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BERMAN E A ÉTICA DA TRADUÇÃO

PARTE 1: QUESTÕES ANALÍTICAS: MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS EM TEXACO

3. BERMAN E A ÉTICA DA TRADUÇÃO

Berman (2013) se propõe a estudar duas formas tradicionais e dominantes de tradução, que correspondem à tradução etnocêntrica e à tradução hipertextual, formas que obtiveram durante muitos anos através de seus editores, tradutores, críticos etc., muita representatividade. Nesse sentido, a tradução etnocêntrica é aquela que “traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e seus valores e considera o que se encontra fora dela – o Estrangeiro - como algo negativo ou no, máximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura” (BERMAN, 2013, p. 39). Assim, a tradução etnocêntrica também é considerada hipertextual porque ela existe a partir de outro texto. O original, a adaptação ou qualquer outro gênero são construtos hipertextuais. Dessa forma para Berman a “tradução etnocêntrica é necessariamente hipertextual, e a tradução hipertextual, necessariamente etnocêntrica” (BERMAN, 2013, p. 40). É sempre bom pontuar que a tradução não é e jamais será entendida aqui como uma produção em suspensão, mas como resultado de uma soma, de uma polissemia gritante que sempre se faz presente.

De tal modo, o texto como produção escrita é hipertextual e essa característica independe da vontade de quem o escreve; é uma ação intrínseca à escrita. A escolha reside apenas na opção de deixá-lo mais ou menos hipertextual conscientemente. A literatura antilhana, como objeto central da nossa pesquisa, em alguns casos, é hipertextual no sentido literal da palavra, quando acentua os aspectos que se somaram à sua cultura e aos seus valores e faz questão da existência de uma escrita plural. Aspectos que são encontrados como reivindicação no Éloge de la Créolité.

As noções de hipertextualidade e etnocentrismo estão intimamente ligadas à uma ética da tradução. Segundo o pensamento Bermaniano, a tradução considerada boa e ética seria uma tradução não etnocêntrica, que não tem a intenção de apagar a língua e a cultura do outro – do Estrangeiro. Esse pensamento sobre a tradução recusa qualquer adaptação ou adequação ao público, se opondo, por exemplo, às ideias defendidas, durante os séculos XVII e XVIII, pelas Belles infidèles que prezavam por traduções que se adequassem as normas da época e, sobretudo, as normas francesas. De forma análoga a tradução ruim seria

a etnocêntrica, que busca a clarificação do texto, deturpando de certa maneira, elementos centrais de uma sociedade, comunidade ou grupo social. É dessa forma que Berman (2013, p. 34) caracteriza três traços definidores desse tipo de tradução:

- Quando acentuamos o lado cultural, ela é etnocêntrica; - Quando falamos literalmente, ela é hipertextual; - Quando falamos filosoficamente, ela é platônica.

Essa relação entre etnocentrismo e hipertextualismo resulta, primeiramente, na composição de uma tradução que não choca com estranhamentos, não apresenta nenhuma marca de língua estrangeira ou que essas marcas sejam minimizadas o máximo possível, ou ainda, que a tradução deva ser limitada à língua do país de origem e seja normatizada a partir dos valores dessa língua-país. A segunda resultante possível nesse processo é a criação de uma tradução que ofereça ao público as “estranhezas”, aquilo que é desconhecido na cultura e no texto de chegada. Desse modo, acentuando a ideia de que as culturas não são idênticas e que a tradução não é adaptação, mas uma atividade que também é capaz de inserir novos valores na cultura para a qual se traduz.

A ética da tradução, nesse sentido, não se encontra enraizada em preceito preestabelecidos, sobretudo porque ela deve estar de acordo com o projeto de tradução que se tenciona seguir. Entretanto, a tradução que busca uma ética não apaga os elementos que compõem a sua origem e não obscurece o texto em detrimento de uma crença na superioridade das línguas, das literaturas e de uma cultura sobre a outra. Contudo, é preciso lembrar que toda ética, seja ela da tradução ou não, é influenciada por elementos exteriores, temporais, geográficos, entre outros, que influenciam a identidade cultural e o fazer tradutório de todas as partes do mundo. Consequentemente, as traduções também são influenciadas por esses aspectos-processos, que são essências para compreender o processo pelo qual as traduções têm passado durante toda sua história. Berman (2002), por exemplo, quando sustenta suas ideias o faz a partir do contexto romântico germânico e nessa circunstância, a tradução era entendida como uma atividade de expansão linguística, orientada por uma fidelidade à letra, pela construção de um espaço literário específico (BERMAN, 2002, p.54). De tal modo, o ato ético, na visão bermaniana, consiste em “reconhecer o Outro enquanto outro” (BERMAN, 2013, p. 95), o que resulta em uma conduta voluntária e certamente difícil pois não se trata de uma obrigação, mas de uma escolha. Essa escolha também pode residir (ou não) em ter como objetivo mostrar o

