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5.3 O fracasso escolar: retratos de exclusão e resistência MEMÓRIA

5.3.4. Retratos da resistência

O fracasso escolar é, sem dúvida, um dos mais graves problemas com o qual a realidade educacional brasileira vem convivendo há muitos anos. Sabe-se que tal ocorrência se evidencia praticamente em todos os

níveis de ensino do País. Todavia, incide com maior freqüência nos primeiros anos da escolarização (COLLARES, p, 1).

O processo de escolarização das elites é bastante diferenciado do das camadas populares. A análise efetuada por Almeida e Nogueira (2002) demonstra, exemplarmente, como se dá esse processo entre as elites e permite entender o quanto elas conseguem, por meio da escolarização privilegiada, reproduzir-se em condições muito melhores dos que aqueles que não possuem a mesma prerrogativa. Algo muito diferente ocorre com os indivíduos pertencentes às camadas populacionais mais empobrecidas.

Mas se, por um lado, a forma como está estruturada nossa sociedade permite a alguns condições satisfatórias para uma trajetória escolar de sucesso e realização, por outro, inviabiliza este mesmo privilégio aos que não dispõem dos recursos materias necessários para pelo menos permanecerem na escola e, assim sendo, completarem o processo de escolarização obrigatório e garantido constitucionalmente, o que evidencia a existência de uma brutal desigualdade de oportunidades.

Embora a universalização do acesso a escola em nosso país esteja próximo de se concretizar – o que representa um expressivo avanço se levarmos em consideração que, de acordo com a contagem da população realizada pelo IBGE (1997), mais de oito milhões de crianças e jovens de sete a quatorze anos, em 1996, não freqüentavam a escola, embora se apregoasse que ainda na década de 1980 teríamos assegurada a universalização da educação básica – este processo ainda é desigual, pois o acesso tem que vir acompanhado de melhores condições de permanência no sistema. De acordo com o entendimento de Haddad e Graciano (2004, p. 1):

Nas últimas décadas, o Brasil ampliou consideravelmente a possibilidade de acesso à educação básica. Entre 1920 e 2000, enquanto a população cresceu 5,6 vezes, o número de crianças matriculadas aumentou 6,5 vezes, inicialmente nos quatro anos do antigo primário e posteriormente nos oito anos do atual ensino fundamental.Esse crescimento se deu prioritariamente pela ampliação de vagas em escolas públicas municipais e estaduais, que dividem entre si a responsabilidade sobre a educação básica.

A participação do ensino privado é minoritária em todos os níveis, não passando de 10% em média. No entanto, essa realidade se inverte no superior, que registra 69,78% das matrículas na iniciativa privada.

Mas, mesmo quando as condições são precárias, os grupos espoliados pelo capital conseguem construir formas de resistência que, de algum modo, permitem enfrentar as adversidades que encontram para acessar a escola e nela permanecer com sucesso. E essas formas de resistências acompanham toda a vida escolar dos indivíduos pertencentes às camadas populares.

Até no Ensino Superior, aonde já chegam aqueles que tiveram determinadas condições que possibilitaram o ingresso neste nível de ensino, os alunos provenientes das camadas mais empobrecidas enfrentam dificuldades que muitas vezes provocam evasão e desistência do curso superior.

Mas, em meu entender, essas dificuldades são ainda maiores no início da trajetória escolar dos segmentos empobrecidos, uma vez que, além da difícil permanência, ingressar, desde cedo, na escola não constitui tarefa fácil para as camadas populares, o que acaba por repercutir em toda a trajetória escolar desses indivíduos.

Desde cedo, os responsáveis pelas crianças encontram dificuldades para iniciar o processo de escolarização de seus dependentes, visto que encontrar uma vaga em alguma escola pública não é nada fácil – pois, notoriamente, as unidades de educação infantil da rede pública não atendem satisfatoriamente a clientela mais pobre nem em quantidade, nem em qualidade.

Isso contribui, enormemente, para que aqueles que não forem atendidos, ao ingressarem na primeira série do Ensino Fundamental, encontrem muito mais dificuldades para aprender a ler e a escrever dos que aqueles que puderam freqüentar a educação infantil no período apropriado. E essa situação constitui um forte empecilho para uma trajetória escolar de sucesso.

De acordo com a fala de um dos depoentes, ao referir-se a esta etapa de seu processo de escolarização, atribui ao fato de não ter acesso, desde cedo, a educação as dificuldades que possuía para conseguir aprender aquilo que a professora ensinava, o que comprometia seu rendimento.

