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3.2. O problema da representação artística

3.2.3. Representação da representação

Não é exclusividade do século XX tematizar, na arte, a própria arte. Isso nos lembra Michel Foucault (2007) em As palavras e as coisas, quando analisa Las meninas, de 1656, do pintor espanhol Diego Velásquez, a partir das rupturas ocorridas no interior do pensamento filosófico da época e suas consequências na arte, e ao discorrer sobre o destino da linguagem - e por conseguinte da representação -, abalada pela reorganização da própria ideia de saber, tomando como exemplo o romance El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, escrito em 1605 pelo também espanhol Miguel de Cervantes.

Direta e indiretamente, as revoluções do signo, das similitudes e das semelhanças no século XVII, como investigou Foucault (2007[1966]), relacionam-se com o século XX, nas fagulhas do que, séculos depois, chamaríamos de alta modernidade, e na conformação de uma tradição literária entendida de maneira constelar, segundo Haroldo de Campos e de acordo com sua ideia de poética sincrônica72. Também dessa forma, portanto, é possível ler a obra onettiana em relação a

uma hipotética tradição da arte ou, especificamente, da literatura autorreferente ou de uma herança cervantina, como quis parte da crítica.

Em quase toda a extensão dos escritos literários de Juan Carlos Onetti é possível encontrar o tema da literatura que se representa, seja por meio da representação de personagens que leem ou que discutem com outros sobre arte e leituras, seja pela construção de narradores-escritores cuja obra é o texto que está nas mãos do leitor empírico. Como incluídos no primeiro grupo podemos citar Tierra de nadie (1941) e Para esta noche (1943), La vida breve (1950), Para una tumba sin nombre (1959) e Cuando ya no importe (1993), pertencentes ao segundo, somente para restringir-nos a algumas narrativas. Justamente o que diferencia a construção narrativa do primeiro para o segundo grupo é o que, antes, comentamos com Costa Lima (1986) ser o traço característico do ficcional moderno em Don Quijote de Cervantes. É, também, como dissemos, o principal dado referenciado pela crítica que adjetivou, positivamente, a obra de Onetti como barroca, seja teorizando ou apenas mencionando uma possível relação. O estranhamento que a narrativa de Onetti causou nos leitores, sob o império do veto à ficção, relegou-o à marginalidade literária por mais de duas décadas e, posteriormente, lhe concedeu a insígnia de precursor da melhor narrativa do continente. Paralelamente, como um elo entre o ostracismo justificado do pretérito e celebração de uma postura – na vida e na literatura - transgressora, o conceito de barroco satisfaz o anseio crítico de dar conta de questões mais complexas, mas estruturantes da cultura literária latino- americana. Nesse sentido, estamos de acordo com as ponderações de Goic (1988) sobre o contexto da produção romanesca de meados dos anos 1960.

Na tentativa de ambientar algumas das mudanças propostas por escritores latino- americanos do século XX identificados como pertencentes à geração da “nueva novela”, Goic (1988) entendeu que houve, por um lado, um movimento de investigação da

72 O conceito de poética sincrônica perpassa toda a obra de Haroldo de Campos, mas fazemos referência

principalmente aos textos “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, de 1980, e “Poética sincrônica”, de 1969.

linguagem literária e, por outro, uma clara ruptura com os moldes de representação realista. De maneira geral, o fenômeno foi percebido como um momento de crise na literatura e provocou uma resposta, no mínimo, curiosa por parte da crítica: para além de Sarduy, Lezama e Carpentier, teorizadores de suas poéticas individuais, se armava no continente um levante “irrealista”, cujo “distanciamiento de la representación tradicional de la realidad en favor de la apariencia, la ilusión y el fantástico, les aproxima a la visión del mundo que el barroco reclama como suya” (GOIC, 1988, p. 438). Não obstante lhe parecer o conceito de maneirismo mais adequado à reflexão, assim como Hauser (1965), Goic pontua alguns traços da nova narrativa comumente descritos como barrocos ou neobarrocos como, por exemplo, metaforismo, jogo linguístico e estrutural especular, dispersão da figura do narrador. No fragmento que citaremos na sequência, fica evidente a transformação da própria ideia de narrativa e de ficção, pois o que aparentemente aproxima a diversidade de textos aos quais se refere o crítico chileno é, nos termos empregados por Rosenfeld (1996), uma espécie de desrealização da representação literária e uma desautomatização das formas da literatura e, também, dos modos de lê-la:

