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Landi: os anos lisboetas

2.2. O GRÃO PARÁ “ILUMINADO” OU UM ARTISTA NA FLORESTA

2.2.1. A Belém Setecentista

A Belém Setecentista pode ser percebida pelos registros cartográficos e relatos da época, produzidos pelos integrantes da Comissão.

Em 1753, quando a Comissão chegou a Belém, a cidade já apresentava um traçado urbanístico definido ainda no século XVII para os então bairros da Cidade e da Campina. Traçado esse visto no desenho do Capitão Schwebel (Figura 95).

Figura 95 – Planta Geral da cidade de Belém, João André Schwebel, 1753

Fonte: Reis, Nestor Goulart, 2001

Segundo Araújo (1998, p. 199), “no final do século XVII”, Belém era vista “com o seu traçado viário já virtualmente definido, tanto na área da “Cidade” quanto na da “Campina””, áreas desenvolvidas segundo um traçado reticulado, apesar dos pântanos e igarapés que as caracterizavam. Esses dois aglomerados eram separados pelo igarapé do Piri.

O bairro da Cidade, o de ocupação mais antiga, teve sua distribuição a partir da primeira rua, conhecida como Rua do Norte (atual Siqueira Mendes). As demais vias surgiram paralelas a essa, porém sofrendo pequenas inflexões em relação a ela’. Perpendiculares a essas, foram implantadas várias travessas.

No bairro da Campina, área cujo desenvolvimento foi iniciado após o primeiro quarto do século XVII, as ruas se alinharam paralelas à Baía do Guajará. A

primeira, a Rua Direita dos Mercadores, conhecida também como Rua da Cadeia (atual Conselheiro João Alfredo), definiu o alinhamento das demais. Essas ruas foram cruzadas na perpendicular por travessas paralelas ao igarapé do Piri, dentre essas a da Misericórdia (atual Padre Prudêncio), conhecida, por volta de 1784, como Rua do Landi, por nela viver o arquiteto bolonhês.

Além dos registros cartográficos, existem os relatos de importantes viajantes, que passaram por Belém e deixaram suas impressões a respeito do que nela encontraram.

De Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista baiano, chefe da missão científica que percorreu os estados do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, entre 1783 e 1792, tem-se o seguinte relato:

A cidade em si he plana, as ruas mais estreitas, do que largas, pela maior parte irregulares, todas por calçar, e como seu fundo he tijuco, com as agoas do inverno fica todo hum pantanal. A rua mais larga he a da Cadeia no bairro da Campina, mas essa mesma não he tirada a cordão, desde o largo do Palácio, até o das Mercês. [...] Alguns declives tem, porem pouco sensíveis. Só a rua que chamão do Paixão he calçada, porem calçada de modo que antes o não fora, pela mortificação que sentem nos pés os que a passeiam (MENDONÇA, 2003a, p. 827).

Na cidade encontrada pela Comissão Demarcatória, destacavam-se: o grande conjunto da Companhia de Jesus (igreja, colégio e convento) concluído entre 1718 e 1719, o dos Carmelitas (convento e igreja); o dos Mercedários (convento e igreja) e o dos frades capuchos de Santo Antônio (convento, igreja e capela), além da capela de Santo Cristo, da Igreja do Rosário dos Homens Brancos e do Forte de São Pedro Nolasco (Figura 96).

Figura 96 – Planta Geral da cidade de Belém. Gaspar Gronsfeld, c. 1759 – (1) conjunto da

Companhia de Jesus, (2) conjunto dos Carmelitas, (3) conjunto dos Mercedários, (4) conjunto dos frades capuchos de Santo Antônio, (5) capela de Santo Cristo, (6) Igreja do Rosário dos

Homens Brancos, (7) Forte de São Pedro Nolasco

Fonte: Reis, Nestor Goulart, 2001

Entretanto essa paisagem sofreu interferências, principalmente arquitetônicas, a partir da chegada da Comissão. A modesta arquitetura da cidade, pequena para suportar o crescimento da população, foi reestruturada segundo projetos de Antonio Landi.

