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CAPÍTULO II – BOURRIAUD E AS TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

2.2. A estética relacional

2.2.1. Base para o pensamento relacional

Em texto de divulgação da Bienal de São Paulo realizada em 2006, cujo tema era “estar junto”, Rosa Martinez afirmou o seguinte a respeito da estética relacional:

[...] no campo da arte, a “estética relacional” tornou-se um tipo de ortodoxia no qual processos colaborativos e interativos procuram eliminar a distinção entre o artista enquanto o produtor de objetos e os espectadores enquanto consumidores passivos de mensagens visuais. Em termos de “estética relacional”, a interação de subjetividades é fundamental para a produção de novas formas de sociabilidade. Emoções, trocas discursivas, generosidade e negociação entre indivíduos são as principais questões dessa metodologia criativa que leva a arte a oscilar entre algo que alguns vêem como entretenimento e outros legitimam como reinvenção de uma nova ética de mudança social. (MARTINEZ, 2006)

A forma relacional surgiu quando Bourriaud observou a realidade dos artistas da década de 1990. Para o filósofo, o conhecimento das características de cada época é extremamente importante para que os moldes de produção artística sejam determinados, já que cada pensamento estético tem bases econômicas, sociais e culturais particulares.

Portanto, a prática artística contemporânea vem das raízes da modernidade, a qual se fundamentou nos princípios da filosofia do Século das Luzes que, por sua vez, se baseava na vontade de emancipação dos indivíduos e dos povos. Esse alargamento por meio do progresso da liberdade, além das melhores condições de trabalho proporcionadas aos homens, tinha a função de libertar a humanidade e permitir uma sociedade melhor. Porém, segundo Bourriaud, são diversas as versões de modernidade que se conceberam em três versões de mundo: uma

filosofia do espontâneo, uma racionalista proveniente do século XVIII e outra que propunha a liberação através do irracional (os situacionistas, o dadaísmo e o surrealismo) (BOURRIAUD, 2006). As vertentes do dadaísmo e dos situacionistas carregavam a ideologia de mudar a cultura, as condições da vida individual e social, além de transformar as mentalidades. Para Bourriaud, a vanguarda moderna se desenvolveu a partir das ideologias do racionalismo moderno, já a vanguarda contemporânea se constituiu de preceitos culturais, sociais e filosóficos totalmente diferentes. Mesmo assim são baseadas na modernidade e não deixam para trás pressupostos defendidos pela vanguarda modernista, como os dadaístas e os situacionistas. A vanguarda contemporânea ainda propõe “modelos perceptivos, experimentales, críticos, participativos en la dirección indicada por los filósofos del Siglo de las Luces, por Proudhon, Marx [...]”(BOURRIARD, 2006, p. 11).

Para Bourriaud, não houve a morte da modernidade e sim o fim da versão teleológica e idealista proposta por ela. Antes, os artistas preparavam a humanidade para um futuro, para o progresso, hoje eles modelam universos possíveis, constroem pequenas utopias dentro de uma realidade vigente e inventam novas formas de estar junto. A arte contemporânea não tem intenção de repetir os postulados modernos, nem de possuir as mesmas funções de antes. Segundo Lyotard, em relação à arquitetura moderna, cuja tarefa pós-moderna se assemelha à função da arte contemporânea, a arte atual “se encontra condenada a engendrar uma série de pequenas modificações em um espaço herdado da modernidade, e a abandonar uma reconstrução global do espaço habitado pela humanidade” (LYOTARD, 2005).

A arte contemporânea deve habitar o mundo em vez de construí-lo segundo as previsões de uma evolução histórica. “Las obras ya no tienen como meta formar realidades imaginarias o utópicas, sino construir modos de existência, o modelos de acción dentro de lo real ya existente, cualquiera que fuera la escala elegida por el artista” (BOURRIAUD, 2006, p. 12).

2.2.2. Arte como interstício social

El arte es un estado de encuentro.

