• Nenhum resultado encontrado

Por volta de 1753 um engenheiro alemão, capitão Gaspar Geraldo de Gronsfeld, que pela cidade de Belém passava, juntamente com o arquiteto Antonio Landi, como membro de uma comissão responsável pela demarcação dos limites territoriais entre as colônias portuguesas e espanholas fez a seguinte afirmativa “Belém poderia ser uma cidade muita mais bela que a adriática Veneza” (apud ROQUE, p. 2000). Belém, no entanto, tem sua reconhecida beleza natural, suas habitações sofisticadas, seus logradouros suntuosos contrastando, cada vez mais, com locais inóspitos, sem as mínimas condições de habitação.

A comunidade da Vila da Barca é uma dessas localidades. Ela, inclusive, se assemelha, em certos aspectos, com a Veneza italiana, especialmente durante o período chuvoso que proporcionam a cheia dos rios de nossa região e encobre a área sobre a qual se ergueram suas palafitas. Todavia, suas palafitas contrastam com os luxuosos edifícios que rodeiam a localidade que ela ocupa. Contraste que se evidencia ainda mais quando comparada às pomposas edificações localizadas na “Doca”29.

A Vila esta situada, atualmente, em uma área de assentamento sub-normal habitacional no Bairro do Telégrafo, cidade de Belém. Sua população é estimada pela Prefeitura Municipal de Belém (2003) em 2330 habitantes, distribuída por 623 famílias, majoritariamente por indivíduos oriundos de diversas cidades do interior do Estado do Pará e de cidades de outras unidades federativas.

Possui uma privilegiada localização geográfica. O espaço que ocupa faz fronteira ora com a baía do Guajará ora com a terra firme. Encontra-se, praticamente, no centro da cidade

28 Letra da Música “Gente”, disponível em: http://caetano-veloso.letras.terra.com.br/letras/44729/. Acessado em 30 de novembro de 2006.

e, por isso, não pode ser considerada uma área periférica, o que é comprovado pelo mapa abaixo:

Figura 1 – Localização geográfica da Vila da Barca, Belém-PA. CODEM 2000 – adaptado por Coelho (apud MELO, 2002).

Desfrutar de tal posição não é, de forma alguma, premissa de regalias, ao contrário, uma vez que não goza de infraestrutura adequada, sendo as condições de saneamento extremamente precárias. As residências que abrigam esses moradores são do tipo palafitas, forma de habitação construída tendo como matéria-prima fundamental a madeira, alicerçadas sobre estacas em localidades, predominantemente, alagadas e semi-alagadas, tipo de habitação muito comum entre os ribeirinhos da Amazônia.

As ruas são as pontes em madeira30, que, castigadas por nosso rigoroso inverno, rapidamente, se deterioram, rapidez, todavia, não verificada nas reformas destas estivas, o que facilita a ocorrência de acidentes, especialmente entre as crianças. As ruas da Vila são assim batizadas: passagem Cametá, passagem Praiana e passagem Padre Julião. Três passagens que juntas formam um verdadeiro labirinto, conforme revela a ortofoto abaixo:

É neste “labirinto”, formado às proximidades de uma suposta barca, que pessoas humildes foram construindo suas residências e, assim, abrigando suas famílias. O número de jovens que habitam a Vila é bastante elevado quando comparado com a população adulta residente na área. Em época de desemprego estrutural esta é a camada social que, juntamente

30 De acordo com a PMB: “A circulação interna da Vila da Barca é feita através de estivas de madeira, com largura entre 0,80m e 1,20m sem guarda corpo, a uma altura do solo, que varia entre 0,50m a 5,00m. Entretanto, em relação a circulação do sistema de transporte público de passageiro, a Vila da Barca situa-se às proximidades de dois grandes corredores de tráfico de Belém (Av. Pedro Álvares Cabral e Rodovia Arthur Bernardes), com uma oferta de linhas bastante diversificada” (2004, s/p).

Figura 2: Fonte: Companhia de Desenvolvimento Metropolitano de Belém (1998)

com as camadas sociais mais envelhecidas, mais padece com a disputada inserção no mercado de trabalho31, conforme aponta Antunes (1999). A maioria abandona os estudos precocemente, o que, por sua vez, reduz ainda mais as possibilidades de conseguirem um emprego qualquer, tornando-os dependentes da pequena renda dos seus responsáveis que, invariavelmente, dá apenas para uma precária alimentação. São poucos os que, mesmo tendo concluído a escolarização básica, conseguem algum emprego.

A população adulta, além de padecer com a falta de um emprego que garanta o sustento da família, é precariamente escolarizada e, por isso, quando arrumam alguma ocupação remunerada, geralmente, esta não ultrapassa 1 (um) salário mínimo. Quase todas as famílias são numerosas, com oito, dez e até quinze pessoas se espremendo em pequenos cômodos. Em algumas moradias convivem pais, filhos, netos e até bisnetos que tem de dividir a escassa comida32. A renda per capta desta população é baixíssima, dificultando a reprodução da vida com dignidade33.

