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Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem

tentará sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1993b, p.114).

A atual configuração que o capitalismo assume se assemelha a um invencível gigante. A incrível e incontestável força que este gigante demonstra possuir tenta convencer, a todo custo, de que somos fracos e impotentes, de que nada pode ser feito. A forma como esta ideologia se dissemina objetiva persuadir os movimentos sociais antagônicos à dominação. Ao se propagar pelo tecido social colabora para que boa parte dos movimentos insurgentes silencie. Os que são convencidos de que são impotentes negam sua própria condição de sujeito que, mesmo enfraquecida, ainda demonstra algum sinal de vida ou, quem sabe, de ressurreição.

Mas a verdade, como afirmara Horkheimer (1975), ainda se resguarda nas minorias, esperando o dia em que poderá emergir triunfante. Mas é esse dia que o gigante tenta, de todas as formas, impedir que amanheça. São essas minorias que, mesmo assistindo a risada estrondosa dos gigantes, labutam para que esses se destrocem.175

Entre a grandiosidade sublime e muito humana, comum todos os idealistas e que está sempre pronta a pisotear desumanamente tudo o que é pequeno enquanto mera existência, e a grosseira ostentação dos opressores burgueses, existe a mais profunda concordância. É próprio da dignidade dos gigantes rir estrondosamente, explodir, destroçar (ADORNO, 1993, p. 76).

Embora esteja sufocado, ainda é possível ao indivíduo empreender algum tipo de resistência aos imperativos que proclamam como sendo eterna a situação de servidão em que se encontra, pois, nas sociedades altamente industrializadas, mais do que nunca, é necessário construirmos formas de reagir e resistir à dominação imposta pela lógica do

175 É importante destacar que mesmo tendo sido apregoado o “fim da história”, das utopias, do trabalho enquanto ontologia e mesmo das classes sociais diversos movimentos insurgentes ainda existentes indicam a insatisfação com o atual modelo econômico. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, as manifestações, em todo mundo, contrárias à globalização, os Fóruns Sociais realizados... são exemplos de gestos históricos que apontam para alternativas “além do capital”.

capital, dominação esta que se realiza pela crescente vontade da acumulação e do lucro. Essa vontade, inerente a atual forma de organização societal vigente, acaba por produzir paradoxos que acabam sendo integrados à economia mundial. No entender de McLAREN (2000, p. 119-120):

Os pobres que vivem entre nós, dormindo em caixas de papelão e comendo o que encontram no lixo, fazem parte da economia mundial tanto quanto o Monte Olímpio de Los Angeles e o novo centro Getty, que se destaca no alto da colina com vista para o luxuoso bairro Bel Air.

Os pobres, “ao serem incorporados à economia mundial”, incriminam a organização social capitalista e indicam a necessidade da resistência. A proposição da necessidade da resistência explicita-se dada a exigência – posta pela lógica que rege as organizações sociais assentadas no capital – do adormecimento das consciências. Trata-se, como coloca Matos (1989, p. 21), de incentivar – através desse esquecimento – a amnésia, para impedir o exercício da autonomia, encorajando o da heteronomia.

A lógica imposta pela sociedade administrada e presidida pela racionalidade do capital – uma racionalidade tecnológica – incentiva a amnésia social, destruindo a memória. Assim, não se medem esforços para, aniquilando – no limite do (im)possível – a possibilidade do pensar autônomo, poder reduzir, progressivamente, os direitos sociais dos trabalhadores, conquistados ao longo de séculos de lutas que, em diferentes esferas, caracterizam a resistência.

É forjada, assim, a possibilidade de dissipar de nossa memória o antagonismo social e político entre as classes sociais, através da massificação da cultura. Esta destrói a possibilidade da conscientização acerca da historicidade que caracteriza a relação entre os homens, bem como entre estes e a natureza e, além disso, subtrai a capacidade subjetiva dos grupos potencialmente descontentes com a ordem instituída.

Qualquer processo emancipatório, nestas condições, fica obliterado. Sobretudo se o acesso à educação permanecer um privilégio de um reduzido extrato social. Convertida em mercadoria, a educação afasta-se de qualquer propósito emancipatório, de qualquer possibilidade de produzir sujeitos autônomos e críticos. Enquanto privilégio condena os desprivilegiados ao insucesso na escola e, provavelmente, na vida.

