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3.1. Um barroco onettiano?

3.1.1. Ficção barroca

Um dos estudos em questão é o de Carlos Gamerro, chamado Ficciones barrocas. Una lectura de Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Cortázar, Onetti

44 Roman Jakobson. Linguística e Poética. In: Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein. São

Paulo: Cultrix, 1970. De acordo com a nota do tradutor, os ensaios presentes no citado livro do linguista foram publicados pela primeira vez em 1963, sob o título Essais de Linguistique Générale (Paris, Les Éditions de Minuit). Haroldo de Campos. Por uma poética sincrônica. In: A Arte no horizonte do

y Felisberto Hernández45, de 2010. Sua novidade consiste em pensar o estilo barroco

do século XX a partir da subdivisão escritura barroca e ficción barroca que, de acordo com o autor, já eram as duas maneiras de ser barroco no Siglo de Oro espanhol segundo os paradigmas Góngora e Quevedo, por uma lado, e Cervantes por outro, respectivamente.

Gamerro (2010) define, de início, escritura barroca como "un barroco que se manifiesta principalmente en el nivel de la frase, que se engalana, se pavonea, se enriquece de vocablos exóticos, de subordinadas, se retuerce sobre sí misma y se enreda" e indica como seus máximos representantes os poetas espanhóis Quevedo e Góngora. Como suporte para sua argumentação, Gamerro (2010) evoca a descrição da vestimenta barroca feita por Gilles Deleuze em seu Le Pli46 a fim de caracterizar o que

o argentino chama de gongorismo, elemento típico da escritura barroca:

[...] é preciso que já o tecido, a vestimenta, libere suas próprias dobras da sua habitual subordinação ao corpo finito. Se há um vestuário propriamente barroco, é ele largo, com saias, com ondas infláveis, borbulhante, envolvendo o corpo com suas dobras autônomas, sempre multiplicáveis, em vez de se limitar a traduzir as dobras do corpo [...]. (DELEUZE, 1991, p. 183)

Na sequência, o autor delimita o entendimento de ficción barroca a sua percepção do que seja o estilo de Cervantes - único escritor-modelo desta vertente -:

Lo barroco en Cervantes no se manifiesta, entonces, en el nivel de las palabras ni de las frases. Para encontrarlo hay que subir de nivel: a los

personajes, las estructuras narrativas, la construcción de un universo referencial. En estos niveles superiores que, en los días en

que la crítica literaria y la lingüística vivían la etapa feliz de su matrimonio, solían llamarse macroestructuras, lo característico del barroco es afición, adición a veces, al juego de intercambiar, plegar

o mezclar [...] los distintos planos de los que la realidad se compone: ficción/verdad, cuadro/modelo, copia/original, reflejo/objeto, imaginación/percepción, imaginación/recuerdo. sueño/vigilia, locura/cordura, teatro/mundo, obra/autor, arte/vida, signo/referente. (GAMERRO, 2010, grifos nossos)

O conceito de barroco proposto pelo argentino como ferramenta de análise é, portanto, o de um resgate do barroco espanhol, comumente chamado de histórico, a partir de duas vertentes formais para o estilo. O neobarroco de Sarduy e Lezama Lima,

45 Por tratar-se de um livro digital, não será possível - nem mesmo necessário - fazer referência ao número

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46 Publicado pela primeira vez, na França, em 1988. A tradução brasileira intitula-se A dobra, e foi

publicada pela Editora Papirus (Campinas) em 1991. Gamerro (2010) a cita em espanhol, mas preferimos utilizar a edição brasileira para referência das citações correspondentes.

intui-se porque o autor não o explicita, seria, juntamente com o neobarroso de Néstor Perlongher, as realizações barrocas no século XX do tipo escritura barroca, enquanto os autores, prosadores, já mencionados no título do ensaio fariam parte do grupo das ficciones barrocas. Depreende-se disso que a ficción barroca do século XX – ao menos a rio-platense dos anos 1940 – possui as características antes citadas e relaciona-se com o barroco histórico a partir de formas e temas, ao contrário da escritura barroca que se apresenta barroca no nível da frase, sem necessariamente o fazer em outros níveis. Essa relação é contundente e controversa, parece-nos, dada a profusão de estudos de caráter histórico e estilístico já feitos sobre as especificidades temáticas e culturais do barroco europeu, incluindo o espanhol47, nos quais figuram os motivos e topoi da poesia, da

narrativa e do teatro barrocos. Apesar disso, a divisão que propõe Gamerro (2010) entre um barroco da poesia e um barroco da prosa é instigante como ferramenta de análise, pois proporciona uma ampliação da ideia de construção do texto e sugere que os materiais e procedimentos de criação em prosa e poesia não são obrigatoriamente os mesmos e, ainda que fossem, oferecem, na estrutura do produto final, resultados diferentes.