Por estarem próximos ao rio, os moradores cultivam com este uma relação muito íntima. Muitas vezes o rio funciona como um importante atenuante do sofrimento dessas famílias, pois se converte em espaço de lazer desses “ribeirinhos”, além de auxiliar na alimentação das famílias através da pesca de algumas espécies de peixes da região. Fato que

31 A análise da PMB indica que: “Quando se observa a situação de toda população pesquisada, verifica-se que 41,52% são dependentes dos pais e/ ou responsáveis. Os desempregados representam 22,50% da população; 7,43% sem carteira assinada; 05,75% estão no mercado informal e 5,58% trabalham como autônomos, juntos os desempregados, sem carteira assinada, mercado informal e autônomo soma 41,26% da população. Os que trabalham com carteira assinada representam 8,29% e os estatutários 0,90%; os aposentados e pensionistas 5,82 %” (2004, s/p).

32 De acordo com informações da PMB: “O Levantamento Sócio-Econômico registrou a presença de aproximadamente 623 famílias residentes nas 503 benfeitorias cadastradas. Na maior parte dos domicílios, 65,17%, reside apenas 01 família; em 21,51% vivem 02 famílias; em 8,67% 03 famílias e 3,85% com 04 famílias” (2004, s/p).

33 Conforme constatação da PMB: “A renda per capta da população é extremamente baixa, sendo que 62,73% não possuem renda; 19,54% recebem de 01 a 02 SM; 8,33% menos de 01 SM e 2,58% de 02 a 03 SM. Quase totalidade, 93,17%, possui renda per capta entre 0 e 03 SM. Apenas 1,07% tem renda de 04 a 05 SM e 0,43% superior 05 SM” (2004, s/p).

revela a pesca como um dos principais meios de subsistência. A relação como o rio é, portanto, muito familiar, uma vez que este fornece alimentos, “ensina” a nadar – vital para a sobrevivência destes moradores –, serve como meio de transporte, espaço gratuito para o lazer...

A localização da Vila da Barca, próxima à orla e importantes vias de circulação viária, além de facilitar a chegada de produtos vindo das ilhas, possibilita o trabalho na Feira do Ver- o-Peso, ocupação de inúmeras pessoas, especialmente no período da safra do açaí, produto, por “ter o dom de ser muito, onde muitos não têm nada”34, é bastante consumido e apreciado pelos comunitários.

Esta realidade tem sido objeto de diversas pesquisas de cunho acadêmico, intervenções governamentais – Projeto Morando Melhor (1999), Programa Bolsa Escola (1997-2004), Programa Família Saudável (1999-2006), entre outros –, além disso, inspirou produções artísticas e culturais, poemas etc, o que rendeu uma bibliografia considerável produzida sobre a localidade em analise. Diante deste contexto é pertinente o aprofundamento da história de vida da comunidade, o que não fora priorizado pela maioria dos recentes trabalhos outrora produzidos que tinham como lócus a Vila.

Há que se ressaltar, no entanto, que esta comunidade guarda importantes relatos de sua história e de sua gente. São vozes silenciadas pelo caráter autoritário que marca a sociedade capitalista, mas são vozes que não se calaram completamente diante dos sofrimentos que a sociedade industrial engendrou, seja pela inconsistente formação escolar, seja pelo intenso processo de manipulação e doutrinação forjado pelas elites economicamente dominantes na contemporaneidade (MARCUSE, 1978).

Em um local em que as condições objetivas são tão precárias, as cenas de violência acabam sendo algo corriqueiro. Estas, ao fazerem parte do cotidiano dos moradores,

penalizam a vida dos comunitários. Muitos, inclusive, já sucumbiram, violentamente, seja pelas mãos da polícia, seja por algum desentendimento entre os mesmos ou mesmo por envolvimento em gangues, que envolve, especialmente, os mais jovens. Cedo as crianças aprendem a reconhecer o cheiro, a forma e a cor das drogas, muitas logo são “estimuladas” a consumi-las, enquanto alguns lucram com a comercialização desta. Precocemente, também, são encarceradas e, logo, têm suas vidas destruídas, “encurtadas”.

Um contexto assim foi propício à germinação de importantes entidades comunitárias ligadas à defesa de direitos sociais básicos dos moradores. É o caso da Associação dos Moradores da Vila da Barca, do Centro Comunitário Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do Grupo de Homossexuais “Arco-íris”, além da presença de quatro entidades religiosas como a Capela de Nossa Senhora dos Navegantes, a Igreja do Evangelho Quadrangular, a Igreja Luterana e a Igreja Assembléia de Deus. Há, também, uma agremiação carnavalesca que há mais de quinze anos participa do Carnaval de Belém promovido pela PMB, que é a Agremiação Carnavalesca Mocidade Unida da Vila da Barca que conta com grande participação dos moradores.

Além disso, a dureza da vida não impediu que esta comunidade construísse formas para expressar seus pensamentos, suas emoções, sua arte, visto que são inúmeros os momentos em que estes comunitários encontram para “gritar” suas alegrias, suas dores, sua fé. Seja nos templos religiosos, nas entidades sociais organizadas, seja disputando o campeonato de futebol local ou jogando um bilhar os moradores se reúnem para dividir as tristezas e as alegrias da vida, assim como os problemas e as soluções para os mesmos. Uma forte evidencia de que a vida, mesmo onde é quase impossível com dignidade e decência viver, insiste em pulsar. Sinais de resistência, indícios de que, por mais difícil que seja, o capital encontrará dificuldades para silenciar os que são penalizados pela injustiça e desigualdade social.