Quando eu estava na sexta (série) meus colegas que não repetiam já estavam na oitava. Sentia vergonha daquilo. O pior é que não passaria de novo e ficaria na sexta. Aí no ano seguinte eles estavam no primeiro ano e eu engatado na sexta. Era humilhante [...]. Sentia que as portas iam se fechando. Quando via o meu futuro sabia que seria difícil recuperar o tempo perdido, já sabia que encontrar emprego seria difícil [...]. Nessa vida é assim: uns tem muito e outros quase nada. Eu estou entre os que têm quase nada... (Entrevistado I).

Na condição de mercadoria, a educação converte-se, também, em empecilho àqueles que “tem quase nada” e necessitam desta para aspirarem novas possibilidades. Uma outra educação, distante de sua condição mercantil, poderia desempenhar importante papel para a construção de uma sociedade realmente igualitária e democrática. Encontramos aí a possibilidade de pensar a educação como antídoto a este processo de embrutecimento imanente à lógica do capital.

Através da cultura e da educação podem ser criadas as condições para o fortalecimento do ego, da consciência e, portanto, da autonomia do indivíduo, num processo que caminha na contramão do status quo, hoje determinado pelo capital. Uma educação que permita ao espírito se rebelar contra a autoridade, contra os mecanismos que reforçam a condição heterônoma dos indivíduos. Esta preocupação já havia sido demonstrada por Nietzsche, por exemplo, muito antes dos frankfurtianos:

Para tornar-se espírito livre, é preciso rebelar-se contra toda autoridade. Pais, amigos, mestres, príncipes, educadores, tornam-se facilmente ‘diretores de consciência’. Impõem normas de comportamentos e maneiras de pensar. Vêem em cada ser a oportunidade de dispor de um novo objeto. O Estado procura moldar os que se acham sob sua tutela, incutindo- lhes o orgulho da pátria, o respeito à bandeira, a educação cívica. O partido político tenta formar os que a eles se filiam, infundindo-lhes a disciplina

partidária, os deveres do militante, a educação política. A Igreja busca preparar os que a ela se agregam, impondo-lhes a aceitação dos dogmas, os mistérios da fé, a educação religiosa. Os bons cidadãos, os partidários incondicionais e os fiéis convictos limitam-se a cumprir ordens, executar tarefas, submeter-se a ditames. Os subversivos são condenados pelo Estado ao ostracismo, os dissidentes, expulsos do partido, os hereges, excomungados pela Igreja. Assim como os pais não toleram que os filhos tenham idéias e preceitos diferentes dos seus, o Estado, o partido político e a Igreja não admitem que os cidadãos, os partidários e os fiéis discordem de seus preceitos e idéias. A educação – seja ela familiar, cívica, política ou religiosa – aparece como um processo para tornar o educando semelhante ao educador. Aliás, esse é o princípio de toda a vida gregária: impedir as singularidades, abolir as diferenças (MARTON, 1984: 48-9. Os grifos são meus). O único direito do homem. Quem se distancia da tradição é vítima da execução; quem permanece na tradição é seu escravo. Em ambos os casos, caminha-se para a própria perda (NIETZSCHE, Humano, demasiado Humano, § 552, apud. MARTON, op. cit.:49).

Mas a educação, por afastar-se dos propósitos nietzscheanos, vem cumprindo papel basilar para que as consciências potencialmente antagônicas à reprodução do capital permaneçam adormecidas, o que enfraquece seu potencial emancipador. Konder (1999, p. 119), analisando o pensamento de Benjamin, entendia que:

Benjamim constatava, melancolicamente, que não bastava protestar: era preciso agir, tomar iniciativas, ir à luta. O capitalismo nos sufoca, nos destrói, cabe a nos – sem ilusões – mobilizarmos contra ele. Se não nos mobilizarmos para superá-lo, estamos perdidos, por que – advertia nosso autor – “o capitalismo não vai morrer de morte natural”.