estrangeiro como estrangeiro ou apenas modifica-lo, esconde-lo, ou exclui-lo, se apropriando das suas obras. Se a opção é se abrir ao outro, nos abriremos também a língua e a todos os outros fatores que são responsáveis pela composição desses outros sistemas culturais.

Já Meschonnic (2007) entende que para existir uma ética da tradução é necessário primeiro pensar uma ética da linguagem. Para isso, deve-se pensar a linguagem a partir de uma ética. Ele a não defende com uma responsabilidade social, mas como um esforço de se tornar sujeito por outro sujeito, através da prática da tradução. E nesse sentido, percebemos a importância de se reconhecer o outro enquanto outro, como sujeito singular.

Certamente, a ética não se trata de um apanhado de regras fixas, como falamos anteriormente, mas se trata de uma conduta individual, construída a partir de outros elementos. Um desses elementos é a poética que, na visão de Meschonnic (2010), também é um tipo de ética, porque ela transforma o sujeito, tanto o que lê quanto o que escreve. Meschonnic (2010) não se opõe apenas a Berman (2013) quando afirma que ele ainda está preso ao signo, sem uma teoria da linguagem. Ele se opõe também a Anthony Pym (1997) que tenta chegar em uma responsabilidade do tradutor pautada por uma ética de critério profissional. Ambos permanecem, para Meschonnic, sem uma teoria da linguagem, deixando de lado a questão da poética, empenhado apenas na transmissão de informação. Nesse caso em específico, Pym (1997) se destaca mais que Berman (2013) por suas posições serem voltadas para o mercado da tradução. De modo geral, Meschonnic (2010) tenta mostrar a necessidade de reconhecer a ética através da manutenção de uma poética:

Trata-se de fazer aparecer a necessidade de um pensamento da poética, de um pensamento da linguagem para os tradutores como para todos aqueles que leem traduções. Fazer aparecer, por meio da observação do traduzir, o que é entendido por poética. A não confundir mais com a estilística. Como não se pode confundir língua com o discurso. Como se há de reconhecer o contínuo da linguagem, disfarçado pelo descontínuo (MESCHONNIC, 2010, p. XVIII).

Segundo Meschonnic (2010), a ética é, então, definida não como uma responsabilidade social, mas como uma pesquisa de um sujeito que se esforça para se constituir sujeito. Para o autor, a tradução é um ato ético porque este elemento está inserido no choque entre alteridade e identidade, e a identidade só se faz presente por meio da alteridade.

3.1 A mestiçagem e a impossibilidade de equivalência

François Laplantine & Alexis Nouss (2002) trabalharam a questão da mestiçagem em vários domínios do conhecimento, dentre eles podemos ressaltar o linguístico, o artístico, geográfico e o antropológico. Nesse meio também se insere a tradução podendo ser encarada como uma mestiçagem entre culturas, pois, assim como a mestiçagem, é um processo que se define no meio social e apresenta variantes de estilo, fidelidade e forma segundo as épocas.

Dentro do que se estabelece como equivalência e fidelidade, conceitos que sempre estiveram ligados à noção de tradução, encontramos sempre os pares língua-alvo e língua fonte, ou texto de partida e texto de chegada, numa tentativa de igualar as línguas. Nida (1964) e Catford (1965/1980) no que diz respeito a equivalência, por exemplo, são autores visitados. Parte da teoria de Catford está centrada na presença de dois termos de equivalência, a textual que é definida como qualquer texto ou pedaço de texto da língua meta que se modifica quando se transforma determinado pedaço da língua fonte. Para cada ocorrência na língua fonte haverá um equivalente textual na língua meta. O segundo conceito é o de correspondência formal, entendido como a relação entre classes gramaticais, que o autor define como qualquer categoria da língua meta que ocupa o mesmo lugar na língua fonte. Por outro lado, Nida (1964) desdobra a equivalência em dois conceitos principais, o de equivalência formal e de equivalência dinâmica. A equivalência formal está centrada em si, tanto na forma quanto em conteúdo. A equivalência dinâmica preocupa-se em resgatar o efeito pretendido pelo texto original.

