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Esta figura aparece em clima de festejo, quase um folguedo. Eis que surge com uma moça pela mão, uma espada na outra e uma espécie de elmo a juntar ao escudo. O leitor, por certo, deve admirar-se com esta cena, pois esta figura é a representação direta da autoridade eclesial.

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Entretanto o que chama à atenção nesta personagem é que ela deveria viver um estilo de vida baseado na pobreza, castidade e obediência, mas em vez de pobreza, bens; em vez de castidade, uma moça; e em vez de obediência, a sua razão e o seu ego armados.

Se repararmos bem existe um paralelo mais expressivo entre as armas do Frade e a armadura de Deus de Ef 6, 11-17:

“Revesti-vos da armadura de Deus, para poderdes resistir às insídias do diabo. Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestiais. Por isso deveis vestir a armadura de Deus, para poderdes resistir no dia mau e sair firmes de todo o combate”.

Em vez da armadura de Deus, o Frade veste a armadura do mundo. Em vez de anunciar a paz ao mundo estava pronto a lutar ao lado dele, mas não contra o verdadeiro Inimigo:

“Portanto, ponde-vos de pé e cingi os vossos rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça e calçai os vossos pés com a pregação do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno. E tomai o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus” (Ef 6,14-17).

O Frade apesar de levar o hábito da Ordem e o seu cíngulo aqueles de nada lhe valiam, pois vivia uma mentira; do mesmo modo como sua couraça (imagem do hábito) não levava a justiça (da cruz), mas a falsidade do mundo; o seu escudo não era o da fé, portanto não lhe

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servira de nada uma vez que não resistiu às insídias. O seu capacete não era imagem da coroa da justiça misericordiosa como ele acreditava, a sua tonsura ou o seu capelo de nada lhe beneficiaram (v.417), mas defendia unicamente a sua razão. O Diabo ciente desta realidade contra argumenta: “Ó padre frei Capacete! Cuidei que tínheis barrete” (Cf. vv. 418-419); e por fim, a sua espada não era do Espírito, ou seja, não levava a Palavra de Deus. O seu combate nunca consistiu no verdadeiro “combate da fé” (Cf. 2Tm 4, 7-8).

Aqui o Diabo na sua dimensão de acusador, incrimina-o por não viver como padre, ou seja, configurado com Cristo em sua vida, buscando a perfeição (Mt 19,16-21). Desta forma pode-se constatar que em vez de levar a morte de Cristo para manifestar a sua ressurreição (2 Cor 3, 7-12), levava um coração cheio dos bens terrestres (Cl 3, 2-3). É uma figura anti- evangélica.

Também é explícita a sua ânsia por possuir, pelo poder e o seu egocentrismo, considerando-se uma pessoa importante “sou cortesão” (v.372). E tinha a moça Florença por sua (vv.378-379; 420). Em tudo isso se reflete a falsa intenção de coração (vv.389-390; 393- 394;396-400;409-412;); para ele, a sua vida religiosa servia-lhe somente para obter privilégios e uma suposta salvação.

Caminham para o batel divinal, mas o Anjo nem mesmo lhes dirige uma palavra. Como já vimos, esta é uma ferramenta que Gil Vicente usa para enfatizar pelo silêncio uma espécie de protesto. O que estabelece a comunicação é Joane, que mesmo sendo parvo, reconhece que o Frade e sua namorada pecaram gravemente. O Parvo toma a palavra, e denuncia-o, assumindo também um papel social. O clero estava presente em muitas camadas da sociedade, desde a corte até às aldeias. Uma vez que o Frade não busca a própria santificação (imagem do clero), a sua ação implica diretamente a não santificação da sociedade. A fala do Parvo é embaraçosamente impactante, curta e direta, a tal ponto de nos recordar alguns diálogos de Jesus com os fariseus (Cf. Mt 23,13- 32; Mc 7,6-13).

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Aqui existe um ponto importante que requer uma breve reflexão: Florença, a mulher que aparece em companhia do Frade, não é citada como uma personagem própria, mas em relação ao Frade, já que em nenhum momento ela possui falas ou intervenções próprias, pecados demonstrados, ou sequer o Diabo dirige-se a ela; poderia-se cogitar a possibilidade de Florença ser somente um símbolo do pecado do Frade, tal como o pajem do Fidalgo.

Resta ao Frade aceitar a sua condenação, com a certeza de que receberão na carne (Cf.v.415), o que na carne semearam:

“Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito. De fato, o desejo da carne é morte, ao passo que o desejo do espírito é vida e paz, uma vez que o desejo da carne é inimigo de Deus: pois ele não se submete à lei de Deus, e nem o pode, pois os que estão na carne não podem agradar a Deus […] Pois se viverdes segundo a carne, morrereis…” (Rm 8, 5-8; 13).

Pode-se presenciar que este Frade não considerou a seriedade de sua vida sacerdotal, pois ponderou unicamente as vantagens e regalias desta vida e não suas aplicações, mais concretamente o celibato:

“Há eunucos que foram feitos eunucos pelos homens. E há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda!» (Mt 19,12). Ou: “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 3,20).

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Fica então explicita a passagem que diz:

“Jesus voltou-se e disse-lhes: "Se alguém vem a mim e não odeia" seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não carrega a sua cruz e não vem após mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 25-27).