O melancólico, para Benjamin (1993a), ao contrário do que postulam as teses freudianas, é capaz de construir um saber que lhe permita compreender o mundo. Rouanet (1990), ao analisar esta situação, assim reflete acerca do melancólico bejaminiano176:

176 De acordo com Konder (1999, p. 117): “melancolia: a palavra vem do grego, melankholia, combinação de

melanos (negro) e kholé (bilis). Designava um estado patológico do fígado, que produzia bílis escura e acarretava depressão, mal-estar, irritação. Podia, mesmo, levar à morte. Etimologicamente, o melancólico é o

atrabiliário, palavra de origem latina que significa exatamente aquele cujo organismo está tomado pela bílis

negra (atra quer dizer “preto” em latim). No Renascimento, o aspecto que vai predominando na figura do melancólico é menos o da irritação que o da depressão; o homem da bílis negra já não é tanto o que explode em invectivas contra a humanidade à sua volta, mas o que se recolhe à sua tristeza, evitando o convívio com os demais [...]. A arte barroca abriu caminho para uma diferenciação maior entre o ‘melancólico’ e o ‘atrabiliário’. Para a sensibilidade dos homens da nova época, certa tristeza decorria, inevitavelmente, da tomada de consciência, por parte do indivíduo, dos estreitos limites de suas forças e da profundidade de suas incertezas. O romantismo, na esteira do barroco, ‘heroicizou’ o ‘melancólico’. A melancolia passou a ser assumida como coroamento da orgulhosa independência de um espírito capaz de reconhecer sua solidão. E Benjamin era, sem dúvida, profundamente marcado pelo romantismo. As raízes românticas fortaleciam em Benjamin a disposição para aceitar a melancolia de seu temperamento, que veio crescendo nele ao longo de uma trajetória sofrida,

[...] Se mergulha no objeto e se perde nele, é para compreendê-lo, e através dele compreender o mundo. Rumina sobre a morte, para entender a essência da vida; anima-se nas ruínas, para perceber a natureza do mundo como ruína. É dando as costas ao mundo, e imergindo, monadologicamente, num fragmento de natureza – tibia ou pedra – que percebe a história como natureza, como facies hippocratia, como síntese de tudo o que é “prematuro, sofrido e malogrado”. Sua lealdade para com as coisas é de fato tributária de vontade de saber: a melancolia trai o mundo por causa do saber (p. 42).

Neste caso, o melancólico, por encontrar dificuldades em esquecer, faz uso de sua capacidade de compreender o mundo para resguardar a utopia contra os ataques favoráveis a que tudo deva ser esquecido. O indivíduo, ao “esquecer e perdoar” tudo (ADORNO, 1995a), acaba por perenizar a injustiça e o sofrimento, permitindo constantemente o retorno de ambos. Os fracassados da escola, que deixam as cicatrizes desbotar, perdoam e esquecem, facilmente, os motivos que ensejaram o fracasso.

Não sei dizer o que ocorreu. Só sei que não deu pra passar. Na verdade, muita coisa acontecia e acho que tudo aquilo não me deixava estudar direito. Mas não sei dizer, assim, sabe, como foi mesmo. Prefiro esquecer esse negócio. Já passou, já deixei pra lá. Não deu, não deu. Mas foi uma das piores coisas da minha vida. O dia de receber o boletim... vi meus colegas que passaram alegres e eu mal, muito mal mesmo. Mas já passou, prefiro esquecer as coisas tristes e lembrar das coisas alegres. É melhor assim, né? (Entrevistado II).

Os rastros e os restos das condições em que o fracasso escolar desse indivíduo fora produzido caminham para o desaparecimento, pois “é melhor esquecer esse negócio”.O esquecimento apaga os rastros, enfraquecendo, desse modo, a possibilidade de recordar, de lembrar. Sendo assim, a destruição dos rastros elimina as provas do que ocorreu. Estratégia utilizada, por exemplo, pelos nazistas quando, sabendo da inevitabilidade da derrota alemão na segunda guerra, trataram de destruir os rastros dos seus horrores. De acordo com Gagnebin (2002, p. 131):

pontilhada de experiências dolorosas. Ao mesmo tempo, contudo, essa aceitação de sua própria melancolia se desdobrava numa firme recusa daquilo que ele mesmo chamou, depreciativamente, de ‘melancolia de esquerda’, em sua crítica a Erich Kästner e outros ”.

