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A POÉTICA DA CRIOULIZAÇÃO E DA TRADUÇÃO

PARTE 1: QUESTÕES ANALÍTICAS: MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS EM TEXACO

2. A POÉTICA DA CRIOULIZAÇÃO E DA TRADUÇÃO

A defesa da língua crioula, dos dizeres crioulos, das tradições crioulas se fazem presente em cada momento do Éloge de la créolité. Essa prática reivindicativa se inicia na ideia de poética da Relação de Édouard Glissant (2005), que não busca ser uma poética da neutralidade, do individual, mas do diverso. Para o autor, para que haja relação é necessário, pelo menos, duas identidades “donas de si que aceitem transformar-se ao permutar com o outro” (GLISSANT, 2005, p. 46). É desse modo que a literatura constrói as suas poéticas, através das relações que surgem na sociedade. Essa relação se dá no contato com o outro, a partir das trocas, pacíficas ou não de conhecimento, trocas geográficas, dos roubos ou das usurpações. Essa poética, que se vê expressivamente na língua, defende a passagem por todas as línguas do mundo e somente assim, na visão de Glissant, é possível reconhecer e defender uma língua específica.

A poética crioula se perfaz pela presença do contador de histórias como define Glissant (2005, p. 46) ao dizer que “a arte do contador de histórias crioulo é feita de derivas e ao mesmo tempo de acumulações”. Essa junção vai desde a construção de uma linguagem, criada a partir do uso que os falantes fazem da língua, ao silêncio causado pelas idas e vindas dessa construção linguística que se tece a partir de uma rama de línguas, principalmente, a inglesa, a francesa e a espanhola. Sobre essa linguagem que tende a uma junção, Glissant afirma:

E o maravilhoso é que essa exploração de uma linguagem através das diversas línguas utilizadas, e para além delas, não perverte em nada nenhuma dessas línguas e acrescenta a cada uma delas, convocando-as todas em um ponto focal, um lugar de mistério ou de magia, onde, se encontrando, elas enfim se “compreendem” (GLISSANT,2005, p. 46).

Esse tipo de pensamento está na contracorrente do que o autor chama de pensamento de sistema ou pensamento continental, ou seja, um sistema que busca falar sobre as fundações, livros fundadores, sociedades fundadoras e a partir delas construir pensamentos de base como, por exemplo, a existência de cânones literários que buscam, até certo ponto, estabelecer um parâmetro de escrita, e isto até onde pode se observar prediz uma generalização. Edward Said (1995), em seu livro Cultura e imperialismo, afirma que os cânones literários e, de modo geral, a literatura ocidental, antecederam e impuseram através da sua estética e poética a submissão de outros valores em que “os discursos universalizantes da Europa e Estados Unidos modernos, sem nenhuma exceção significativa, pressupõem silêncio, voluntário ou não, do mundo não europeu” (SAID, 1995, p.86). Hoje, segundo Glissant (2005), esse sistema fracassou porque ele não dá conta de acompanhar a não generalização desse sistema. E dessa forma afirmamos também que não se pode pensar na poética e, certamente na estética, como fundações acabadas. Pensando em um outro sistema que dê conta de abarcar essa imprevisibilidade, a mesma da mestiçagem, Glissant fala em pensamento “arquipélago”, ou seja, um pensamento que não se pretende sistemático e que está aberto a imprevisibilidade do que ele chama de totalidade-mundo, que faz coincidir também escrita e oralidade, vejam bem, trata-se de um pensamento e não um sistema de pensamento que prescindiria uma conduta preestabelecida. Com essa nova forma de pensar, deixaríamos para trás a ideia de pensamento de sistema ou continental em que as línguas não “francas” fossem classificadas como línguas minoritárias ou ineficientes. Para que essa ação se concretize é necessário que essas línguas dialoguem e se transformem entre si.

