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No livro A Mestiçagem de Laplantine & Nouss (2002), os autores apresentam uma abordagem antropológica e ampla sobre o conceito de mestiçagem, muitas vezes entendido como algo altamente imaginativo. Entretanto, só poderemos pensar de modo valorativo o conceito deles, quando o analisarmos profundamente. O termo vem do latim mixtus (mistura) “aparece pela primeira vez em espanhol e em português no contexto da colonização” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.7). É no campo da biologia, no qual Mendel foi especialista, que a noção toma uma forma sólida, designando os “cruzamentos genéticos e a produção de fenótipos” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.7), ou seja, trata de fenômenos físicos e cromáticos como cor da pele, formato do rosto e corpo. No entanto, os autores fazem uma crítica a essa acepção e propõem analisar o conceito de mestiçagem à luz de outros campos do saber, como a antropologia, a teologia, a arte e até mesmo a epistemologia. E assim salientam:

A mestiçagem nunca é uma noção apenas biológica. Ela somente existe na relação que estabelece com discursos proferidos sobre si próprios – que oscilam entre o repúdio puro e simples e a sua reivindicação – e face aos valores hegemônicos dominantes de identidade, estabilidade e anterioridade. [...] A mestiçagem, indevidamente compreendida, implicaria a existência de dois indivíduos originalmente “puros”, ou na generalidade, de um estado inicial, de um conjunto homogêneo – racial, social, cultural, linguístico -, que a determinado momento teria encontrado um outro conjunto, dando assim origem a um fenômeno “impuro” ou heterogêneo. (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, P.8)

Não há como pensar na mestiçagem como algo estritamente homogêneo ou heterogêneo, “ela oferece-se como uma terceira via entre a fusão totalizadora do homogêneo e a fragmentação diferencialista do heterogêneo” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p. 8). Os seus componentes mantêm a sua integridade. O que se coloca em causa na mestiçagem não são os elementos, o separado, o claro e o escuro, o verdadeiro e o análogo, a pureza da língua ou sua validade como raiz única e verdadeira; “A mestiçagem não é fusão, coesão, osmose [...]” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p. 9), antes disso, ela é confrontação, tensão e diálogo. Não se pode estabelecer o resultado de encontros que são desconhecidos, imprevisíveis e instáveis. De algum modo, sempre se designou que no caso de “misturas” entre “outros” povos, os indivíduos seriam reconhecidos por características marcadas, como por exemplo, o indivíduo mulato, crioulo e, portanto, mestiço. Mas não podemos partir do pressuposto de que todos os indivíduos sejam heterogêneos, que sempre existirá uma pureza para que se estabeleça um derivado preciso. “A grande e única regra da mestiçagem consiste

na ausência de regras. Nenhuma antecipação, nenhuma previsibilidade, são possíveis. Cada mestiçagem é única, particular, e traça seu próprio futuro”. (LAPLANINE; NOUSS, 2002, p.10). Essa é a característica de junção, de cada toque cultural que permeia todo o mundo.

O pensamento mestiço se opõe ao que se identifica com a estabilidade, com o fixo e rejeita aquilo que se apresenta como mecanicamente e previsivelmente resultante. Reconhecemos o mestiço por um movimento de tensão, de oscilação-tensão que se manifesta através de formas provisórias, mas não permanentes. Organizam-se através da alternância e da mudança. O mestiço pode nascer da profusão de cores, de ritmos e sentidos.

A tradução pode ser considerada como uma mestiçagem de culturas se tomarmos em consideração o sentido dado por François Laplantine & Alexis Nouss, de não confundir a mestiçagem com as noções de ―mistura ou ―hibridez porque estes termos estão longe do sentido de mestiçagem no que diz respeito à reflexão antropológica e tradutológica:

A mestiçagem, que não é substância, nem essência, nem conteúdo, nem sequer a forma que contém, não é, pois, em rigor “alguma coisa”. Ela só existe enquanto exterioridade e alteridade, ou seja, de um outro modo, e nunca no estado puro, intacto ou equivalente ao que fora anteriormente. Mas, não sendo identidade, também não é alteridade, antes identidade e alteridade combinadas, intricada inclusive no que recusa a mistura e procura tornar-se distinto. (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.82)

A mestiçagem, assim como a tradução, não é um estado, nem uma condição, é um processo. O sujeito e a tradução contemporânea devem ter consciência de que são frutos de um fluxo identitário, de uma construção permanente à multiplicidade de diversas identidades. A tradução, entre duas línguas e duas ou mais culturas, é um modelo dessa multiplicidade de identidades.

