoria e remediavel53.

Formado na Escola de Medicina da Bahia, dedicou-se à Medicina Legal e à Saúde Pública, investindo em estudos sobre o atavismo no crime e na loucura. Para o legista-antropólogo54,

A Raça Negra no Brasil, por mais que tenham sido seus incontestáveis serviços á nossa civilização, por mais justificados que sejam as simpatias de que cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo55.

Seus estudos mobilizam teóricos evolucionistas (Herbert Spencer e Abel Hovelacque figuram dentre aqueles a quem mais frequentemente recorre) basicamente como uma espécie de âncora, na qual “amarra” suas conclusões: em outros termos, é como se dissesse: “é assim, porque X disse”. Adjetivos laudatórios são frequentemente mobilizados, ao lado de citações das quais faz largo uso para corroborar suas reflexões. A parte que se pretende, digamos, “autêntica” do seu trabalho consiste essencialmente

52 Ao tentarmos identificar quando a obra foi elaborada, só encontramos no Wikipédia este dado: “publicado postumamente em 1932, mas escrito entre 1890 e 1905” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Africanos_no_Brasil). 53 Idem: 388. Grifos nossos.

54 Seu trabalho As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil (1894) é dedicado aos chefes da nova escola criminalista (Cesare Lombroso, Raffaele Garofalo e Enrico Ferri), ao chefe da nova escola “medico-legal franceza” (Alexandre Lacassagne) e Dr. Corre, “o medico-legista dos climas quentes”, “em homenagem aos relevantes serviços que os seus trabalhos estão destinados a prestar á medicina legal brazileira, actualmente simples aspiração ainda”.

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em categorizações minuciosas que desenvolve, seguidas de definições detalhadas: classificações, estatísticas e descrições são suas grandes companheiras de percurso. A título de exemplo, segue o modo como classifica os “mestiços” para pensar o que considera “um problema biológico dos mais apaixonantes intelectualmente e que tem o dom especial de suscitar sempre as discussões mais ardentes”56:

Dedico-me, ha alguns annos, ao estudo da população mestiça neste estado, e é de accordo com os dados colhidos que farei a distincção das classes ou grupos que adoptei.

Os mestiços comprehendem:

1.° os mulatos, producto do cruzamento do branco com o negro, grupo muito numeroso, constituindo quasi toda a população de certas regiões do paiz, e divisível em: a) mulatos dos primeiros sangues; b) mulatos claros, de retorno á raça branca e que ameaçam absorvel-a de todo; c) mulatos escuros, cabras, producto de retorno á raça negra, uns quasi completamente confundidos com os negros crioulos, outros de mais facil distincção ainda; 2.° os mamelucos ou caboclos, producto do cruzamento do branco com o indio, muito numerosos em certas regiões, na Amazonia por exemplo, onde, ad instar do que fiz com os mulatos, se poderá talvez admittir tres grupos differentes. Aqui na Bahia, basta dividil-os em dous grupos: dos mamelucos que se aproximam e se confundem com a raça branca, e dos verdadeiros caboclos, mestiços dos primeiros sangues, cada vez mais raros entre nós; 3.º os curibocas ou cafuzos producto do cruzamento do negro com o indio. Este mestiço é extremamente raro na população da capital. Creio seja mais frequente em alguns pontos do estado e muito frequente em certas regiões do paiz, na Amazonia ainda;

4.° os pardos, producto do cruzamento das tres raças e proveniente principalmente do cruzamento do mulato com o indio, ou com os mamelucos caboclos.

Este mestiço, que, no caso de uma mistura equivalente das tres raças, devia ser o producto brazileiro por excellencia, é muito mais numeroso do que realmente se suppõe. Pretendo demonstrar em trabalho ulterior que, mesmo naquelles pontos em que predominou o cruzamento luso-africano, como na Bahia, os caracteres anthropologíeos do indio se revelam a cada passo nos mestiços57.

Em Métissage, dégénerescence et crime (1899, Archives d'Anthropologie Criminelle58), resume as correntes teóricas que se ocupavam do assunto:

56 2008 [1899]: 1151.

57 1894: 91-2.

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No trabalho que publicou em 1855, Gobineau59 já fazia um quadro bem

negro da decadência dos mestiços sul-americanos. Mas em 1861, Quatrefages60 invocava, precisamente contra ele, o exemplo da América

do Sul a favor do sucesso completo da mestiçagem e punha em relevo a intrepidez e a energia da empresa dos paulistas61 brasileiros. Mais tarde,

em 1863, é Agassiz62 que por sua vez vê a mestiçagem como a causa

fundamental da decadência miserável dos mestiços do vale amazônico. Sem ir mais longe, recentemente vemos Gustave Le Bon63 considerar as

repúblicas sul-americanas a prova incontestável da influência social desastrosa dos mestiços, ao passo que Keane64 os apresenta como a

prova não menos conclusiva das vantagens da mestiçagem.

“Em tais condições”, diz Nina Rodrigues, “a utilidade de procurar resolver o problema através da observação direta e imediata é indiscutível”. Essa é a via incursionada pelo estudioso, envolvido com as teorias vigentes para se conduzir pelas questões a que se propõe. Conclui que “o cruzamento de raças tão diferentes, antropologicamente, como são as raças branca, negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições da luta social das raças superiores” 65.

Rodrigues assume uma posição racialista marcadamente mais ortodoxa, se o tomarmos em relação aos estudiosos brasileiros proeminentes que lhes são conterrâneos: mostra-se arredio à “mestiçagem”, que seria causa de “defeitos” e pela “inferioridade” do Brasil face a países “civilizados”. É, porém, ambíguo quanto à direção que o país-mestiço assumiria:

O que importa ao Brasil é determinar o quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra que possui e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento, processo

59 Essai sur l'inegalité des races humaines, 1855. 60 L'unité de l'espèce humaine, Paris, 1861.

61 “Habitantes do estado ou província de São Paulo”. 62 Voyage au Brésil, trad., 1869.

63 Lois psychologiques de l'évolution des peuples, Paris, 1895. 64 Ethnology, Cambridge, 1896.

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