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Ninguém, poderia nascer com um destino tão bom e tão humano, como aquela Barca enorme guardando o característico das Caravelas históricas, construídas no Pará, com madeiras paraenses e pelos operários. Aquela coisa nascia com alma, trazia como as criaturas o seu destino e teria de cumpri-lo, com a mesma paciência dos predestinados, o mesmo ar inexorável. Chegou ir a Portugal. Levava em seu bojo rapazes engajados para essa acidentada viagem. Mas, seria, o seu destino. Em qualquer parte onde ficasse tinha de ser cumprida a sua sorte. Seria uma Vila, com homens pobres trabalhando, com mulheres e filhos. A baia a engoliu, a lama da beirada a chupou. O rio compreendia o porque daquela volta: a barca seria a companheira das marés das águas subindo, macias e lânguidas, como se fosse uma amante enchendo-a de carícias. E talvez contassem histórias. A barca deveria ter muitas histórias para contar. Jogada na beirada além do curro Velho, ficou esperando pelo seu futuro (O Estado do Pará, 7/10/1941).

O fragmento acima fora extraído do Jornal “O Estado do Pará”, publicado em 1941. A reportagem, que dividia espaço com outra inusitada manchete “Hitler quer a paz”, tinha como título “Os recantos que Belém não mostra a ninguém”. E realmente, ainda hoje, a cidade pouco mostra seus logradouros menos ilustres. Por exemplo, geralmente, quando se divulga uma cidade para fins turísticos a propaganda faz questão de omitir “certos recantos” que desestimulariam a vinda de prováveis visitantes. Um desses recantos que nossa cidade teria a esconder, certamente, seria a Vila da Barca, além de tantos outros em que a existência se reproduza com tantas dificuldades.

Determinadas pessoas, de algum modo, encontraram nesta localidade abrigo das intempéries do tempo e mesmo da vida. Naquele espaço escondido da cidade resolveram prosseguir a labuta pela existência. A barca seria a parceira de todos os dias, fossem eles tristes ou alegres.

Mas, mesmo “escondida”, a vida, de alguma forma, fora se reproduzindo naquela incipiente Vila que, gradualmente, abrigava cada vez mais pessoas “sem muita sorte” na vida. Talvez por se reproduzir de um modo nada decente, a maneira como a vida ia sendo ritmada por lá não merecesse ser mostrada. Seria melhor esconder (!?). Esconder aquela gente pobre, faminta e descamisada, maltrapilha... Quem eram e de onde vinham estes indivíduos? Porque

habitar em lugar quase inóspito? Talvez por ser um dos poucos espaços onde se acolha gente desta estirpe; eram desafortunados e esquecidos de todo tipo, das mais variadas procedências e das mais distantes paragens.

Como se sabe, a orla de Belém foi, praticamente, toda privatizada. Ao ser ocupada assim, essa parte da cidade tornou-se área restrita, praticamente um monopólio, de certos afortunados. Tudo indica que, além da Vila, há apenas mais uma área residencial localizada na orla, em Icoaraci. O restante desta área da cidade é ocupada por empresas de diversos ramos comerciais e industriais26.

A forma como nossa orla fora ocupada não permitiu, portanto, que esta parte da cidade fosse habitada para fins residenciais, muito menos por pessoas de baixa renda. Seria este o destino da “Velha Barca” portuguesa que, após cumprir seu “destino”, serviria de moradia para aquela gente que não possuía um teto que as abrigasse do calor, do frio, da noite, do dia.

A “Velha Barca”, ao afastar-se de seus desígnios iniciais, converte-se em moradia e, generosamente, acolhe, sem discriminação ou distinção, qualquer pessoa que a procura; o embrião da Vila. Esta versão, contudo, não é a única. Cabe ressaltar que a refuta em questão nasce por conta, segundo o relato dos residentes, da dúvida concernente quanto à veracidade do fato que originou o nome “Vila da Barca”.

Para alguns, esta localidade recebe tal nome em virtude de – aproximadamente, para alguns 50 anos, para outros 70 setentas anos atrás – haver naufragado, neste local, uma barca portuguesa – tal como aponta a reportagem do Jornal acima citado – ou pirata que, parcialmente danificada por conta de um incêndio ou por problemas em sua maquinaria, passou a servir como moradia à tripulação da mesma. Outros vão mais adiante, pois afirmam que, além de servir como habitação aos tripulantes, estes a utilizaram como um entreposto

26 De acordo com Stockinger (2000, p. 81-2): “Um projeto apresentado por Gaspar João Geraldo de Gronfeld, em 1773, previa o aproveitamento das orlas da cidade, mas, não se sabe por que, os rumos da ocupação e da construção da cidade seguiu outros rumos: as orlas são ocupadas por empresas diversas, pequenos portos (inclusive os clandestinos) e aqueles que não são ocupados pertencem à marinha”.