Em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi (1989) insiste na vontade explícita de aniquilação dos rastros pelos nazistas. Quando se tornou claro, depois da Batalha de Estalingrado, que o Reich alemão não seria o vencedor, que ele não seria, portanto, “o senhor da vontade futura”, diz Primo Levi, então deu-se início à destruição dos rastros da própria destruição.

Embora pudessem destruir parte dos rastros, sobejou o resto que ficara guardado na memória dos sobreviventes das experiências tétricas do horror. Experiências essas que, por um lado, provocam dor, por outro, fortalecem a capacidade de lembrar que pode ser empreendida pelo indivíduo; um tipo de lembrar que impede que o esquecimento, inclusive dos insucessos da vida, da escola ou o que “restou” de lembrança disso.

Eliminar os rastros, aniquilar qualquer remota possibilidade de lembrança implica, em alguns casos, inclusive, na necessidade de assassínio. E não apenas a morte física, pois esta pode deixar rastros, mas a espiritual. Desta forma, os que praticam qualquer forma de assassinato impedem que, por meio dos rastros, suas ações sejam lembradas ora ou outra pelos que não esqueceram; e esses são os que ainda conseguem narrar alguma coisa.

A capacidade de narrar, embora em vias de extinção, diria Benjamin, ainda pode servir como mecanismo de denúncia, mesmo que a narração possa trazer a tona dores que se julgavam esquecidas. A forma melancólica como Benjamin muitas vezes escreve se justifica por conta da possibilidade do desaparecimento da capacidade de narrar. Esta capacidade, ameaçada de extinção, vai sendo, cada vez mais, substituída por uma outra forma de comunicação que “[...] se antepõe à narrativa de um jeito não menos estranho, mas muito mais ameaçador do que o romance - ao qual, de resto, leva, por sua vez, a uma crise. Esta nova forma comunicação é a informação” (BENJAMIN, 1983, p. 60).

Benjamin, portanto, entendendo que o desaparecimento da arte de narrar era iminente, percebia que o empobrecimento da experiência177 dos indivíduos atuava contra a narração. Talvez por isso Benjamin (1993c, p. 198) tenha declarado que:

[...] a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia inalienável. A faculdade de intercambiar experiências.

Neste caso, a atual configuração do capitalismo é propícia para que, cada vez menos, as pessoas possam “intercambiar experiências”. Desse modo, as massas, em virtude da não- democratização do acesso à escola, acabam perdendo uma importante oportunidade para o intercâmbio de experiências. O que narrar, o que lembrar, se minhas experiências de vida “estão em baixa”? Algo que Benjamin (1993c, p. 198) entendia ser óbvio para justificar a presença deste fenômeno em nossa sociedade:

Uma das causas deste fenômeno é óbvia: as ações de experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. [...] a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores.

Sendo assim, a “pobreza de experiência” dos indivíduos acaba favorecendo que a memória sucumba e adoeça. O pior ocorre quando os homens almejam se livrar de qualquer experiência. Disse Benjamin (1993c, p. 118):

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso.

Que experiências recordo e que ainda podem ser narradas? As cicatrizes, testemunhas tácitas de parte de minhas experiências, podem ainda ser lembradas? Lembro das dores que

177 Recentemente, Santos (2002), teórico pós-moderno de oposição, realizou uma profunda análise acerca da necessidade de não desperdiçarmos experiências, em face da “transição paradigmática” que vivenciamos e da crise da “teoria crítica moderna”, de acordo com sua forma de entender o presente momento. Embora possuo discordâncias teóricas com parte das idéias defendidas pelo referido autor nesta obra, entendo serem profícuas as contribuições que oferece nesta, mesmo me distanciando muito de várias de suas posições. Sobretudo, por entender que não há um “desperdício de experiências”, mas, ao contrário, uma “pobreza” desta.

provocaram as cicatrizes? O rastro não é intencional e por não ser assim oferece, a quem conseguir decifrá-lo, a possibilidade de descobrir o que aproximadamente ocorreu, trazendo a tona as cicatrizes e as dores que acompanham o existir dos indivíduos. Dessa forma, o rastro denuncia o que poderia ter acontecido, especialmente quando ele é decifrado pelos que não são ouvidos pela história oficial.

