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O BEM DE FAMÍLIA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana trata-se de um dos cernes da sociedade e das leis que regem o ordenamento jurídico brasileiro, sendo reconhecido pela Constituição Federal, que logo em seu art. 1º define:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana (BRASIL; CRFB, 2020);

Nesse sentido, verifica-se que se trata da um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e não pode, em nenhuma circunstância, ser considerado como secundário, mas é central à formação de toda a nação.

Para Sarlet (2010, p. 37-38), o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser compreendido do seguinte modo:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano, que o faz merecer do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2010, p. 37-39).

Nessa seara, a vida digna de todos os cidadãos deve ser, inquestionavelmente, a busca central do Estado em benefício de todas as pessoas que nele vivem.

Na concepção de Barroso (2015, p. 285), a dignidade da pessoa humana é um valor fundamental, por meio do qual todas as pessoas, simplesmente por serem humanas, têm direito a condições de vida dignas, merecem respeito e consideração em todas as situações e qualquer ação em contrário fere a Constituição Federal e todo o ordenamento jurídico da nação.

Pensando-se a partir do prisma do bem de família, deve-se compreender que este se trata de um esforço considerável para que a dignidade da pessoa humana seja assegurada integralmente. Seria distante da verdade acreditar que retirar de um indivíduo seu lar, o único local que possui para viver em face de dívidas diversas, não contraria a princípio da dignidade da pessoa humana, a moradia é essencial para uma vida digna, na qual deve haver segurança, respeito, inviolabilidade e garantia dos demais direitos (AZEVEDO, 2010, p. 30).

Sendo assim, o Estado apontou a moradia familiar como bem impenhorável, porque o imóvel em que reside a família é um bem essencial à dignidade humana, até em razão do direito social à moradia, bem como, em caso de execução, seria o maior alvo de constrição dos credores. Lembrando, ainda, que o conceito de vida digna é volátil, depende da condição social do executado (SOUZA, 2018, p. 33).

Nessa toada, compreende-se que o bem de família protege os integrantes do grupo para que vivam com dignidade e respeito, visando cumprir com os direitos fundamentais elencados na Constituição Federal

Na sequência apresenta-se julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, sobre o bem de família e a dignidade da pessoa humana, que ressalta:

PROCESSO N.2013 00 2 016929-5 AGI - 0017803-73.2013.807.0000 (RES.65 - CNJ) PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. PENHORA SOBRE O ÚNICO BEM DE

FAMÍLIA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. IMPOSSIBILIDADE.

DECISÃO REFORMADA. 1.ART. 1º. DA LEI 8009/90 - O IMÓVEL RESIDENCIAL PRÓPRIO DO CASAL, OU DA ENTIDADE FAMILIAR, É IMPENHORÁVEL E NÃO RESPONDERÁ POR QUALQUER TIPO DE DÍVIDA CIVIL, COMERCIAL, FISCAL, PREVIDENCIÁRIA OU DE OUTRA NATUREZA, CONTRAÍDA PELOS CÔNJUGES OU PELOS PAIS OU FILHOS QUE SEJAM SEUS PROPRIETÁRIOS E NELE RESIDAM, SALVO NAS HIPÓTESES PREVISTAS NESTA LEI. 2. O DIREITO À MORADIA ESTÁ

AGASALHADO PELO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 3. RECURSO CONHECIDO E

PROVIDO (DISTRITO FEDERAL, TJ-DF, 2013, grifo nosso).

O grifo realizado deixa evidente que penhorar o único bem da família, sua moradia, fere o princípio da dignidade da pessoa humana, pois retira da família, justamente, a capacidade de viver de forma digna. Nessa seara, verifica-se uma relação direta entre a proteção do único bem de família e o conceito de dignidade da pessoa humana a ser protegido em todas as situações.

Toledo (2017, p. 104) afirma que o conceito de dignidade da pessoa humana é muito mais amplo do que se percebe em algumas abordagens, porém, de forma geral, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana trata-se de uma pinte, uma conexão entre todas as pessoas, em qualquer situação e diante de sua diversidade, tenham acesso aos direitos fundamentais reconhecidos como necessários para a vida, o desenvolvimento e a satisfação das necessidades.

Diante do exposto, o bem de família assegura o cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana na medida em que evita que um grupo familiar tenha de viver em condições de rua, por exemplo.

Reafirma-se, enfim, que a pessoa humana deixou de ser o meio para ser o fim principal a ser atingido, a finalidade da tutela jurídica, cuja dignidade sempre deve ser protegida, tendo o patrimônio um sentido social e sendo justificável a separação

de uma parte patrimonial para garantir as condições mínimas de sobrevivência (SOUZA, 2018, p. 33).

Por fim, esta etapa do estudo procede de uma associação entre o bem de família e o mínimo existencial.

3.6 O BEM DE FAMÍLIA E O MÍNIMO EXISTENCIAL

O mínimo existencial refere-se à garantia das condições mínimas essenciais para que as pessoas vivam de forma digna, adequada, respeitosa e sem terem que encontrar formas de manter-se com menos do que aquilo que é básico. Há um patamar minimamente necessário para que a vida das pessoas não seja permeada de sofrimento e limitações excessivas (DUARTE, 2011, p. 99-100).