A proposta teórico-analítica de Gamerro (2010) que se nos apresenta é, sem afirmar sê-lo, muito interessada nos aspectos mais estruturais dos textos que analisa e circunscreve a obra de Juan Carlos Onetti, assim, no campo das ficciones barrocas. Primeiramente, Onetti aparece amparando a dicotomia Borges-Arlt, pela qual o crítico argentino discute a questão do realismo e do fantástico e as relações possíveis com o estilo barroco cervantino. Gamerro, então, outorga o título de primeiro barroco rio- platense ao Roberto Arlt dramaturgo e desenha a filiação barroca (regional) de Onetti, seguidor do autor de Trescientos millones (1932) e Saverio el cruel (1936)48. Em

seguida, Onetti aparece numa sessão particular intitulada “Santa María, capital del barroco rioplatense” onde se comenta alguns de seus romances e contos, com destaque para La vida breve, de 1950, livro em que é criada a cidade ficcional de Santa María.

A narrativa de Onetti é, para o ensaísta argentino, prototípica do que chamou de ficción barroca, porque tematicamente encena desajustados à maneira de Dom Quixote e a vida como teatro de Calderón de la Barca, numa relação por vezes conflitiva entre

47 Como exemplo disso, citamos apenas o famoso livro Estudos sobre o Barroco, de Helmut Hatzfeld,

traduzido e publicado no Brasil em 1988 pela paulista Editora Perspectiva. Nele o autor revisa diversas teorias sobre o barroco conhecidas até o aquele momento (edição em alemão data de 1973) e oferece vários capítulos sobre as características também temáticas do barroco na literatura.

48 Obras teatrais do argentino Roberto Arlt (1900-1942) comentadas, e caracterizadas como barrocas, por

realidade e ficção, não porque não se consiga distinguir entre as duas dimensões, mas porque, ao contrário, alguns personagens têm a sensação – ou mesmo a certeza - de que são criações de outros. O caso paradigmático é, sem dúvida, La vida breve, porque é o romance no qual se cria pela primeira vez, pela ação de um personagem narrador, o universo ficcional no qual se ambientarão quase todos os outros textos onettianos:

Con La vida breve, entonces, quedaría establecida, en la obra de Onetti, la matriz básica de la ficción barroca: postulación de un orden mimético caracterizado por la separación entre el mundo ‘real’ y mundo de ficción, y engendramiento del segundo a partir del

primero… Y luego, el plegamiento barroco: gradual o

repentinamente, el orden y las jerarquías miméticas se trastocan, los personajes de la ficción pasan al mundo ‘real’, o el mundo de ficción ocupa el lugar del real, el autor entra en la obra, se pierde del otro lado y nunca regresa a este. (GAMERRO, 2010, grifos nossos)

Na narrativa onettiana, então, há uma classe de organização barroca da forma que consiste, por um lado, em tematizar algumas dicotomias barrocas como realidade/ficção – segundo Gamerro - e, por outro, tematizar o próprio processo de construção narrativa que, em vez de resolver o problema do que seria a realidade e o que seria a ficção, instaura a ambiguidade e a dúvida.

Dessa forma, a partir do proposto por Gamerro, compreende-se que há uma tradição barroca, por assim dizer, cervantina e romanesca, que se origina numa ruptura de paradigmas na representação e no próprio funcionamento da linguagem e que não necessariamente atingiu a tradição barroca poética, fundada por Góngora e Quevedo. Essa herança cervantina do narrador moderno, parece ser uma chave de leitura proveitosa para o caso onettiano – intuída pelo próprio Onetti enquanto leitor e por alguns de seus comentadores -, pois é a que nos fornece maior número de relações possíveis entre as formas e os temas do universo narrativo onettiano e a produção de sentido que suscita.

Nesse sentido, tanto a noção de dobra barroca que Gamerro (2010) toma de Deleuze (1991) quanto a proposta de pensar o barroco onettiano a partir das particularidades da prosa de ficção vão ser de suma importância para a leitura do romance Cuando ya no importe - que empreenderemos no último capítulo deste trabalho -, além de fornecer-nos um ponto de diálogo entre o barroco, enquanto uma possível traço estilístico onettiano, e o período em que se encontra Cervantes, as primeiras manifestações do barroco e do maneirismo como origem de uma etapa de

explosão de consciência por parte dos artistas acerca de seus métodos composicionais, de seus objetivos e, principalmente, dos limites e potencialidades de sua linguagem.