Alguns edifícios foram construídos como o Palácio dos Governadores, a Igreja de Santana, a Casa da Ópera, o Quartel dos Soldados e a Capela Pombo, além de significativos sobrados; outros, reconstruídos como a igreja de São João, o Hospital Real (atual Casa das Onze Janelas) e a Igreja do Carmo, com a capela da Ordem Terceira; e outros, concluídos como a Igreja da Sé e a Igreja das Mercês (Figura 97).

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Figura 97 – Planta da cidade de Belém, Constantino Chermont, 1791 - (1) Palácio dos Governadores, (2) Igreja de Santana, (3) Casa da Ópera, (4) Quartel dos Soldados, (5) Capela

Pombo, (6) Igreja de São João, (7) Hospital Real (atual Casa das Onze Janelas), (8) Igreja do Carmo, (9) Igreja da Sé e (10) Igreja das Mercês

Fonte: Reis, Nestor Goulart, 2001

A cidade ao final do século XVIII, mais precisamente em 1791, foi representada pelo engenheiro Teodósio Constantino Chermont. Nessa planta (Figura 97), pode-se observar que a expansão da cidade se deu no prolongamento das ruas e travessas anteriormente já representadas na planta de 1759. Observa-se também a construção de novas casas e, do lado da mata, paralelo à Rua dos Mercadores, a implantação de mais quatro eixos viários. As informações dessa planta podem ser complementadas com a vista da cidade realizada por José Joaquim Codina, em 1784 (Figura 98). 2 1 3 4 5 6 7 8 9 10

Figura 98 – Vista da Cidade de Belém, Pará, J. J. Codina, 1784, desenho à pena Fonte: Reis, Nestor Goulart, 2001

Landi, o arquiteto entre os engenheiros:

[...] elegeu a capital como cenário de uma intervenção monumentalizadora do espaço urbano igualando a cidade à imagem do poder que nela se representava, o poder do Estado que, finalmente, dominava, pelo conhecimento, o grande rio das Amazonas (MOREIRA; ARAÚJO, 1999, p. 195).

A transformação da paisagem ocorreu simultaneamente a mudanças na vida da sociedade local, como, por exemplo, o início, em 1749, da circulação de dinheiro em moedas de ouro, prata e cobre, chamado de Brasília, a que a população resistiu, preferindo manter o sistema de trocas, por algum tempo.

A cidade, no meio do século XVIII, preparava-se para ver transformações na vida econômica, social e religiosa, que provocariam reflexos na produção cultural e nas suas características físicas.

A construção do Palácio do Governo, projetado anos mais tarde por Landi, quiçá o melhor de todo o Brasil-Colônia, em uma cidade pequena como Belém, àquela época com menos de 20 mil habitantes, era uma amostra do poder político. E a Catedral, que se equiparava as mais belas igrejas de Portugal, do poder da Igreja.

As missões religiosas no início da colonização estão bastante ligadas à música, ao teatro e às letras do Grão Pará. À música e ao teatro, pois eram os meios utilizados pelos religiosos na educação do povo, ou seja, tinham papel pedagógico na formação da sociedade local, através da imposição do modelo europeu de cultura. Às letras, pois os colégios religiosos foram responsáveis pela formação de um grupo de homens que, já naquele período, pensavam a região e produziam saberes tomando como referência a ótica local. Apesar disso, a presença das missões constituía, segundo o

pensamento da época, um entrave ao progresso da região, pelo conservadorismo que não permitia mudança no método de trabalho, por exemplo.

