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CAPÍTULO II O Auto da Compadecida O Auto da Compadecida

2.3. Esboço de uma Teobiografia

Tendo em conta a perspetiva teológica deste trabalho, não é possível deixar de olhar para a vida de Ariano Suassuna sem analisá-la pelo prisma teológico. Como já foi realçado, a vida de Ariano foi profundamente marcada, e até mesmo condicionada, pela morte do pai. A morte e o sofrimento tornaram-se indagações constantes no percurso do escritor. Ele questionou o mundo injusto, a pobreza, a falta de consideração para com os pobres, a injustiça para com os necessitados de justiça, sejam ricos ou pobres. A juventude, compartilhada entre a Arte e os amigos, não conseguiriam apagar um tormento que parecia perseguir a vida de Ariano: a

135 (Cf. CADERNOS, 2000: 42-43)

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morte do pai, uma marca de sofrimento jamais disfarçada: “A vida assim me aparecia: estranha e perigosa”136.

Segundo afirmou, nunca foi protestante, mas antes, criado como protestante, todavia em sua juventude, tempo de maiores crises e revoltas, abandonou toda a crença. A religião protestante não dava respostas à sua problemática existencial. O seu pai, ciente de que poderia ser assassinado, trazia sempre no bolso do fato uma carta para a sua família. Essa carta foi encontrada com o corpo do seu pai. Nela dizia:

“Se me tirarem a vida os parentes do presidente J. Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa a injustiça – eu não sou responsável, de qualquer forma, pela sua morte, nem de pessoa alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de vingança contra ninguém. Recorram para Deus, para Deus somente. Não se façam criminosos por minha causa!”137

O fato desta carta se encontrar conservada até aos dias de hoje, indica uma forte influência da vida e da espiritualidade do pai presente na sua vida. O pai de Ariano era católico; a família da sua mãe, originalmente, também. Rita e João Suassuna casaram-se numa cerimónia católica em dezembro de 1913.

Ariano lembra-se de, quando era menino, ver certo dia, um funcionário de joelhos perante dona Rita, implorando que ela lhe permitisse vingar o marido, e ela não aprovar tal pedido.138 Nesse contexto de descrença e deseperança, o perdão foi algo racionalmente

impossível na sua vida. Não só o perdão, mas também a paz. Ariano “refugiava-se” na literatura e nas artes.

136 (VICTOR; LINS, 2007: 37) 137 Ibdem. 12.

138 Cf. Acesso Digital ao site: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/06/ariano-suassuna-conta-que-hoje- reza-pelos-assassinos-do-seu-pai.html 23-02-2018 22:51.

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E foi no final da sua juventude que a literatura foi o instrumento de Deus na sua vida. Segundo ele, esta resgatou-o para a vida nova do crer: “voltei à noção de Deus”139. Ao ler em

Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido140” ficou profundamente tocado e naquele

momento reencontrou o confronto com a verdade religiosa. Para Suassuna: “Deve existir um Princípio indiscutível e Absoluto de Bem que impeça o homem de cometer monstruosidades141:

“Eu não conseguiria conviver com essa visão amarga, dura e sangrenta do mundo. Então, ou existe Deus ou então a vida não tem sentido nenhum; bastaria a morte para tirar qualquer sentido da existência. Deus para mim é uma necessidade. Se eu não acreditasse em Deus, eu era um desesperado”142.

Após essa revelação reconheceu com verdade que deveria cultuar Deus. Porque a vida real deve ser vivida em Deus. O seu pai foi assassinado por uma “mentira oficial”. Ariano viveu desiludido com a vida real, por causa do sofrimento, mas viu na afirmação de Dostoievski a necessidade de um Bem supremo que regule o mundo e proíba o mal. O seu pai estava convicto de que essa verdade consistia em buscar refúgio em Deus, e não viver alimentando a vingança. Esta era a vida real: “O real nem sempre é crível” como afirmou o nosso autor. E foi justamente partindo dessa realidade impossível que Ariano começou a mudar de vida em 1954.