A poética crioula se acentua na presença e na requisição do outro, porque ele faz com que se amplie a dimensão da relação para usar o próprio termo de Glissant. Ao mesmo tempo que o “outro” pode se apresentar como uma ameaça, ele também se apresenta como completude, não no sentido de uma ausência que foi preenchida, mas no sentido de que todo contato apresenta uma resultante, seja ela negativa ou positiva, ou até mesmo, as duas resultantes em uma. Sobre essa relação com o outro, Glissant afirma: “como ser si mesmo sem fechar-se ao outro; e como consentir na existência do outro, na existência de todos os outros, sem renunciar a si mesmo?” (GLISSANT, 2005, p. 41). Essa questão perturba não apenas os escritores-militantes, mas toda uma gama de pensadores-leitores-tradutores que se preocupam em defender a existência de uma identidade múltipla que não se vê dentro de um universal trivializado. O outro se firma por ser o seu tudo e o seu nada, porque ao passo que

o outro o destrói, o outro também compõe toda essa sociedade e, consequentemente, essa poética múltipla.

Essa representação poética crioula se assemelha ao barroco segundo Glissant (2005), sobretudo, porque o barroco se opõe ao clássico. Essa vertente considera que todo e qualquer valor tem a sua grandeza, sua espessura, e que será colocada em relação com outros valores também particulares, não existindo a possibilidade de um se sobrepor ao outro como valor universal. Laplantine & Nous (2011) também compartilham do mesmo pensamento afirmando que “essa concepção de um mundo aberto ao infinito no qual o homem não é mais o centro e que se aplica a criar “formas que voam” e não “formas que pesam” como na estética clássica, atravessa todos os gêneros44” (LAPLANTINE; NOUSS, 2001, tradução

nossa, p.101). Nesse sentido, tanto a poética crioula quanto a própria crioulização é barroca. Vale lembrar, mais uma vez, que não se trata de um movimento fleumático, essa construção poética se faz tanto na luta quanto na paz. Apesar de não poder garantir os resultados dos contatos que resultam nessa poética, podemos supor que a violência e a resistência contra a colonização fizeram com que essa poética crioula obtivesse determinadas especificidades. O próprio Glissant (2005) defende que existe a possibilidade de uma poética crioula sem violência. Entretanto, a grande questão é que até o momento não foi possível encontrar exemplos de crioulizações pacíficas e que não carreguem consigo as marcas dessa violência. Essa poética que se mostra cada vez mais engajada faz parte do papel da literatura de defender o seu lugar no mundo. Glissant (2005) afirma que o maior objetivo de toda e qualquer literatura que se possa propor é o “caos-mundo”. Destarte, a literatura sempre defendeu uma concepção de mundo, o escritor sua visão de mundo e um discurso. Essas relações de defesa estão ligadas ao pensamento de angústia, a necessidade de fazer com que valores e ações sejam reconhecidas dentro e fora do mundo. Dessa forma, as poéticas vão se construindo, sobretudo, porque cada sociedade busca uma expressão poética diferenciada. Praticar uma poética da totalidade-mundo, do caos-mundo é reunir de maneira resgatável o lugar de onde uma poética ou uma literatura é enunciada. Como nos lembra Glissant a esse propósito:

44Cette conception d’un monde ouvert à l’infini dans lequel l’homme n’est plus le centre et qui s’applique à

créer des « formes qui s’envolent » et non pas des « formes que pèsent » comme dans l’esthétique classique, traverse tous les genres.

A literatura não é produzida em suspensão, não se trata de algo em suspensão no ar. Ela provém de um lugar, há um lugar incontornável de emissão da obra literária. Mas, nos nossos dias, a obra literária convirá tanto mais ao lugar quando mais estabelecer uma relação entre esse lugar e a totalidade-mundo (GLISSANT, 2005, p.38).

A poética do caos-mundo ou a relação caos-mundo se apoia novamente na ideia da abertura, não se estabelece dentro de um sistema hermético e consequentemente não pode ser pensada sem a possibilidade de abertura. Glissant ao desenvolver a ideia da poética do caos se baseia no livro Des rythmes au chãos [dos ritmos ao caos] (1994) de Pierre Bergé, Yves Pomeau e Dominique Dubois-Gance, no qual procuram abordar essa questão a partir do reconhecimento de que as teorias sobre o caos são temas relativos não apenas às ciências, mas sobretudo à filosofia da ciência. Apesar de parecer ingênua a ideia de abertura a outros povos, línguas, sociedade ou o que mais se queira, ela se torna completamente entendível quando percebemos que a abertura sempre existirá, e aqui, enfatizamos “sempre”, mesmo que ela se construa dentro de um campo de exploração, de imposição ou até mesmo de alienação. É preciso compreender essa assertiva para que não se concretize a ideia de que o mundo é composto de sistemas lineares completamente fechados.