Os desejos dos colonos para Belém transplantados de manter seus hábitos da metrópole provocaram o surgimento de movimentações na vida cultural da cidade. Não é à toa que, nesse período, surgiu a Casa da Ópera, mandada construir, conforme Baena (1838, p. 292), pelo então governador e capitão general João Pereira Caldas, em 1771, sob projeto de Antônio Landi. O edifício já desaparecido, também chamado “theatrinho”, localizava-se ao lado do Palácio dos Governadores. Dessa edificação, existe apenas uma gravura nas memórias de viagem de Paul Marcoy, do século XIX, que mostra o prédio já em ruínas.Diz Salles (1980, p. 95-8), que a construção da Casa pode ser vista não como um desejo individual do governador, mas de uma sociedade que acordava para o lazer artístico e começava a se interessar pelas artes cênicas. O espaço era destinado às apresentações do teatro profano, sendo o religioso apresentado nas igrejas, e nele puderam ser vistos espetáculos de autores locais como Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811).

Alexandre Ferreira (1784, n.p.), ao fazer referência ao edifício, comenta que o mesmo, raras vezes, abria por não ter “comicos pagos para esse fim”. Além disso, Ferreira diz ter o edifício “muito bom fundo, ao menos, proporcionado á grandeza, e comprimento da casa”, ou seja, percebe-se que as dependências da casa não eram tão modestas, contrariando as palavras de Baena.

No início do século XIX, o teatro ainda continuava funcionando, porém, na segunda década, entrou em decadência. Em 1817, o governador Conde de Vila-Flor deu início à reconstrução ainda conforme projeto de Landi. Um desenho incluído nas memórias do francês Paul Marcoy, realizado em sua passagem por Belém, em 1869, possivelmente, representa essa segunda construção. Na gravura do Palácio dos Governadores, vê-se ao seu lado as ruínas do Teatro (Figura 99).

Figura 99 – Ruínas da Casa da Ópera, ao lado do Palácio dos Governadores, Belém, Pará Fonte: MARCOY, 2004

A introdução dos costumes europeus trazidos pela Comissão pode ser ainda notada nos eventos ocorridos na cidade por ocasião das comemorações do casamento da infanta D. Maria Francisca, filha mais velha de D. José I, com o tio, o infante D. Pedro. Tendo o casamento acontecido em Lisboa, a 6 de junho de 1760, as celebrações aconteceram em algumas localidades de Portugal, e em quatro cidades do Brasil, dentre essas, Belém, tendo aí antecedido às demais e se estendido de setembro a novembro de 1760.

Em Belém, as comemorações, compostas de celebrações religiosas, jantares, tiros e queimas de fogos, serenatas, bailes de máscaras e desfiles das tropas, ocorreram em vários pontos da cidade, em particular nas igrejas da Sé e das Mercês e foram organizadas por autoridades religiosas e governamentais e pelos técnicos estrangeiros, dentre os quais o italiano Landi.

Na noite do dia 8 de novembro, em frente à igreja das Mercês, aconteceram, quiçá, os eventos mais significativos: uma queima de fogos de artifício que antecedeu à cena do assalto à fortaleza, que simbolizava a vitória da cristandade sobre os inimigos da fé, encenação comum na Itália e em Portugal no período. Segundo João Ângelo Brunelli, em uma carta, de 12 de novembro de 1760, dirigida à família em Bolonha, a praça foi ornada com arquiteturas efêmeras, compondo a cenografia,

e com aparatos pirotécnicos. Um arco triunfal, que ardeu em fogo, e outros arcos menores com lampiões transparentes com figuras e pinturas de várias cores compuseram o ambiente, além de medalhões em honra ao rei e aos noivos. No dia seguinte, 9 de novembro, pela manhã, celebrou-se uma missa solene na igreja das Mercês, ornamentada com ricos panejamentos que cobriam todas as paredes (MENDONÇA, 2003a, p. 346-53).

Os aparatos foram criados por Landi e lembraram as festas bolonhesas do período barroco quando as estruturas efêmeras eram muito frequentes e que, para sua produção, contavam com a ajuda dos artistas formados na Academia Clementina. O uso dos fogos de artifício também era frequente nas comemorações da época e, para alguns, a pirotecnia era considerada um gênero artístico55.

As arquiteturas efêmeras, os efeitos pirotécnicos e os panejamentos utilizados nos eventos, além da “cena do assalto à fortaleza”, comuns na Bolonha setecentista, colocaram a população local em contato com as tradições européias daquele tempo.