Não saberia contar como foi isso. Só sei... Foi, assim, um ano difícil. Estava na terceira (série), mas antes passei sempre apertado... e, de novo, ia pra recuperar, mas dessa vez não passei. Mas nunca esqueci do dia do resultado. Dessa vez não fiquei nem em recuperação. Foi foda. Fiquei puto da vida. Poxa, já tinha começado tarde e ainda ia perder mais um ano. Não queria mais estudar. Só lembro disso. Mas hoje, te ouvindo falar dessas coisas, começo a lembrar de algumas coisas que ocorreram. Hoje, compreendo o que ocorreu de outro jeito. Vejo que não fui só eu o culpado... ah, tanta coisa aconteceu, mas não quero dizer que a culpa foi da professora. Foi tudo junto. Mas a culpa não foi só minha. Antigamente pensava assim, hoje não (Entrevistado II).

A preocupação com o passado é, ao mesmo tempo, uma preocupação com os “sobreviventes”178 do presente. Relembrar, aqui, configura-se, também, em um gesto de amor pelos indivíduos que, diariamente, ainda têm que se “acostumar” com o passado ao relembrar os seus horrores. “Sobreviver” após o “primeiro” fracasso escolar não constitui tarefa simples e, muitas vezes, provocam a desistência e o abandono da escola. As cicatrizes, neste caso, ainda indicam que a dor e a tristeza pela não obtenção de êxito escolar permaneceram ali, possibilitando que seja recordado. Daí a necessidade histórica de não “abrirmos mão de nossas lembranças” (ADORNO, apud RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998). Necessidade esta

fundamental para “intercambiarmos experiências” e, ao mesmo tempo, fortalecermos uma memória capaz de contar uma outra história.

Neste caso, até que ponto a educação pode – mesmo na atual configuração que o capitalismo assumiu e que encontra na escola importante mecanismo para a reprodução social – potencializar o intercâmbio de experiências? Sendo assim, penso que não é qualquer educação que, tendencialmente, atue a favor do revigoramento da experiência.

Mas, mesmo assim, entendo que uma educação que objetive contribuir para a emancipação e para a resistência tem que, pelo menos, fortalecer a capacidade que as pessoas possuem para intercambiar experiências e, deste modo, formar narradores que saibam denunciar, criticamente, os imperativos que perenizam o horror. Entre esses horrores: o fracasso escolar, a negação, a rejeição, a expulsão e a exclusão de um determinado segmento social da escola.

Me senti expulso da escola todo ano que repetia. Sentia que escola não é pra pobre. Muitos pobres igual a mim também não passavam, mas os bacanas passavam. Assim pobre vai ser pobre a vida inteira. Ainda mais hoje que pra qualquer trabalho tem que ter o segundo grau. Ainda bem que veio a Bolsa e obrigou todo mundo estudar. Foi quando voltei a estudar, pois pela minha mãe era melhor trabalhar. Mas antes da Bolsa era bem difícil. Com ela conseguir sobreviver na escola e terminar o primeiro grau e o segundo grau (Entrevistado I).

Esta forma de horror e as cicatrizes que produz não podem ser “esquecidas”. Os rastros provocados pela dor dos que fracassam na escola indicam que os sinais do ferimento necessitam ser lembrados. Indicam e apontam os restos... restos da resistência que, apesar da dureza da vida, insiste em pulsar. Sinais de uma denúncia e de um inconformismo que lateja nas feridas ainda não cicatrizadas, mas que, futuramente, tornar-se-ão, com o tempo,

cicatrizes. É necessário se opor e pensarmos alternativas, possibilidades de uma nova sociedade e, também de uma nova educação.

Neste caso, querer uma educação além da possível atualmente. Talvez uma educação utópica, que ainda não exista, mas que pode vir a existir. A “não-participação”, a resistência