comercial para a venda de frutas e pescados, típicos de nossa região amazônica, que tinham como procedência as ilhas que circundam Belém e demais localidades interioranas próximas a nossa cidade. Informação corroborada pelo documentário “Vila da Barca” produzido em 1964 por Renato Tapajós27:

A maioria dos habitantes da Vila da Barca vive do trabalho nas feiras que abastecem diariamente os bairros pobres de Belém. Os produtos vendidos nas feiras, principalmente frutas nativas, são adquiridos nos barcos que vem do interior. Comprando em pequenas quantidades, individualmente e sem depósitos, além de pagarem preços já elevados, os feirantes conseguem somente uma pequena margem de lucro.

Servindo, também, como espécie de entreposto comercial, a localidade logo percebeu o aumento do fluxo de pessoas. Segundo algum relato, decorreu desta movimentação comercial, além do aumento da sorção de indivíduos, um crescimento no número de habitantes que, cada vez mais se aglomeravam as margens do rio. Estes, gradativamente, passaram a construir suas moradias às proximidades da suposta barca.

O que percebo é que as versões contadas por cada morador, pelas fontes jornalísticas e poetas, quando buscam justificar a relação entre a Vila e a “Velha Barca” portuguesa elaboram uma construção mítica acerca da origem da Vila. Não seria a barca portuguesa, portanto, um mito de fundação da Vila? E o mito, conforme Adorno e Horkheimer (1985) já não seria uma forma de explicação da realidade? O fato é que...

Não se sabe ao certo como tudo começou. O fato é que já no ano de 1941 aquelas casas palafíticas localizadas na orla de Belém do Pará já chamavam a atenção de quem pela Baía de Guajará passasse. Não deviam ser poucas, nem tão recentes, pois juntas já possuíam um nome [...]. Haveria de fato alguma relação entre a velha barca com a construção das primeiras habitações e pontes? O seu afundamento, no entanto, não explicaria por si só o início e as razoes do processo de ocupação, pois percebe-se que há uma

27 Este cineasta, ao passar férias em Belém, cidade onde nascera, com apenas uma câmera 16mm, alguns rolos de filmes e um gravador conseguiu, sozinho, produzir um documentário sobre a Vila da Barca em 1964. O filme, mesmo feito em condições adversas, conseguiu ganhar o primeiro premio do Festival de Leipzig (Festival Internacional de Curta-metragem de Leipzig, na então Alemanha oriental), em 1968.

conexão não bem explicitada entre este fato e a origem da Vila. (MELO, 2002, p. 42-5).

Não se sabe ao certo, também, o local preciso em que a suposta barca havia naufragado ou encalhado, pois as diferentes versões apontam para locais diversos, mas...

Independente de sua localização, o afundamento ou encalhamento da velha barca é hoje contado de geração após geração e para os moradores é certo que a barca está ali muito próximo. Mais pra lá da Vila ou mais pra cá do Curro Velho, enterrada na lama, ela é um marco de referencia e está associada ao inicio do processo de ocupação da área (MELO, 2002, p. 45).

As divergências não se encerram aí, pois não é consenso o tempo de existência da comunidade. Para alguns seu surgimento é mais recente: “A Vila da Barca surgiu nos fins da década de 40” (FURTADO e SANTANA, 1974, p. 3). Versão improvável, uma vez que a reportagem do Jornal “O Estado do Pará” data do final do ano de 1941. Neste caso, se a manchete fora publicada em 1941, tudo indica, tal como aponta a minuciosa descrição feita pelo Jornal, que a Vila possui, pelo menos, mais de 70 anos.

Independente do ano de existência da comunidade, o certo é que, paulatinamente, pessoas e mais pessoas passaram a residir às proximidades de uma suposta barca. Esse amontoado de gente nesta parte da orla de Belém acabou por receber a denominação que a tornou conhecida em nossa cidade: Vila da Barca. Denominação que, segundo relato de alguns moradores mais antigos, é conhecida até mesmo no exterior. O que não é de duvidar, pois muitos missionários religiosos vindo de outros países e mesmo pesquisadores, com muita freqüência, visitam a Vila e levam para fora do país imagens desse lugar. Levam, na verdade, mas que imagens, relatos... mas o registro de um pedaço da vida e da história de pessoas que, embora no anonimato, querem “brilhar”, pois gente nasceu pra isso, conforme cantou Caetano Veloso, uma vez que...

Gente quer comer. Gente que ser feliz. Gente quer respirar ar pelo nariz [...] Gente lavando roupa, amassando pão. Gente pobre arrancando a vida, com a mão. No coração da mata gente quer Prosseguir. Quer durar,

quer crescer, gente quer luzir [...] Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome28.