Não estudei desde cedo. Meus amigos da turma, todo mundo estudou desde cedo. Eu não estudei. Entrei direto na escola e a professora já queria que eu soubesse escrever meu nome. Como? Nem conhecia nem as letras direito. [...]. Sempre os outros sabiam mais do que eu. Acho que só aprendi a ler e escrever na terceira série. Nem sei como passava de ano. Acho que a professora tinha pena de mim e da mamãe que sempre ia lá com ela pra conversar. [...] Acho que se tivesse estudado esse negócio de educação infantil seria melhor. Mas não deu. E olha que minha mãe dizia que procurou vaga numa creche que funcionava aqui do lado de casa182. Mas nem lá não tinha vaga pra mim. E olha que eu morava do lado da escola. Ela procurou em outra e outra, mas também não conseguiu. Aí foi o jeito entrar de cara na escola (Entrevistado II).

Este entendimento é reforçado, também, na fala de um outro depoente que, freqüentou a aula apenas durante um mês, pois, segundo sua versão, sentia “vergonha” dos demais colegas que, naquele momento, já possuíam uma certa habilidade de leitura e escrita, superior a sua. Por isso, sentia-se desprezado por sua professora por encontrar dificuldades para acompanhar o ritmo da turma e, também, segundo ele, por ser “preto”, o que fazia que a professora não lhe desse a devida atenção.

Tinha vergonha. Todo mundo conseguia fazer suas atividades, menos eu. E a professora nem ligava pra mim. Acho que porque eu era preto e tem gente que não gosta de preto183. Me sentia muito mal. Dava vontade de

182 O depoente refere-se a uma Unidade de Educação Infantil desativada na primeira gestão do “Governo do Povo”, de Edmilson Rodrigues. Esta Unidade funcionava no Centro comunitário Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no interior da Vila, próximo a sua residência.

183 Convém destacar que Carvalho (2005, p. 1), baseada em estudo desenvolvido junto às turmas de 1ª a 4ª séries de uma escola pública no Município de São Paulo, analisa as diferenças entre a classificação racial dos alunos feita pelas professoras ou por eles mesmos. Desta forma: “O conceito de raça adotado é o de "raça social", isto é, um construto social baseado numa idéia biológica errônea, mas eficaz na manutenção de privilégios. Conclui que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na escola estudada ser maior quando se usa a classificação das professoras em lugar da auto-classificação decorre tanto de as professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de avaliarem com maior rigor crianças que percebem como negras, principalmente os meninos”. Além disso, “[...] não se trata de acusar as professoras de uma deliberada discriminação racial, mas de perceber como o racismo, presente na sociedade brasileira como um todo, penetra também nas relações escolares.

não ir mais pra escola. Aí sempre inventava uma dor pra mamãe [...]. Não cheguei a ir dois meses pra aula. Não suportava mais aquela situação. Aí parei de estudar. A mamãe insistiu, mas não fui mais. Aí ela me botou pra estudar particular, foi quando melhorei um pouco [...] mas só voltei pra escola no outro ano (Entrevistado II).

Estudos da sociologia da educação brasileira apresentam uma razoável bibliografia sobre as diferentes imbricações de classe social e desempenho escolar, especialmente as que se desenvolveram sobre a influência do pensamento de Pierre Bourdieu. Todavia, não se pode dizer o mesmo das desigualdades raciais. A obra de Patto (1996), já indicava o peso do racismo vigente em nossas escolas na produção do fracasso escolar, além da coletânea Rosemberg e Pinto (1987) que analisa esta temática.

Deste modo, conforme exposto pelo depoente anteriormente citado, a sua cor se constitui em um forte entrave para o seu sucesso na escola, situação já analisada nos estudos desenvolvidos por Carvalho (2004) ao investigar as razões que levam os meninos a fracassar na escola, especialmente os da raça negra.

Essa dificuldade encontrada logo que ingressam na escola possui ainda um outro aspecto nada favorável. Na escola outros obstáculos se somavam ao apresentado pelo depoente anterior. Por morarem em palafitas, os escolares da Vila sofriam, muitas vezes, com a marginalização e a discriminação percebida não só na escola como também em outros espaços sociais184.

Por ser considerada um local extremamente violento, pobre e “perigoso”, os moradores da Vila são discriminados e estigmatizados nos espaços sociais com os quais interagem. Independente de ser ambiente religioso, escolar, político ou espaço institucional os moradores carregam em si estigmas que acabam, muitas vezes, por prejudicar a socialização dos mesmos.

184 De acordo com Dias (1979) esse processo de discriminação social pode ocorrer no momento em que a criança ingressa na escola.