Desde então a sua relação com Deus, “destruída” pelo evento com seu pai, passou a mudar de perspetiva, pois se Deus não existisse estava “justificado” o assassinato do seu pai, pois “seria permitido sem Deus”. Assim, Deus era o que manifestava que o seu pai deveria ter

139 Cf. Acesso Digital aos Site: httpswww.youtube.comwatchv=Z5HxQzDKdBQ/ 14-02-2018 09:56. 140 Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov.

141 AcessoDigital ao Site: httpswww.youtube.comwatchv=Z5HxQzDKdBQ 23-02-2018 12:18. 142 AcessoDigital ao Site: httpswww.youtube.comwatchv=WJQpAkBvtQg 19-02-2018 09:22.

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vivido, o Bem supremo que proíbe o mal. Para Ariano, não crer em Deus seria crer na morte e no sofrimento como vida real. Crer em Deus é crer no Bem supremo, é ver a vida para além da morte: “VIVA O SANGUE DE DEUS LIMPANDO A LUZ DO MAL!”143.

Entende-se assim mais um motivo pelo qual Ariano escreveu sempre a palavra “pai” com “P” maiúsculo, pois é dessa forma que os cristãos se dirigem a Deus, o Pai por excelência. Ariano “perdeu” um pai para ganhar outro Pai. Este recurso a Deus e à sua Misericórdia aparecem nítidos no Auto da Compadecida.

Ariano conciliou a orientação e o exemplo do seu pai e voltou como filho para a Igreja Católica. Mesmo com todos os seus defeitos humanos, Suassuna reconheceu a sua natureza divina e a sua importância144. E nela Ariano confessou ter recebido e ter sempre

presente o mandato do perdão. O valor do perdão foi deveras fundamental na vida de Ariano. Depois de fazer as pazes com Deus, deveria fazer com o próximo, o que admitiu não saber se era capaz ou não, porque o perdão “é uma coisa difícil” que só com a ajuda de Deus se alcança145.

Pode-se assinalar desta forma o marco de 1954, como o ano da grande mudança na vida de Ariano Suassuna. Foi neste momento que começou a experimentar na Graça e com a

graça uma vida para lá da morte ôntica. Foi também nessa época que conheceu a sua esposa

Zélia, que contribuiu também para essa vida nova.

O homem quando crê em Deus, quando empreende um caminho de conversão, e começa a possuir a fé, pode, em Deus, tornar-se novo sem deixar de ser o mesmo. Foi essa

143 Poema escrito por Suassuna em comemoração a “Batalha de Guararapes” onde portugueses, negros e índios se uniram contra o invasor holandes, gerando assim, em conceção mitológica a semente da brasilidade. O Movimento Armorial consiste em uma “luta” artística contra elementos culturais que exterminam o belo da cultura brasileira, nesste sentido essa luta cultural consistem em defender a belza do cristianismo, que limpa o mundo do mal (entendido também em sentido estético e pagão).

144 Cf. Acesso Digital ao Site: httpswww.youtube.comwatchv=Z5HxQzDKdBQ 23-02-2018 12:18.

145 Acesso Digital ao Site: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/06/ariano-suassuna-conta-que-hoje- reza-pelos-assassinos-do-seu-pai.html 23-02-2018 22:51.

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realidade que Ariano representou na sua vida e aplicou nos seus trabalhos, e de um modo especial na Compadecida, na personagem de João Grilo.

Tamanha foi a sua compreensão da bondade e da misericórdia de Deus, que acreditava no Inferno, e no Demónio, mas tinha dificuldade de pensar na sua eternidade. A questão que o assolava era esta: “Se existe um mal eterno e absoluto, então o Demónio e o Inferno se tornariam tão “importantes” quanto o próprio Cristo. Mas como Cristo é o único absoluto, então não poderiam existir penas eternas e absolutas”146. Ambos os aspetos (a misericórdia de

Deus e a impotência do Demónio frente a Jesus) estão na Compadecida.

Ariano manifestou, em entrevistas já aqui citadas, que não era ignorante em relação a teologia. Ariano reconhecia que a sua arte era provocadora e impertinente, mas que a verdade da Igreja Católica (não só como instituição humana, mas divina) estava acima da compreensão humana. Em Ariano os pontos fixos foram: a arte e a religião: “Entende que há uma estreita ligação entre religião e arte: ambas têm caráter de absolvição”147.