A tradução não pode ser um processo puramente técnico porque não pode ser neutra, ela é produto humano, sendo, portanto, reflexo das experiências transpostas no papel. Traduzir é pensar a cultura como um encontro com a alteridade porque traduzir sem cultura é não traduzir. Não se pode traduzir quando se pensa em um universo unitário. O papel da tradução nesse sentido é de:

Lembrar que é possível dizer o mundo de outra forma, com outro acento, outras cores. Fazer entender na sua própria língua, a língua outra, e fazer entender a estranheza que enriquecerá as possibilidades de expressão de identidade do sujeito. [...] A tradução é diálogo entre as línguas. Ora trata-se do diálogo da mesma maneira que o encontro e a viagem: seu valor se dá na distância percorrida. (LAPLANTINE; NOUSS, 2001, p. 41, tradução nossa)32.

32« rappeler qu‘il est possible de dire le monde d‘une autre façon, avec un autre accent, d‘autres couleurs.Faire

entendre dans sa propre langue, la langue autre, y faire entrer de l‘étrangeté qui enrichira les possibilités de l‘expression et de l‘identité du sujet. [...] La traduction est dialogue entre les langues. Or il en va du dialogue

O fazer tradutório permite que os povos se unam num movimento de cumplicidade, mostrando que cada povo tem à sua maneira única de se expressar, que não há estética inferior ou superior diante da multiplicidade de discursos existentes.

Laplantine & Nouss (2002) nos lembram que a mestiçagem está longe de ser valorizada e bem vista, mesmo diante de culturas que rejeitam a ideia de identidade única. Esse é o caso do Caribe e grande parte do Brasil, por exemplo. A “condição crioula”, lembram os autores, não poderá deixar de lado que durante anos de história, mesmo nos países classificados como mestiços – ou seja, formados por um sistema racial a partir do encontro (quase nunca amigável) entre os senhores europeus e os escravos africanos -, os brancos negaram extremamente o componente negro da sociedade. Para os autores, os brancos “mantiveram uma obsessão cromática, uma verdadeira fobia da cor negra, que lhe deu lugar à construção de numerosas escalas de cor que contêm diversas dezenas de gradações, do branco mais claro ao negro mais retinto” (LAPLANTINE, NOUSS, 2002, p. 29) configurando assim, uma digressão entre povos.

1.1 As mestiçagens linguísticas: As línguas crioulas

Laplantine & Nouss (2002) explicam que fica fácil entender Babel como um mito mestiço. Da unicidade e validade de uma única língua, segundo a história bíblica, surgem uma quantidade significativa de idiomas que se espalham pelos quatros cantos da terra. Essa multiplicidade abre espaço para diálogos, permite o entrelaçamento entre todas elas e mostra sua complementaridade através do exercício da linguagem.

O contato entre as línguas permite a troca de informações, de novas formas de entendimento. Muitas vezes esse contato – na maioria deles – se dá de maneira violenta, resistente como afirma Glissant (2005) ao dizer que o objetivo maior de qualquer literatura – produto de uma língua específica – é produzir o que ele chama de caos mundo. A literatura sempre defende uma concepção de mundo, a união entre as culturas, respeitando as suas singularidades e observando que isso é um processo natural, mas nem sempre consciente. É, ao mesmo tempo, afirmar e reconhecer que a literatura ou o resultado de contatos não é feito

comme de la rencontre et du voyage : sa valeur tient dans la distance parcourue» (Laplantine et Nouss, 1997, p. 41.)

em suspensão, no vazio. Ela provém de um lugar e nas palavras de Glissant (2005) esse lugar seria a totalidade-mundo.