• Nenhum resultado encontrado

3.1. Um barroco onettiano?

3.1.2. Barroco como filigrana

Em 2012, Santiago Cevallos publicou El Barroco, marca (de agua) de la narrativa hispanoamericana49 com a intenção de revisar a nomenclatura proposta 40

anos antes por Severo Sarduy (2000) em "Barroco y Neobarroco", de 1972, e seguir defendendo a existência de um barroco hispano-americano no século XX. Ademais, e essa nos parece ser sua grande contribuição para os estudos sobre o tema, reivindica o estilo barroco como "marca de água" da narrativa hispano-americana para certos textos que não foram contemplados pela armação teórica disponível até o momento. Nessa perspectiva adotada por Cevallos (2012), Onetti aparece como escritor cuja literatura possui uma filigrana barroca, uma espécie de marca característica do que o crítico equatoriano chama de barroco latente.

Cevallos (2012) percebe, apoiado nos estudos da brasileira Irlemar Chiampi e do peruano Jorge Ortega, que a rubrica “neobarroco” é insuficiente para caracterizar e analisar a produção literária hispano-americana, pois o prefixo não dá conta de marcar as diferenças existentes entres as poéticas do século XX entre si, tampouco as hispano- americanas em relação à peninsular do século XVII, além de deixar à parte um número considerável de textos e autores cuja filiação barroca não se faz ver no nível do significante – que não é tão evidente na superfície do texto.

Como contraponto crítico, enseja a criação de quatro maneiras de apresentação do estilo barroco, a saber: a) barroco dominante, identificado com o barroco histórico espanhol; b) barroco manifiesto, relacionado à proposta de “manifesto barroco” de Alejo Carpentier (1987) em “Lo barroco y lo real maravilloso”50; c) barroco latente,

ligado à aparente não expressão do estilo, mas que carrega algum traço identificado como filigrana barroca; e por último d) barroco de manifiestación, referente ao projeto poético de José Lezama Lima.

49 Santiago Cevallos. El barroco, marca de agua de la narrativa hispanoamericana. Madrid: Editorial

Iberoamericana/Vervuet, 2012. Livro digital.

O autor entende que a literatura de Onetti faz parte do grupo de obras/autores classificado como barroco latente, “un barroco no visible a primera vista” (CEVALLOS, 2012), porque sua filiação à estética barroca não seria consciente, mas gestada no interior da tradição, diluída, mas presente, desde os textos coloniais: primeiramente como textos oficiais que se apropriavam dos mecanismos barrocos para descrever a nova terra de acordo com os preceitos de representação do renascimento; e depois como um traço distintivo, gradualmente demudado numa marca de água, nem patente nem escondido, “desplazamiento y transformación, (re)construcción de lo precedente” (CEVALLOS, 2012), como estratégia de busca de um lugar frente aos textos formadores da cultura – impostos e colonizadores – para os quais se voltará por meio da citação e outras manipulações textuais.

Para o autor, a filigrana barroca que caracteriza os textos do tipo barroco latente se apresenta de duas maneiras: “el uno tiene que ver con la idea de la letra ambigua, desplazada que, como se había visto, estaría en el origen del texto y el Barroco hispanoamericanos. El otro tiene que ver con la idea del Barroco en su calidad de significante – Grundsprache alucinatorio – que esconde su contenido.” (CEVALLOS, 2012, grifos nossos)

Cevallos, como dissemos anteriormente, se baseia nas considerações do estudioso peruano Jorge Ortega acerca do discurso barroco desde a época colonial, cuja produtividade se dá na percepção desse discurso como um movimento de duplo deslocamento: a princípio, um movimento mesmo espacial – o discurso cultural que vem da Europa para a América - que, posteriormente, se converte numa postulação da diferença:

[…] habla Lezama de ‘contraconquista’: el museo de los modelos es subvertido por la disfuncionalidad del barroco. […] el barroco es en Hispanoamérica no un espacio cerrado sobre sí mismo sino uno abierto sobre la textura cultural. […] un trazado interdiscursivo, que lo convierte en el modelo latente o en el modelo alterno siempre presente. […] es una textura sincrónica hecha de operativos formales y disformales, de acumulaciones autorreferenciales, de series que intercambian sus signos y funciones sígnicas para subvertir las representaciones codificadas y abrir un escenario restitutivo del diálogo. (ORTEGA apud CEVALLOS, 2012, grifos do autor)

A própria ideia de marca de água – que acaba por coincidir com a postulação de modelo latente de Ortega (1990) – Cevallos a retira do livro Lautréamont austral, escrito por Leyla Perrone-Moisés e Emir Rodríguez Monegal (2014) a respeito da descoberta que fizeram da origem uruguaia do poeta francês e de seu contato com

manuais de retórica espanhóis que detratavam as construções barrocas de Góngora e Quevedo. Segundo os autores, as objeções ao estilo barroco presentes nos manuais tiveram efeito inverso na obra de Isidore Ducasse e, o que deveria haver sido rechaçado, foi incorporando-se, como filigrana, em sua escritura. De acordo com Rodríguez Monegal, Lautréamont (“L’autre à Mont” – pela leitura lacaniana de Sarduy incorporada no estudo) foi preterido em sua época e tachado de estranho, exagerado, empolado para o gosto da retórica classicista francesa, mas resgatado, nos anos 1920, pelos surrealistas franceses com aval dos vanguardistas espanhóis. Para Rodríguez Monegal e Perrone-Moisés (2014, p. 91), o Conde de Lautréamont é uma ponte entre o estilo barroco - sempre ultrajado e domado pela retórica clássica – e a modernidade “como a invisível filigrana que mostra a origem do papel, o barroco certifica a linhagem indelével à qual pertencem [...] os escritores [...]” desse momento estético.

