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Gil Vicente deseja provocar um conflito interior nos seus ouvintes ou leitores. Esse conflito consiste no despertar da consciência. Para isso apresenta o pecado de forma personificada como defende Maria Leonor Garcia: “A cadeira do Fidalgo= tirania e orgulho, a bolsa do Onzeneiro= ozena, as formas do Sapateiro= roubo, a moça [e a espada] do Frade= concubinato, a mercadoria da Alcoviteira, o bode do Judeu, os processos do Corregedor= subornos e corrupção da justiça, os livros jurídicos do Procurador e o baraço do Enforcado”113.

Esta obra, como já foi visto, é filha do seu tempo, isto é, situa-se no período da reforma religiosa. Como se pôde constatar, todas as figuras são julgadas, absolvidas ou condenadas pelas obras que praticaram em vida. Dessa forma, Gil Vicente, na posição de cristão católico traz o debate Fé-Obras, muito discutido na época para a sua obra, abordando e desenvolvendo o tema com genialidade literária. Como consequência, o Auto da Barca do

Inferno serviu como instrumento de consolidação católica, como o próprio autor indica na

rubrica da obra.

Contudo, Gil Vicente não pretendia somente defender uma posição teológica ao escrever esta obra, pois ela foi apresentada no ambiente do teatro popular. Esta peça, tal como as outras obras da chamada Trilogia das Barcas, apresentavam um retrato real da sociedade no seu todo. O autor executa magistralmente a finalidade deste Auto moral, que não só expor e denunciar os pecados e vícios da sociedade como ações reprováveis, “Quem peca contra mim fere a si mesmo, todo o que me odeia ama a morte” (Pr 8,36). Neste sentido existe um alerta antropológico-teológico como resalta Giulio Franco: “O homem carrega em si uma chamada para viver em Deus, contudo o homem é livre para aceitar ou para rejeitar tal

113 (CRUZ, 1990: 54)

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chamada”114. “Esta obra também quer denunciar a falta de consideração para com Deus, pois

nessa época os avanços científicos e metodológicos do homem ganhavam muito destaque”115.

Esta obra, sobretudo torna presente o inestimável valor da salvação e a consideração de uma vida eterna, de uma vida celeste com Deus, que pode começar aqui na terra. Essa união com Deus manifesta-se no abandono filial e consecutivamente nas obras operadas: “Ouvi então uma voz do céu, dizendo: "Escreve: felizes os mortos, os que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14,13).

A peça situa os seus leitores/expectadores na última realidade (eschaton), para que os mesmos possam dar-se conta que esta é na verdade a realidade última do homem. O homem situa-se no lugar “escatológico”, pois é um ser “catapultado” para a morte, não a morte física ou espiritual, mas para a passagem da morte à vida, isto é para a vida eterna. Este fato é apresentado aos cristãos como centro da sua existência116.

Gil Vicente destaca o bem, isto é, as boas obras, mostrando justamente o que não é o bem. Gil Vicente não apresenta uma realidade pessimista acerca do homem, mas tenta reforçar nos seus leitores ou espectadores a ânsia pelo bem: “Procurai com mais diligência consolidar a vossa vocação e eleição, pois, agindo desse modo, não tropeçareis jamais; antes, assim é que vos será outorgada generosa entrada no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1,10-11).

As personagens desse auto, apresentadas por Gil Vicente, tinham em vida dois caminhos (Dt 30, 15-20), o do bem e do mal, o que segundo Dalila da Costa se “digladiam nesta obra”117. O bem e o mal estão configurados nas duas barcas, uma do Céu e outra do

Inferno, uma da ordem e da harmonia e outra do caos e da discórdia, uma dos que viviam

114 (BRAMBILLA, 2005: 125) 115 (PEREIRA, 1989: 30) 116 (Cf. BALTHASAR, 1969: 45) 117 (Cf. PEREIRA, 1989: 64)

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livremente como filhos de Deus e a outra dos que viviam distante de Deus sem temor nem amor, na condição de escravos.

Podemos resumir este magnífico auto com uma passagem do sermão da montanha, que apresenta a imagem do homem novo, imagem essa que nem todas as personagens optaram por avizinhar-se de Deus:

“Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, o vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas? Quem dentre vós, com as suas preocupações, pode acrescentar um só cóvado à duração da sua vida? E com a roupa, por que andais preocupados? Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham e nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em toda a sua glória, vestiu- se como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existehoje e amanhã será lançada ao forno, não fará ele muito mais por vós, homens fracos na fé? Por isso, não andeis preocupados, dizendo: Que iremos comer? Ou, que iremos beber? Ou, que iremos vestir? De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso: o vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas essas coisas. Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal” (Mt 6, 25-34).

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CAPÍTULO II