A noção de poética surge a partir de um sonho, de um imaginário que se torna alcançável na prática. Apesar de ser um elemento intrínseco a toda e qualquer literatura, ela é uma característica moldável e extensiva. Glissant (2005) defende que a poética “não é uma arte do sonho e da ilusão, mas sim uma maneira de conceber-se a si mesmo, de conceber a relação consigo mesmo e com o outro e expressá-la. Toda poética constitui uma rede” (GLISSANT, 2005, p. 133). A semelhança entre a rede e a constituição de uma identidade raiz/rizoma, como vimos no capítulo dois, não é pífia, trata-se de uma relação que sempre se estabeleceu e se vê perpétua.

Dentro desse campo a tradução se estabelece como poética e, se para Glissant (2005) a tradução é uma das artes futuras, é porque ela se encontra em relação com todas as línguas do mundo. Ela não só age como uma poética mestiça, mas como uma poética da/na relação. A sua função não se restringe a passagem de uma língua para outra ou apenas do sentido ou do discurso. Trata-se de uma poética que se vê por completa, por mais que os seus elementos se moldem de maneiras diferentes diante de realidades diversas. É nesse meio de diversidades que essa poética da relação na tradução transparece a sua riqueza e infinidade de possibilidades que não se restringe também a uma relação linguística, mas de contato entre línguas, entre pessoas e, sobretudo, entre culturas e sociedades. Dentro dessa

perspectiva Glissant (2005) se aproxima de Walter Benjamin (2008) porque também considera tradução fuga e ao mesmo tempo renúncia que “corresponde à maneira de pensar que apenas roça, toca de leva, ou seja, ela corresponde ao pensamento arquipélago graças ao qual recompomos as paisagens do mundo” (GLISSANT, 2005, p.50). Nesse sentido, tradução e poética vivem intensamente em conjunto, transformando os valores e ampliando o arcabouço que se inicia no texto original e se prolonga dentro de um processo incessante de retraduções, de novos olhares e de renovação.

2.1 A poética e o grito poético

Glissant (2005), Laplantine & Nouss (2002) apontam que foram as comunidades iniciantes, denominadas atávicas, que formataram um modelo de grito poético cuja função é reunir o lugar, a morada, a essência da comunidade; essa mesma função exclui aquilo que a comunidade não é. O lírico, o filosófico, o teatral e vários outros conceitos são estabelecidos a partir dessas poéticas comuns. Em todos os grandes livros da humanidade está presente, de maneira incontestável, o grito poético. Esse grito está presente, segundo Glissant (2005) em todas as comunidades atávicas, para citar apenas alguns exemplos, o Antigo Testamento, a Ilíada e a Odisseia, a Canção de Rolando são os que mais se destacam. O grito poético, apesar de hoje estar ligado às maiores obras do mundo, é segundo Glissant (2005) o grito de uma consciência excludente. Sobretudo porque as maiores obras da humanidade, em algum momento da história, tiveram sua autenticidade questionada.

De certo modo, o grito poético dos escritores antilhanos verbalizado pelo contador de histórias “grita” porque transforma o seu espaço, a língua. Ele digna-se, no que diz respeito à língua francesa, de elementos que não fazem parte dessa língua, e isso vai desde procedimentos de duplicação, mudança de sintaxe, utilização de reiteração, entre outros elementos que aos poucos vão constituindo também novas poéticas e novas formas de se ler o mundo. Nessa leitura, faz-se necessário entender as profusões dessas relações de transformação e o quão abrangente elas podem ser. O grito poético, assim como a poética, não faz parte de um sistema, de uma fôrma de pensamento, eles se encontram dentro de um estágio de construção permanente. Condição talvez seja a palavra mais adequada, ao invés de “estágio”, que se assemelha à ideia de sendos de Glissant, tratando-se de um continuum e não de uma matemática precisa. Concebemos uma outra interpretação para o grito poético, mas que ainda permanece dentro da sua ideia original. Gritar significaria reivindicar nessa

segunda interpretação, reassumir o que é de direito, o que está intrínseco na escrita e no falar martinicano, nada mais é do que externar, e sejamos enfáticos, “externar para fora” todos os desejos e anseios que foram reprimidos em falas, gestos e ações afrancesadas.