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o que fica do lado de fora da discussão?

3. A escrita e seus inscritos

Okonkwo acabara de apagar a lâmpada de óleo de palma e de se deitar na cama de bambu, quando ouviu o agogô do pregoeiro da cidade perfurando a atmosfera tranquila da noite. Guim, gom, guim, gom – soava o oco metal. Depois, o pregoeiro transmitiu sua mensagem, ao terminá-la, voltou a tocar o instrumento. E esta era a mensagem: pedia-se a todos os moradores de Umuófia que se reunissem na praça do mercado na manhã do dia seguinte. Okonkwo ficou imaginando o que estaria acontecendo de errado, pois tinha a certeza absoluta de que algo ruim estava sucedendo. Discernira na voz do pregoeiro uma clara tonalidade de tragédia, e continuava tendo a mesma sensação à medida que a voz se tornava cada vez mais indistinta na distância

151.

O som do AGOGÔ conduz a voz do pregoeiro, para dela compartilhar mensagem aos moradores de Umuófia: estão convocados a discutir questões que lhes afetam a vida social. Do lado de cá do oceano, é a letra que convoca / é convocada. O agogô, conjunto de bocas que apanham para dizer, é apagado pelos caracteres, conjunto de vozes que batem para dizer.

Houve sons, tocados em espaços abertos, para muitos.

Há silêncios tagarelas, estocados em espaços fechados, para poucos152.

151 ACHEBE (2009 [1958]: 29).

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Do “Terra à vista!” ao sistema jurídico e administrativo que instaurou uma nova organização social, foram criadas instituições que a sustentassem. Nesse processo, coube ao grupo social letrado não só organizar e gerir a nova ordem social e política (...), como também construir e configurar um espaço de memória dessa nova ordem discursivamente153. O domínio da escrita produz relações interdiscursivas inscritas na / pela linguagem, organizando discursos, agenciando posições enunciativas; constituindo um espaço estratificado de formulações que se transformam em coisas-a-saber. A relação do homem com a escrita afeta a organizaçãosocial. A transformação da relação do homem com a linguagem, no caso, com a escrita, desencadeia um número enorme de outros processos de transformação: a forma dos textos, a forma da autoria, o modo de significar. E a própria relação com o conhecimento está aí investida154.

A escrita seleciona, classifica, identifica: mesmo quem não a domina é significado por ela155, a alfabetização (...) possibilita a imagem ‘moderna’ do conhecimento”156. Sociedade de escrita157, sociedade de movimentos de saber que se instauram na palavra-impressa, o “mundo no papel”158; “Palavras-verdades” que afetam/ determinam lugares sociais. A arte da escrita e a arte da política se somam

153 SILVA, 1999: 25.

154 ORLANDI, 2001: 21.

155 Para uma análise sobre o cidadão-analfabeto, ver VIEIRA DA SILVA (1996). 156 A

PPIAH, 1997: 188. 157 Cf. ORLANDI, 2005.

158 Embora não abordem a escrita a partir da perspectiva teórica em que nos inscrevemos, são interessantes trabalhos de Gnerre e Olson (GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. SP: Martins Fontes, 1991; OLSON, D. O

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num processo em que resultados comuns são obtidos por esta via. São vários os percursos traçados pela escrita em companhia do político e, nestes trajetos, ela submete não só acontecimentos; submete, também, ideias a uma forma linguística159.

A escrita desempenha um papel de um rito de sepultamento, ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso, diz Michel de Certeau, por outro lado, tem uma função simbolizadora, permite à sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo assim um espaço próprio para o presente160. Atua, pois, na cristalização da memória do passado, ao mesmo tempo em que constrói uma memória para o futuro. Neste movimento, sujeito e sentido se constituem. Ela especifica a natureza da memória, costurando determinados saberes discursivos à produção de sentidos e posições-sujeito, em um processo que afeta os processos de individualização do sujeito.

A memória discursiva, horizonte do já-dito, se constitui pelo esquecimento, na qual “fala uma voz sem nome” (Courtine). Aquela em que “algo fala antes, em outro lugar e independentemente” (Pêcheux), produzindo o efeito do já dito161. A escrita se relaciona com representações imaginárias desta memória, constituindo a memória de arquivo. É no jogo entre memória e esquecimento que a letra traça a entrada do sujeito no simbólico, construindo a memória institucional, aquela que não esquece, ou seja, a que as Instituições (...) praticam, alimentam, normatizando o processo de significação, sustentando-o em uma textualidade documental, contribuindo na individualização dos sujeitos pelo Estado,

159 Cf. R

ANCIÈRE, 2009. 160 C

ERTEAU (1982: 106) A escrita da história. 2ª. ed. Trad. Maria de Lourdes Menezes. RJ: Forense Universitária. 161 O

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através dos discursos disponíveis, à mão, e que mantêm os sujeitos em certa circularidade”162. A memória institucional se relaciona com o arquivo, material cujo processo de produção é afetado por determinadas condições históricas, disponibilizando gestos de leitura sobre os sentidos em jogo. Se no arquivo, o dizer é documento, atestação de sentidos, efeito de relações de forças” 163, nele o dizer é atualizado e estabilizado enquanto memória institucionalizada, produzindo um efeito de homogeneidade.