No fim da Segunda Guerra Mundial, a urbanização generalizada permitiu um aumento significativo nos intercâmbios sociais, assim como na mobilidade dos indivíduos. Foram construídas rotas e redes, desenvolveram-se as comunicações e conexões entre lugares afastados. A proliferação do modo urbano de vida proporcionou um modelo de arte calcado em bases relacionais – uma arte que teria como bases teóricas a interação entre o contexto social e a esfera das relações humanas. Esse modelo prevaleceria sobre um espaço simbólico privado e autônomo. O pensamento artístico moderno baseado na cultura colecionista, na qual a obra é um espaço a se percorrer, dá lugar a uma obra urbanizada dotada de uma duração por experimentar que possibilitaria intercâmbios ilimitados. O nascimento das cidades possibilitou a sensação de proximidade entre as pessoas – “um estado de encontro”

El regimén de encuentro intensivo, una vez transformado en regla absoluta de civilización, terminó por producir sus correspondientes práticas artisticas: es decir, una forma de arte que parte de la subjetividad, y tiene por tema central el “estar junto”, el encuentro entre observador e cuadro, la elaboración colectiva del sentido. (BOURRIAUD, 2006, p. 14)

Bourriaud ressalta que o poder de encontro e a capacidade relacional sempre foram, em diversos graus, características da arte, ou seja, a obra sempre foi elemento social fundador de diálogos. O cinema e o teatro reúnem em um único espaço pequenos grupos que discutem sobre a obra posteriormente à sua apresentação. O livro e a televisão permitem a fruição cultural através de espaços privados. Já as exposições de pintura e escultura permitem o contrário. Em uma mostra de arte, as pessoas dividem o mesmo espaço enquanto a obra se apresenta. A possibilidade para discussões se torna plausível quando os espectadores se movem entre as peças, comentam e, ao estarem no mesmo lugar, praticam a possibilidade do encontro.

Considerando-se a obra intrinsecamente dotada de um poder que possibilita “encontros”, convém explicar o lugar da arte na sociedade contemporânea caracterizada pela globalização. Nos moldes sociais de hoje, o fazer artístico define-se por interstício social – termo utilizado por Karl Marx para designar grupos que desejavam escapar do quadro econômico capitalista. O interstício é definido como um espaço propício para as relações humanas que, contra o sistema vigente, possibilita intercâmbios de maneira harmoniosa e aberta no sistema global. Os moldes sociais contemporâneos caracterizam-se por restringir

possibilidades de intercâmbio, criando situações que restringem o contato social, como, por exemplo, a comunicação através de ferramentas tecnológicas (veremos mais tarde que isso não se dá tão radicalmente). Esse tipo de estratégia diminui os espaços de convivência social e gera uma maquinização das relações que empobrece os espaços relacionais. Ao observar essa “coisificação” geral das relações interpessoais de hoje, a arte desenvolve um projeto político ao problematizar a esfera relacional.

Quando o artista se insere nas realidades cotidianas “silenciosas”, característica dos últimos anos, tem a capacidade de reunir momentaneamente coletividades.

La exposición es un lugar privilegiado donde se instalan estas conectividades instantâneas, regidas por diferentes princípios: el grado de participación exigido al espectador por el artista, la naturaleza de la obra, los modelos de lo social propuestos o respresentados. Una exposición genera un “domínio de intercâmbio” próprio, que debe ser juzgado con critérios estéticos, o sea analizando la coherencia de la forma y luego el valor “simbólico” del mundo que nos propone, de la imagen de las relaciones humanas que refleja. Dentro de este interstício social, el artista debe assumir los modelos simbólicos que expone: toda la representación reenvia a valores que se podrían trasponer en la sociedad, pero el arte contemporâneo modeliza mas de lo que representa, en lugar de inspirarse en la trama social se inserta en ella. (BOURRIAUD, 2006, p. 17)

Bourriaud exemplifica essas ações quando cita o artista Jeans Haaning que, em uma praça de Copenhagen, difunde piadas em turco por meio de alto-falantes (Turkish Jokes). Nesse momento, o artista reúne um número de pessoas em uma microcomunidade que forma relações com a obra. A mesma situação poderá ser observada nas análises das obras do Superflex e do De Geuzen, quando em seus projetos reúnem pessoas pertencentes a uma determinada realidade que, segundo alguns pressupostos propostos pelos artistas, participam e dialogam com as obras, criando situações específicas de encontro.