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Em seu livro Introdução a uma poética da diversidade (2005), no capítulo I, onde fala sobre as crioulizações no Caribe e nas Américas, Glissant define três tipos de Américas: a América autóctone, dos povos-testemunhas, que sempre estiveram naquele determinado local e que Glissant nomeia de Meso-América; a América dos provenientes da Europa que preservavam em determinado continente seus costumes, chamados de Euro-América, representada por Quebec, Canadá, EUA e uma parte cultural da Argentina e do Chile; a terceira América que Glissant chama de América da crioulização, a Neo-América que compreende o Caribe, nordeste do Brasil, as Guianas, Curaçao, o sul dos EUA, a parte caribenha da Venezuela e da Colômbia, uma parte da América Central e do México. Nesses continentes existem conflitos de influência porque não existem fronteiras, existem imbricações entre os três tipos de Américas e elas acabam se influenciando, fazendo com que exista uma relação de tal modo que ao mesmo tempo em que continuam a absorver os empréstimos da meso e da euro-América, tendem a influenciar as outras Américas e se ligam, cada vez mais à Neo-América, ou seja, à crioulização.

Da mesma forma são elucidados três tipos de povoadores na Américas: o “migrante armado” também reconhecido como o “migrante fundador”, que seria aquele que desembarca ou que sobe o rio Saint Laurent, chega com suas armas e se instala em determinado local. O “migrante familiar”, aquele que chega com seus hábitos alimentares, suas panelas e fotos de família. E o “migrante nu”, aquele que foi colocado à força no continente e que constitui boa parte daquele povoamento. Nesse processo ocorre o encontro de elementos culturais vindos de lugares completamente diferentes que se crioulizam, se imbricam e se confundem, dando resultado a algo imprevisível, novo. É por essa razão que Glissant sustenta a tese de que o mundo hoje se criouliza:

A crioulização que se dá na Neo-América e que se estende pelas outras Américas é a mesma que vem acontecendo no mundo inteiro. A tese que defenderei é a que o mundo se criouliza. Isto é: hoje, as culturas do mundo colocadas em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente consciente transformando-se, permutando-se entre si, através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de avanços de consciência e de esperança que nos permitem dizer – ser utópico e mesmo sendo-o que as humanidades de hoje estão abandonando dificilmente algo em que se obstinavam há muito tempo – a crença de que a identidade de um ser só é válida e reconhecível se for exclusiva,

diferente da identidade de todos os outros seres possíveis (GLISSANT, 2005, p.17).

Glissant (2005) cria a palavra crioulização a partir do termo crioulo e das realidades crioulas. Essa língua é aquela composta, nascida do contato entre elementos linguísticos absolutamente heterogêneos uns aos outros. Ela não é uma composição heterogênica, sem influências. Muito pelo contrário, essa língua, como todas as outras, sofreu influências linguísticas e sociais, o que fez com que ela se transformasse no que é hoje, mesmo que, de certa maneira, exista uma recusa, por parte de muitos falantes que não a consideram uma língua “pura”. É por esse motivo também que o autor afirma que o mundo se criouliza, que os elementos mais heterogêneos estão sendo colocados em relação. Essa percepção resulta no que Glissant chama “formas de culturas atávicas e culturas compósitas”. (GLISSANT, 2005, p.24)

O autorafirma que na crioulização, ao contrário da mestiçagem, os elementos heterogêneos que são colocados em relação “se intervalorizam”, dito de outra forma, não há degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura de dentro para fora e nem de fora para dentro. Dessa forma é possível calcular os efeitos da mestiçagem por enxertia, que originalmente consiste na união dos tecidos de diferentes plantas. Mas então o que seria a mestiçagem ou a crioulização? “A crioulização é a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade” nos diz Glissant e ainda:

Ao contrário da mestiçagem, a crioulização reage a imprevisibilidade; ela cria nas Américas microclimas culturais e linguísticos absolutamente inesperados, lugares nos quais as repercussões das línguas umas sobre as outras, ou das culturas umas sobre as outras, são abruptas. (GLISSANT, 2005, p.21)

É o surgimento do novo que faz com que um mais um não seja mais dois; como uma resultante única que permanece inalterada até que outro elemento intervenha e altere o seu resultado, transformando-o em algo imprevisível. Nesse sentido o processo de crioulização defendido por Glissant se aproxima do conceito de mestiçagem de Laplantine & Nouss, fazendo a mesma crítica à noção de mestiçagem biológica.