Toledo (2017, p. 103) ressalta que outros países reconhecem o mínimo existencial pela necessidade de estipular um limite mínimo abaixo do qual nenhum ser humano deveria viver, pois nesse patamar as condições de vida não são suficientes para manter sua dignidade e o respeito aos seus diversos direitos. Os países democráticos de direito vêm, ao longo dos anos, estabelecendo quais são os parâmetros dentro dos quais a vida pode ser considerada como qualitativa e minimamente adequada e, assim, o Brasil também incorporou ao seu direito esse esforço.

Ricardo Lobo Torres (2009, p. 69) esclarece de forma muito importante que:

A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados. O fundamento do direito ao mínimo existencial, por conseguinte, reside nas condições para o exercício da liberdade ou até na liberdade para ao fito de diferençá-las da liberdade que é mera ausência de constrição.

Compreende-se, assim, que há limites abaixo dos quais nenhuma pessoa deve ser obrigada a viver e cabe ao Estado definir políticas públicas e leis que assegurem que esse mínimo jamais se tornará uma linha abaixo da qual o cidadão é mantido.

Sarlet e Figueiredo (2008, p. 32) enfatizam:

De qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência.

Nesse prisma, ter um local para viver dignamente, protegendo a família, é o mínimo que o Estado deve assegurar aos seus cidadãos. Na sequência ressalta-se um julgado do Distrito Federal, do ano de 2020, que destaca:

CIVIL, PROCESSO CIVIL E CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA. IMÓVEL EM CONSTRUÇÃO. FINALIDADE DE RESIDÊNCIA DA UNIDADE FAMILIAR. ÚNICO IMÓVEL. PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORÁVEL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. MÍNIMO EXISTENCIAL. SENTENÇA MANTIDA. 1. Estabelece o art. 675 do CPC de 2015 que os embargos podem ser opostos a qualquer tempo no processo de conhecimento enquanto não transitada em julgado a sentença e, no cumprimento de sentença ou no processo de execução, até 5 (cinco) dias depois da adjudicação, da alienação por iniciativa particular ou da arrematação, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta. O manejo do Instituto, no entanto, não deve ser limitado aos atos constritivos previstos no dispositivo, estando autorizada a oposição dos embargos sempre que ocorrer invasão da esfera jurídica de terceiro. 2. O apartamento a ser penhorado constitui o único bem do casal. Trata-se de apartamento adquirido pelo Programa Minha Casa Minha Vida, do qual é impossível participar se o candidato possuir outro imóvel ou se este não se destinar a residência. 3. Embora, a apelada não resida no apartamento, porque ainda está em construção, isto não encontra óbice para configurá-lo como bem de família, afinal tal qualificação pressupõe a análise, caso a caso, da finalidade realmente atribuída ao imóvel. Ou seja, ainda que o bem esteja em construção, é possível considerá-lo impenhorável visto que a família tem a intenção concreta de nele residir tão logo fique pronto. 4. Permitir a penhora do imóvel, único pertencente à unidade familiar, onde se estabelecerá o reduto de sua segurança, assim que as obras forem concluídas, seria erigir a patrimonialização das relações sociais a uma hierarquia superior à dignidade da pessoa humana, desprezando completamente ao fim almejado pela Lei 8.009/1990. Além disso, ainda destoaria integralmente da função social da propriedade, cuja consequência, neste caso, se constitui no direito social à moradia (art. 6º da CF/88) e na impenhorabilidade do lar. 5. Ora, se a forma derradeira do imóvel residencial familiar é impenhorável, também o será a coisa em construção, que ainda está na expectativa de alcançar a completude do respectivo projeto material. 6. A constrição

do bem, portanto, encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. 7.

Recurso parcialmente conhecido e desprovido (DISTRITO FEDERAL, TJ-DF, 2020, grifo nosso).

Verifica-se que a garantia do bem de família é uma forma de evitar que a entidade familiar tenha que viver com menos do que o mínimo para sua dignidade.

Toledo (2017, p. 104) destaca, porém, que não há uma unanimidade a respeito do que, exatamente, engloba o mínimo existencial, é difícil afirmar qual o mínimo de saúde, de educação, de emprego, de moradia ou dos demais direitos que deve se oferecer para a população para que viva bem.

No Brasil, a diversidade do estabelecimento do conteúdo do mínimo existencial é nitidamente maior. Há autores que nele inserem outros direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, o direito à assistência social e que propõem até direitos que não são fundamentais sociais, como o direito de acesso à justiça, o qual é objeto de um princípio formal. Há doutrinadores que saem do âmbito dos direitos fundamentais, definindo o mínimo existencial, por exemplo, sob prisma tributário, como proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas (TOLEDO, 2017, p. 104).

Assim, compreende-se que o tema ainda demanda de maiores esclarecimentos para que haja uma definição mais clara do que é o mínimo existencial e de que forma o Estado deve atuar para que consiga assegurar sua oferta a todos os brasileiros.

No tópico de estudos que segue adentra-se à avaliação específica da questão da impenhorabilidade do bem de família, tomando-se como base tanto a jurisprudência quanto a doutrina brasileira.

4 DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA

Esta etapa do estudo destaca a questão da impenhorabilidade do bem de família através de análise doutrinária e jurisprudencial. Inicia-se com análise da doutrina brasileira quanto à referida questão, com foco na manutenção do direito à moradia conforme rege a

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