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2.1. Crítica de constatação

2.1.1. Onetti barroco ou a cara da desgraça (estilística)

O escritor Mario Vargas Llosa, em seu livro El viaje a la ficción (2009), por exemplo, apresenta uma biografia de Onetti e faz um percurso temático e formal por alguns de seus textos, uma espécie de panorama introdutório escrito com base nos cursos que o peruano ministrou na Universidade de Georgetown anos antes. Não se propõe, porém, a construir a síntese vida-obra de Onetti partindo de uma teoria específica e explícita, tampouco é seu objetivo reler a ficção onettiana segundo tópicos barrocos. Ainda assim, ao comparar características da literatura produzida por William Faulkner – influência reiteradamente discutida pela crítica e pelo próprio uruguaio – e por Onetti, Vargas Llosa (2008, p. 90) afirma que ambos possuem semelhanças, entre as quais destacamos um (a) "lenguaje barroco y laberíntico". Não há no trecho ou na seção algum outro ponto de relação com o barroco. A menção do termo, assim, conforma-se como um qualificador que sugere uma assimilação entre os estilos de Onetti e de Faulkner, além, é claro, de ambos e o barroco, assimilação essa que também sugere depreciação do elemento comparado. O peruano não chega a afirmar que as produções de Faulkner e Onetti são “boas” apesar de barrocas, apesar do estilo truncado, mas o que

se depreende de sua argumentação é a de que, neste caso, o que impele a apreciação é gosto, assim como o que impede a apreciação total é, também, o gosto.

Páginas a frente, Vargas Llosa (2008, p. 113) dedica um capítulo inteiro ao estilo de escrita onettiano, corroborando as reprovações já antigas de Enrique Anderson Imbert (1966) e Luis Harss (1966) que atacaram “oscuridades, incoherencias, enredada sintaxis, truculencia y obsesiva retórica, que enturbian e irrealizan las historias”. Seu próprio juízo, como dissemos, não se distancia muito de Imbert e Harss, mas o peruano avalia que o estilo de Onetti é funcional à mensagem que intenta comunicar, o que nos parece uma diferença importante a se considerar. Em outras palavras, na perspectiva de Vargas Llosa, estilo, formas narrativas e temas estão intrincados consciente e deliberadamente, pois fazem parte de uma busca incessante pela “verdade y todo esse montón de cosas cuya persecución, fracasada siempre, produce la obra de arte” (ONETTI, 2009, p. 380), que nada mais é do que o projeto literário de Onetti.

Vargas Llosa segue seu raciocínio a respeito do “estilo funcional”, mas concluiu que, apesar da identificação entre tema e estilo, Onetti só logrou pareá-los em La vida breve, “a diferencia de las novelas anteriores, en las que por momentos parecia servir de pretexto a grandes efusiones de barroquismo estilístico” (p. 114-115). Ainda mais a frente, ao comentar a feitura estilísticas de outros romances, acrescenta: “frases o párrafos, [...] el verbalismo, un discurso que es forma sin fondo, exhibición de palabras y frases que guardando certa apariencia de profundidad resultan, sometidas a un minucioso escrutinio, pura apariencia, espectáculo sin contenido” (pp. 125-126). Curiosamente, as reprimendas de Vargas Llosa a Onetti - que são claramente orientadas por uma visão negativa acerca do que entende sobre o barroco, suas técnicas, etc. – parecem-nos que foram retiradas – e obviamente invertidas – da sistematização dobarroco feita por Sarduy31. Justamente por serem opostas ao proposto por Sarduy

ainda que, salvo engano não haja embate conhecido entre eles -, a censura de Vargas Llosa acaba por reforçar, por um lado, o que o cubano entendia como barroco de la revolución e, por outro, ilustra o que nós vemos de relação da (im)postura de Onetti

31 Como afirmamos, não há, salvo engano, um enfrentamento de opiniões acerca do barroco ou de

questões estilísticas entre Vargas Llosa e Sarduy. A hipótese que arriscamos, ao comentar a possível inversão de valores que Vargas Llosa poderia haver feito com base na teoria sarduyniana, foi influenciada pela descoberta feita por Monegal e Perrone-Moisés sobre a poética de Lautréamont: o poeta parece ter lido manuais de retórica que condenavam o estilo barroco, mas em vez de segui-los à risca, de acordo com a concepção de literatura e beleza em voga, absorveu e aplicou a sua própria escrita o que os manuais reprovavam. Voltaremos a isso numa próxima seção.

frente à literatura – sua criação e, principalmente, sua circulação social – com a revolução barroca sarduyniana:

Sintácticamente incorrecta a fuerza de recibir incompatibles elementos alógenos, a fuerza de multiplicar hasta <<la pérdida del hilo>> el artificio sin límites de la subordinación, la frase neobarroca – la de Lezama, por ejemplo – muestra en su incorrección – falsas citas, malogrados <<injertos>> de otros idiomas, etc. – en su no <<caer sobre sus pies>> y su pérdida de la concordancia, nuestra pérdida del ailleurs único, armónico, conforme a nuestra imagen, teológico en suma. Barroco que en su acción de bascular, en su caída, en su lenguaje pinturero, a veces estridente, abigarrado y caótico, metaforiza la impugnación de la entidad logocéntrica que hasta entonces lo estructuraba desde su lejanía y su autoridad; barroco que recusa toda instauración, que metaforiza al orden discutido, al dios juzgado, a la ley transgredida. Barroco de la Revolución. (SARDUY, 1999, p.,1253)

No entendimento de Sarduy, todo texto barroco terá em sua forma e seu estilo a marca do excesso - provocando reações de rechaço e admoestação, como a de Vargas Llosa – que em si mesma denota “juego, perdida, desperdício y placer” (SARDUY, 1999, p. 1251), o prazer do texto (BARTHES, 2008) que por sua própria condição se faz e se dá como impugnador da ordem estabelecida, questionador das regras convencionadas. É inútil e revolucionário, gozo baldado mas incômodo justamente porque “põe em estado de perda, [...] (por)que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem” (BARTHES, 2008, pp. 20-21).

Emir Rodríguez Monegal (1961;1966), por sua vez, ostenta uma posição um tanto ambígua em relação a um Onetti barroco. Em 1961, quando escreve Narradores de esta América32, parece antecipar as críticas negativas ao estilo onettiano que se

seguirão ao analisar o romance La vida breve e “oponer reparos a sus creaciones”: “el desarrollo deliberadamente barroco que entorpece la lectura” (MONEGAL, 1961, p. 169)33. Quase vinte anos depois, ao prologar a primeira edição de obras completas de

Onetti, Monegal (1979) emprega o vocábulo barroco para situar alguns romances onettianos no espaço-tempo da literatura uruguaia, aparentemente com outra conotação:

32 O mesmo texto, “Juan Carlos Onetti y la novela rioplatense”, de onde retiramos a citação também

figura em outro livro seu Literatura uruguaya de medio siglo, de 1966. Sua primeira versão, no entanto, foi publicada no volume 3, nº13-14, da revista Número, em 1951.

33 Arango (1989, p. 502) mostra-se de acordo com Monegal, pois, na seção que dedica a Onetti em seu

estudo sobre o romance hispano-americano, cita integralmente o fragmento em que consta o trecho a que nos referimos e não pondera nem contesta a opinião do crítico uruguaio.

“un tríptico barroco que desarrolla, desde ángulos distintos y contradictorios, los temas paralelos de la inocencia y la experiencia, el sueño y al realidad, el amor y la muerte, a través de las figuras antagónicas y complementarias de Junta Larsen y Jorge Malabia.” O conjunto de três obras a que se refere Monegal é o formado pelos romances Para una tumba sin nombre (1954), El astillero (1961) e Juntacadáveres (1964), chamados de tríptico porque, na opinião de Monegal, deveriam ser lidos juntos como uma possível sequência de histórias, apesar de terem sido publicados separadamente. Além disso, segundo o crítico, são mais consistentes na estruturação das técnicas narrativas que já haviam sido empregadas em La vida breve (1950).

A relação que Monegal tenta produzir entre os três romances e o estilo barroco ao denominá-los tríptico barroco é mais sutil do que aquela que se dá entre o estilo de Onetti e o barroco. Pois, se o romance de 1950 possui, para Monegal, características barrocas – mesmo que entendidas como negativas (construção en abyme, manejo do ponto de vista, linguagem que entorpece, etc.) -, os romances eleitos como superiores, tomando como base sua forma e seus elementos de composição narrativa, devem ser entendidos como “mais” ou “menos” barrocos? Existiria um tipo de barroco que degenera, que potencializa os defeitos das obras consideradas ruins e um barroco que supervalorizaria as já estimadas? Ainda que não se possa assegurar as respostas, a argumentação de Monegal sugere uma possível existência de uma maneira correta de se empregar as técnicas denominadas barrocas, se não correta ao menos moderada, com suposto bom gosto, talvez. De qualquer modo, sua relação com o estilo não se assemelha a de Vargas Llosa, haja vista o trabalho de peso que levou a cabo, juntamente com Leyla Perrone-Moisés (2014), sobre o Conde de Lautréamont e a influência do barroco em sua obra poética.