É nessa qualidade de filigrana barroca que Cevallos (2012) enxerga, nos romances El pozo (1939) e La vida breve (1950), o traço melancólico da busca pelo objeto perdido, a partir do aporte psicanalítico de Freud. Além disso, há a relação com os passos da criação artística/alegórica que o autor equatoriano vê em Walter Benjamin como operação fantasmática, para analisar La vida breve e Para una tumba sin nombre (1954) – na esteira da leitura que Giorgio Agamben faz do filósofo alemão:

[...] la problemática de la melancolía como filigrana barroca de La

vida breve revela ante todo la estructura del proceso creativo que

sería al mismo tiempo, siguiendo a Agamben, la estructura del proceso de creación cultural. Es decir, que la topología descubierta en la novela bajo la contraluz de la melancolía y el Barroco se podría revelar en cierto sentido como una topología cultural.

Cevallos (2012) trará à cena crítica da obra onettiana questões referentes à falta e à perda, segundo a psicanálise freudiana, que se ligam ao processo de escrita enquanto busca de uma origem (Benjamin) e do que se perdeu. Assim, sua discussão se encaminha seguindo os passos de uma coincidência temática entre obras do barroco e as de Onetti, por um lado, e, por outro, na esteira de uma aproximação entre as atitudes de Benjamin de olhar para a obra e para a realidade na qual se insere a produção cultural.

Há diferenças entre os estudos de Cevallos (2012) e Gamerro (2010) indicadas pelos caminhos metodológicos seguidos e pelos resultados aos quais chegaram. Mesmo assim, ambas as pesquisas levam em consideração a existência de um tipo de barroco que se manifesta especialmente nos textos narrativos, chamado de ficción barroca pelo argentino e, no caso da expressão, barroco latente pelo equatoriano. A partir da leitura

empreendida por Cevallos (2012), apreende-se que é na prosa de ficção que se dá a marca de água barroca pela seleção de textos rubricados a partir do barroco latente: a prosa do equatoriano Pablo Palacios, os contos do argentino Jorge Luis Borges e romances do uruguaio Juan Carlos Onetti, ao passo que o barroco como manifestación se dá na escrita poética e particular do cubano José Lezama Lima.

A prosa barroca dos escritores analisados por Cevallos (2012) na qual ele detecta a marca d’água funcionaria como traço de uma estética herdada dos primeiros escritos sobre a colonização e sua posterior arraigo como estilo, e não, como acredita Gamerro, de uma possível tradição cervantina.

Parece-nos mais produtivo que escolher uma das leituras e prescindir da outra, tentar relacioná-las na medida em que não se contradizem e, em diálogo, potencializem a relação que se nos mostra possível entre a noção de barroco latente - como filigrana e traço distintivo de certas narrativas cuja manifestação não se dá menos no nível da frase que das estruturas narrativas e nas associações temáticas – e o conceito de ficção barroca. Nossa hipótese é a de que a ideia de um estilo barroco latente que vem da cultura hispânica transplantada à América não dialoga diretamente com o contexto da escrita e da produção ficcional de Onetti, mas o faz a noção de um suposto barroco latente que remonta a uma tradição constelar, como quis Haroldo de Campos (1975) com sua versão própria do neobarroco ao unir, sob a vontade de uma obra aberta, as poéticas ‘transnacionais’ de Pound, Joyce, Mallarmé e Cummings. Assim, associar a filigrana barroca como um dos traço das ficções barrocas gamerrianas permite designar Cervantes como origem possível do romance moderno e, portanto, precursor de Onetti – segundo afirma o próprio escritor -; permite, ademais, ressignificar a produção do autor uruguaio a partir de um elemento já incorporado em sua concepção de arte: seu paideuma não foi construído pela sucessão geracional que conformou a tradição de seu próprio país, mas na medida em que seus interesses enquanto leitor-escritor encontravam precursores. Nesse sentido, a feitura de Cuando ya no importe não apenas se dá com base nessas relações de leitura-diálogo-criação, como também celebra entusiasticamente o procedimento. Onetti elege o próprio romance e os textos com os quais conversa como referência, ou seja, a ação da dobra barroca deleuziana por meio da qual o texto onettiano se voltaria sobre si mesmo é construída estruturalmente pelos encaixes narrativos, e também no nível do conteúdo ao tematizar a subjetividade de Carr leitor-narrador-escritor. Numa espécie de espiral – porque circular ao mesmo tempo em

que se aprofunda pelo mise-en-abyme –, o narrador-escritor Carr engendra o texto que lhe dará origem.