Essas duas vertentes podem ter sido parâmetros de tradução durante muito tempo, mas não correspondem, do nosso ponto de vista, à melhor forma de traduzir um texto, sobretudo, porque essa ideia carrega consigo a premissa de que as línguas são sistemas fechados e igualitários. Acreditamos que as línguas, assim como as traduções, se encontram em um processo constante de mudanças, sendo, portanto impossível estabelecer uma língua como um sistema hermético. Do mesmo modo, encontramos a ideia da tradução fiel a uma certa fidelidade da tradução, que não deveria trair o texto original. Essa ideia acentua uma concepção tradicional que, segundo Laplantine & Nouss (2002), se apoia em três princípios:

O sentido seria dissociável da forma; o texto é redutível a um núcleo semântico sólido reconhecível pelo tradutor; a relação entre os dois enunciados é assimétrica, sendo que o importante é fazer passar a mensagem do texto-alvo. Ora, uma tal teoria está simultaneamente ferida de ideologia e de ideologismo: Trata-se de aceitar o estrangeiro retirando-lhe qualquer marca de estranheza, de aceitar o outro se ele tiver perdido qualquer marca de alteridade (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p. 39).

A tradução não pode apenas se tratar de um movimento de troca linguística ou de um suporte de transposição para alcançar outra língua, tradução não é transposição e não pode ser entendida como tal. Não se pode ignorar o contexto do texto e toda a rede que está envolvida nesse processo. Tratar a tradução com tamanha simplicidade é desvalorizar as culturas, as línguas e toda uma gama de elementos únicos; é rebaixar a grandeza do contato que a tradução permite reunir.

Se utilizarmos o exemplo dado por Walter Benjamin (2008) e retomado posteriormente por Oseki-Depré (2007) e Laplantine & Nouss (2002), em que definem que

brot e pain têm a mesma visada (referente), mas não tem o mesmo modo de visada (conotação) conseguimos perceber e fazer perceber o quão importante é levar em consideração outros elementos tradutórios que não se restringem às palavras apresentadas em um texto. As duas palavras apresentam a mesma essência, mas não apresentam a mesma função. Em alguns países podemos encontrar o milho exercendo a mesma função social do pão. O pão apresentará funções e essências diferentes em regiões diferentes. É nesse sentido que as línguas são complementares, porque elas apresentam caráter incompleto, logo, temos como consequência que toda tradução é provisória. Isso nos chama a atenção e nos mostra que não existe sentido único, platônico, romântico ou ideal, o que nos impulsiona a confirmar que é impossível invalidar o contexto, a cultura e a diferença.

Quando definimos a tradução como prática mestiça, nos inserimos no campo das possibilidades, do múltiplo, da viabilidade de uma tradução que acolhe, que permite aceitar a estranheza do outro, que considera não só a identidade, mas também a alteridade que todos os indivíduos e sociedades possuem. A mestiçagem na tradução, de maneira geral, não se trata de um conceito, mas de uma predisposição a aceitar que uma cultura é feita de diversas partes e, com a tradução, não poderia ser diferente, sobretudo, porque ela continua sendo uma construção da sociedade. Hoje, mais do que nunca, como bem ressalta Édouard Glissant (2005) deve-se buscar essa vinculação de aproximação entre as línguas e culturas. Acima de

tudo porque, ao contrário do que se pensa, a proximidade entre os povos é mais visível na língua e nos seus hábitos, e não no fator sanguíneo como querem fazer acreditar os biólogos.

Apesar de ser uma nova noção de tradução considerada por algumas correntes até mesmo idealista, a tradução mestiça pode ser encontrada em todos os textos existentes no mundo, porque, mesmo que ela queira se fantasiar de “belles infidèles”, ela carregará consigo as marcas da mestiçagem que são intrínsecas a todo texto, tradução ou original. Entretanto, é preciso lembrar também que essa ideia de uma relação aberta com o outro não é perfeitamente pacífica e/ou perfeitamente aceitável, ela se prefigura em sua maioria como um ideal. É preciso lembrar disso para não esquecer que os processos de tradução nunca foram pacíficos, eles sempre estiveram permeados de questões hegemônicas, étnicas e éticas.