• Nenhum resultado encontrado

Se nos debruçarmos sobre este peculiar título, descobriremos que ele tem em si uma grande carga antropológica e teológica. A barca sempre esteve ligada à vida do homem, seja como instrumento de trabalho ou como simples meio de transporte. Se voltarmos o olhar para a cultura grega antiga, constataremos que havia um mitificado e peculiar costume, porém muito simbólico, relacionado com a passagem da vida para a morte: punham-se duas moedas nos olhos dos defuntos para poderem pagar a viagem para o reino dos mortos, isto é para o Hades.

78 (Cf. LOPES, 2002: 251)

37

O barqueiro Caronte recebia os óbolos que lhe eram devidos por parte dos mortos, e somente com o ajuste de contas, realizavam a viagem.

Aqui sublinha-se bem: para a viagem. A barca na Sagrada Escritura sempre foi relacionada com uma travessia ou viagem de suma importância: para chegar de uma à outra margem como fez Jesus com os apóstolos, e como fez Paulo com as suas viagens apostólicas… Esta imagem por sua vez foi se estabelecendo no decorrer da história e ganhando enorme pujança até encontrar na cultura portuguesa o seu status durante o período dos descobrimentos marítimos (sécs. XV-XVI), época em que Gil Vicente escreveu este Auto. Este título é peculiar pois toca numa imagem importantíssima.

Gil Vicente toma essa imagem, que antes foi pagã, mas agora tem um novo sentido para a cultura cristã e portuguesa, para aplicá-la na sua obra. Tendo em conta que para a cultura cristã a barca é um símbolo da Igreja, isto é, da assembleia convocada, entende-se também a chave hermenêutica deste Auto. Jesus com os seus apóstolos muitas vezes ensinou em cenas de embarcamentos, na tempestade acalmada (Mt 8, 23-29), na pesca (Mt 4, 19), na sua ressurreição (Jo 21). Assim a Igreja reconhece que a barca é sua imagem, que não afunda nas águas, mas antes, na companhia de Jesus retira os homens da morte. Lembre-se por exemplo o que diz S. Cipriano a respeito da Igreja, comparando-a à arca de Noé: “Extra

eclesia nula salutis”79.

Por esta razão aquele que escuta ou lê esse título tendo em conta que é um Auto de Moralidade, dá-se conta da profunda e obscura mensagem nele inserido, uma vez que a barca é a que reúne a Igreja, isto é, a assembleia, os convocados. Mas se poderia perguntar: que convocados? Convocados para a companhia de Deus na barca que conduz ao Paraíso, ou para tomar parte na sorte dos condenados na Barca do Inferno?

79 Ainda que com o pensamento da época pendulava entre o medieval e o renascentista, está visão teológica perdurou durante muitos séculos sendo tomada como única verdade, e a Igreja como sendo uma exclusiva tábua de salvação para o mundo.

38

Olhando para a palavra Inferno o que vem à mente uma realidade sombria, assustadora, eterna, sofrida… e de fato Gil Vicente não esconde essa ideia. Como já foi explicado, para os gregos a barca fazia o transporte das almas para as regiões inferiores (daí a palavra Inferno).

O comediógrafo causa incómodo com esse título, pois o Inferno, para os cristãos, é o lugar para onde vão as almas condenadas que em vida não quiseram livremente converter-se de coração e não produziram frutos de vida eterna. Dessa forma, são privados da comunhão com Deus. Biblicamente falando, o mar era a imagem destas zonas inferiores, onde viviam os monstros como leviatã, os dragões, e até o peixe grande que engoliu o profeta Jonas80 (Jn 2, 1-

6), dos demónios que possuem a vara de porcos (Cf. Mt 8, 30-32). Gil Vicente apresenta um braço de rio/mar, pois em Portugal essa realidade é latente e faz-se entender com mais facilidade.

Em (Mt 4, 19), Jesus chama os seus discípulos para o seguirem, pois Ele fará com que estes sejam pescadores de homens, ou seja, que os apóstolos, por meio de Cristo, tiram os homens da morte, dessa forma, o mar também é símbolo da morte. Em (Mt 14,22-33) Pedro olhando para Jesus caminha sobre as águas, mas sentindo o forte vento, teve medo e afundou- se, contudo Jesus o salva. Com isso o evangelista Mateus mostra que Cristo pode tirar da morte os que gritam por Ele, uma vez que Ele tem o poder sobre a morte. Por outras palavras, em Cristo o homem vence a morte ôntica e física. Essa referência também é encontrada em (Mt 8, 23-29), no episódio da tempestade acalmada81.

Contudo, é curioso o fato de Gil Vicente falar na Barca do Inferno. Quer isso dizer que o “protagonista” da obra é o Arrais infernal e a sua barca é o mais importante elemento da

80“E Iahweh determinou que surgisse um peixe grande para engolir Jonas. Jonas permaneceu nas entranhas do peixe três dias e três noites. Então orou Jonas a Iahweh, seu Deus, das entranhas do peixe. Ele disse: De minha angústia clamei a Iahweh, e ele me respondeu; do seio do Xeol pedi ajuda, e tu ouviste a minha voz. Lançaste- me nas profundezas, no seio dos mares, e a torrente me cercou, todas as tuas ondas e as tuas vagas

passaram sobre mim….As águas me envolveram até o pescoço, o abismo cercou-me… (Jn 2, 1-6)”

81 “Depois disso, entrou no barco e os seus discípulos o seguiram. E, nisso, houve no mar uma grande agitação, de modo que o barco era varrido pelas ondas. Ele, entretanto, dormia. Os discípulos então chegaram-se a ele e o despertaram, dizendo: "Senhor, salva nos, estamos perecendo!" Disse-lhes ele: "Por que tendes medo, homens fracos na fé?" Depois, pondo-se de pé, conjurou severamente os ventos e o mar. E houve uma grande bonança. Os homens ficaram espantados e diziam: "Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem?”

39

obra. O leitor/espectador é convidado a ver a estória na perspetiva do Diabo, procurando o mal e os pecados, mas ao mesmo tempo lê a obra também na sua condição humana de pecador. A reação do leitor/espectador é antagónica, ora na perspetiva do Diabo, ora na sua.

Analisemos a Rubrica:

“Auto de Moralidade composto per Gil Vicente […] Começa a declaração e

argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batés que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o Paraíso e o outro pera o Inferno […] tem cada um seus arrais na proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Inferno um Arrais infernal e um Companheiro”.

Nesta obra repleta de teologia, constata-se que existem nela ressonâncias explícitas e implícitas da Sagrada Escritura. Contudo o maior eco da obra que pode ser encontrado, acerca da temática do Juízo, é de modo geral, a do Evangelho Segundo João: “Sairão; os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida; os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação” (Jo 5,29) ou até “Saibam que o Filho do homem virá com toda a glória do seu Pai, rodeado dos seus anjos; então retribuirá a cada um conforme o seu procedimento” (Mt 16,27).82

82 Sobre este mesmo tema vide: 5,12; 13,39; 25,31-46, a narração do Juízo Final, quando todos serão julgados segundo as suas obras; Hb 3,20; Rm 2,6 “[Deus] pagará a cada segundo as suas obras”; Gl 6,5: “Cada um terá que responder pelas suas próprias obras” II Cor 5,10; 11,15; Ef 4,30; 6,8; I Pd 1,5; 1,17: “Vós chamais Pai ao que não discrimina as pessoas, mas que julga cada um segundo as suas obras”; Ap 20,12: “Então os mortos foram julgados […] cada um segundo as suas obras” 2,23; e 22,12.

40