A crioulização na Martinica se vivencia de duas maneiras segundo Glissant (2005): o aspecto negativo da escravidão e subjugação e, nos dias atuais, outro aspecto ruim, que é a assimilação à cultura francesa. Mesmo que isso seja visto de forma negativa, como apagamento da identidade a crioulização “quando praticada de forma negativa, continua a avançar” (GLISSANT, 2005, p. 33). De certa forma, é por esse motivo que muitos escritores caribenhos, acabaram se voltando para fora, para o estrangeiro, como quando Césaire se

voltou para a África e Fanon para Argélia, como forma de ver primeiramente os problemas de fora, para depois se espelharem e verem o problema das Antilhas. A segunda vivência da crioulização na Martinica de maneira positiva seria viver a crioulização de uma maneira real, porém dolorosa, que configuraria para as futuras gerações um novo pensar sobre as questões identitárias e linguísticas.

O migrante para Glissant recompõe através de rastros/resíduos manifestações artísticas, uma língua e outros componentes que poderiam ser válidos para todos. Um exemplo pertinente é o surgimento do jazz, constituído a partir dos rastros/resíduos de ritmos fundamentais adotados pelos africanos. Assim, da mesma forma, linguagens crioulas e formas de arte foram criadas ou incorporadas em outras culturas. Esses fenômenos de crioulização são importantes do ponto de vista Glissantiano porque permitem praticar uma abordagem que passa por uma reconstrução das humanidades presentes hoje no mundo:

Porque a crioulização supõe que os elementos culturais colocados em presença uns dos outros devam ser obrigatoriamente “equivalentes em valor” para que essa crioulização se efetue realmente. Isso significa que, se nos elementos culturais colocados em relação, alguns são inferiorizados em relação a outros, a crioulização não se dá verdadeiramente. Ela se dá, mas de modo desequilibrado, que deixa a desejar, e de maneira injusta (GLISSANT, 2005, p.19, grifos do autor).

É por esse motivo que em países oriundos do processo de colonização em que os elementos de rastro/resíduo foram depreciados uns em relação aos outros causaram um resíduo amargo, uma crioulização negativa porque não se estabeleceu uma relação branda, mas um conflito, uma relação de imposição. Em suma, a crioulização também se dá no campo amargo da interiorização.

2.1 A crioulização das línguas

A palavra “crioulo”, em particular quando falamos de crioulo antilhano designa primeiramente, uma pessoa branca nascida nas colônias intertropicais (nas Antilhas francesas: um béké33). É também o nome da língua no contexto da colonização europeia; “O

termo “crioulo” teve primeiro um sentido antropológico (nativo das colônias) e o sentido linguístico, aparecido tardiamente, mantêm naturalmente a noção mestiça” (LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p. 36).

Laplantine (2002, p. 37) fala em três modelos de língua franca: (1) as línguas que conquistaram um status através de um jogo de poder, político ou cultural (grego, latim, árabe, francês, inglês); (2) as línguas artificiais, racionais e ideologicamente construídas (volapuk, esperanto); (3) as pidgins e as crioulas. A crioulização das línguas seria produto de processos de aprendizagem, apropriação, modificação, autonomização da língua dos colonos. O crioulo seria composto de uma série de tensões não só ligadas às questões históricas, mas também sua oralidade, sua escrita, sua poética, seu arcaísmo e seu modernismo. Aqui a crioulização da língua ultrapassa as particularidades “etnolinguísticas” e é essa estética livre que os antilhanos de língua crioula partilham.

Glissant (2005) chama de língua crioula aquela cujos elementos constituintes são heterogêneos uns aos outros. Uma língua crioula deve ser pelo menos bífida, ou seja, possuir pelo menos dois elementos constitutivos.

A línguas crioulas provêm do choque, da consumpção, da consumação recíproca de elementos linguísticos, de início absolutamente heterogêneos uns aos outros, com uma resultante imprevisível. Uma língua crioula não é portanto nem resultado dessa extraordinária operação que os poetas jamaicanos praticam voluntariamente e de maneira decidida na língua inglesa, nem um pidgin, nem um dialeto. É algo novo, de que tomamos consciência, mas algo que não podemos dizer tratar-se de uma operação original, porque quando estudamos as origens de toda e qualquer língua, inclusive a francesa, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma língua crioula (GLISSANT, 2005, p. 23).

Uma língua nunca será fruto de uma raiz única. A constituição e a evolução das línguas demonstram que é impossível permanecer estático diante das evoluções. A língua crioula não é um aspecto “local” segundo o pensamento de Glissant. Hoje o que denominamos línguas crioulas certamente já foram línguas locais, porém toda língua originalmente é crioula. De certo modo, os falantes quando se apropriam da língua querem considerá-la como uma língua específica, como sendo “ditada por um deus, ou seja, que sua língua seja a língua da identidade exclusiva” (GLISSANT, 2005, p. 31). Essa apropriação relacionada ao divino é que distancia as línguas uma das outras, criando desse modo, hierarquias quase imutáveis.