Na multiplicidade de vozes agenciadas nos discursos sobre o “negro” materializados em textos documentais, há uma voz que só pode aparecer na forma de interpretação-tradução: a daquele que foi chamado de escravo. Uma das consequências do translado África-Brasil colonial é que a sonoridade do agogô africano convocando para a discussão164 se manifesta pela sua presença ausente, pela falta: do lado de cá do oceano Atlântico, é a silenciosa letra que recorta o dizer. O não-dizer e o não-saber se encontram, no ponto em que a própria relação com o conhecimento está investida em formas de ler-e-escrever-sobre. A escrita costura os fios da história produzindo efeitos de evidência subjetiva sob exílio daqueles que não ocupam posições de sujeito de escrita. Ela não é só um instrumento: é estruturante. Isso significa que ela é lugar de constituição de relações sociais, isto é, de relações que dão configuração específica à formação social e seus membros165.

162 Idem: 9.

163 O

RLANDI, 2003: 22.

164 Estamos nos referindo ao modo como sociedades africanas convocavam seus membros quando havia algo a ser discutido. Não podemos dizer ao certo se era sempre desta maneira; o que estamos chamando a atenção é para o fato de que eram sociedades orais.

165 O

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Este é um ponto que consideramos fundamental ao abordar o assunto que nos propomos a discutir, uma vez que esta escrita é um suporte ocidental166 assim, a natureza específica deste espaço de memória inscreve o “negro” em uma perspectiva na qual ele se encontra em desvantagem. O gesto da mão em escrita produz efeitos que se fazem sentir antes, durante e mesmo depois da escravidão: à mão livre sujeitos se submetem aos / são submetidos pelos desígnios de uma racionalidade alfabetizada civilizadora.

Pensando com Foucault: onde os fatores determinantes saturam o todo não há relação de poder; escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (neste caso fala-se de uma relação de constrangimento físico)167. Consideramos que existe, sim, uma relação de poder imposta pela força física. Mas não é na violência em si que ela se constitui. Atentamos para: que condições (mecanismos, processos, etc.) produziram efeito de legitimidade para esta prática? Porque pensamos que a dor em dorso agredido dá a ver feitos que não podem ser sabidos sem que o asco os acompanhe; mas, além disso, está o fato de um dia terem sido práticas socialmente aceitas.

Em nossa opinião, a chibata materializa um poder autoritário: invade o espaço de dizer para nele fazer valer “verdade” única; força física impõe um dizer que se pretende unívoco. É uma forma de poder que se sustenta, mas não permanentemente: vozes podem ser silenciadas, mas inexiste a possibilidade de um poder absoluto que controle todas as fendas pelas quais elas possam irromper.

166 Talvez não seja demais lembrar: não estamos dizendo da escrita em geral (afinal, também existe a escrita oriental), mas da ocidental(izadora).

167 F

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Diríamos que esta forma de poder é a que tem sido identificada no fazer teórico que indagamos; ela é tátil, visível, tem cheiro de sangue e gosto de tragédia. Em uma palavra: material.

Prosseguindo com Foucault: a liberdade precisa existir para o “poder” ser exercido168. Aqui, estamos nos referindo àquele que se impõe como autoridade: na relação com o conhecimento, as relações de poder se instauram, sustentam, legitimam (e enganam o olhar que busca o empírico para compreender subjetividades). É na letra impressa que o angola-mina-congo-moçambique-etc é discutido como “negro”. Portanto: já no próprio lugar de materialização da discussão, ele é automaticamente excluído; ou, para tomar parte, é preciso submeter-se a ela. Tanto o escravo quanto o liberto estão sujeitos a uma memória ocidental(izadora), a determinada massa-de-já-ditos. Se, conforme Zattar, na condição de liberto – o novo estatuto jurídico conquistado – o ex-escravo pode passar a ocupar um lugar de enunciação”169, há um trajeto ladrilhado por caracteres que marcam esse lugar.

168 Idem.

169 Z

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