El empleo de modos de decir novedosos – esencialmente construcciones imaginarias y no fieles transcripciones -, que incluyen elementos paródicos de diversos niveles de lenguaje; nueva modalidades en la presentación del diálogo y del monólogo; desarrollo de más o menos extensos comentarios que duplican, en el plano del narrador o de los personajes, el sentido de lo representado; el uso llano y pretendidamente serio de la libertad épica del narrador, constituyen algunos de los nuevos determinantes de complicación, distorsión y libertad que han inducido a hablar de un neobarroco en relación a esta novela. (GOIC, 1988, p. 439)

Neste ponto, Goic dialoga diretamente com a percepção de Rosenfeld (1996) e, especialmente, a de Cornejo Polar (1982) sobre a nova narrativa na América Latina, sobre a qual trataremos proximamente. Por saber que o fenômeno não se restringia ao continente latino-americano, pois, inclusive, as influências eram externas, Goic pondera a respeito da coincidência total de elementos, haja vista as diferentes cosmovisões em cada época e seus contextos culturais, sociais e políticos. O que há, na verdade, é mais um período de crise da representação, que não implica o fim do romance como forma ou fim da arte como um todo, mas sim uma reestruturação dos meios e materiais propriamente estéticos, levada a cabo por artistas que não veem mais como produtiva a relação realidade – representação como decalque.

Um outro ponto, comentado por Goic (1988) na introdução de seu estudo, envolve de maneira direta alguns dos elementos importantes para este trabalho - para a construção da hipótese inicial e sua posterior reelaboração e ilumina o trajeto da pesquisa que se delineou ao longo destas páginas. Trata-se da equívoca ideia do que chamamos postura ou ética onettiana que, de certa maneira, se assemelha ao que Verani (2009) denominou impostura e, Alegría (2000), antiliteratura. Surgida da leitura que Bolívar Echeverría (2010) fez de Sarduy (1999) para a conceituação de seu ethos barroco, a noção de postura que forjamos é a de que há, em Onetti, um permanente questionamento das convenções da sociedade burguesa, o que, obviamente, não exclui a literatura e próprio uso da linguagem, sendo estas empregadas de modo a desestabilizar os acordos, nem sempre tácitos, que caracterizam essa organização social. Nesse sentido, o argumento de Sarduy (1999) que embasa o barroco da revolução nos parece encontrar na obra romanesca de Onetti um exemplo, ainda que seja mais pela construção de uma ética que não se descola da estética/poética e menos pelo conceito fugidio de barroco. Como dizíamos, Goic (1988) recupera na análise da geração de escritores do boom - e inclui aqueles que considera antecessores diretos, como Onetti, María Luisa Bombal e Bioy Casares – um traço comum que se assemelha a ideia de postura que lemos na totalidade dos textos ficcionais e jornalísticos de Onetti – também na conformação de sua poética da ficção -, pois se dá no nível da estrutura narrativa enquanto estética e indica uma atitude política num âmbito mais amplo:

Fundada en la idea de Sartre, renovada por Kristeva, está extendida en el medio hispanoamericano la opinión que la actitud progresista o revolucionaria, que repudia el régimen burgués, encuentra correspondencia en la destrucción de la institución literaria tradicional o decimonónica. Esto ha tenido por consecuencia el rechazo de la noción de literatura en favor de un relativismo histórico extraordinariamente marcado que olvida las tensiones entre continuidad y discontinuidad histórica. (GOIC, 1988, p. 29)

Ainda que se possa pensar em um Onetti barroco contemporaneamente às propostas neobarrocas a partir dos anos 1960, há que se acordar que sua estreia na literatura é de quase 30 anos antes. Se no período que vai dos anos 1960 a 1980 de convergência de várias poéticas identificadas como neobarrocas se pode incluir Onetti, é, porque, na verdade, as tendências vieram depois e são relacionáveis comparativamente salvadas as diferenças. Pela leitura que fazemos da obra do uruguaio, há constantes temáticas e formais que já aparecem em seus primeiros textos e que se conservam até o último, objeto de nosso estudo. Assim, se Onetti é barroco ou

cervantino, segundo nossa visão, o é desde “Avenida de Mayo – Diagonal Norte – Avenida de Mayo”, ou, pelo menos, desde El pozo, quando efetivamente aparece o primeiro narrador-escritor, Eladio Linacero.

Capítulo 4

Cuando ya no importe:a escrita da escrita e a