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CAPÍTULO 1 O BID E A AMÉRICA LATINA

1.4 O BID NA ERA NEOLIBERAL: UMA AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO SEM

1.4.1 O BID e os mecanismos de difusão do Neoliberalismo

No Pós-Guerra Fria, o BID tornou-se um importante irradiador de ideias e práticas neoliberais e colaborador para a reprodução delas na América Latina. Com isso, não se pretende defender que ele era o único responsável pela difusão dessas ideias na região, nem apenas um mero instrumento neoimperialista, como em uma leitura mais estrita à Susan Strange da Teoria da Estabilidade Hegemônica,36 exclusivamente a serviço dos interesses dos Estados Unidos. A atribuição da direção causal na difusão do neoliberalismo, ou seja, se o banco adaptou-se às mudanças na região ou se a região foi mudada pelo banco é um assunto complexo e controverso,37 o que será melhor debatido no capítulo seguinte quando se compararem as relações BID-Brasil e BID-Argentina. O recorte nessa seção refere-se, pelo menos, a três mecanismos de disseminação e/ou reforço de ideias e práticas neoliberais (sob a forma de tipos-ideais weberianos) de disseminação e/ou reforço de ideias e práticas neoliberais: a difusão-imposição, a difusão pela oferta e a difusão pela discursividade e cooptação.

A “difusão-imposição”38

ou condicionalidade, a mais famigerada entre os três mecanismos, diz respeito aos “créditos que são outorgados a um governo sob a condição do cumprimento de uma série de reformas estatais” (MANZO, 2011: 17). Nessa tese, diferenciam-se as condicionalidades propriamente ditas (sentido estrito) e as exigências ordinárias (sentido amplo), que são dois termos usados indiscriminada e intercambiavelmente em muitos textos. Dessa forma, o requisito de um estudo de viabilidade econômica para a aprovação ou o cumprimento de um cronograma de um determinado projeto é uma exigência, pois não implica um compromisso de ajuste estrutural regido por princípios neoclássicos.

Por seu potencial mais impositivo, uma vez que pode limitar o conjunto de possibilidades na elaboração de políticas públicas (o que pode ser altamente problemático em contextos de crises agudas), é comumente acusado de ser uma forma ingerência, afronta à

36 Para Susan Strange (1982), entre os principais propósitos dos regimes e das organizações internacionais, destaca-se o seu caráter estratégico como instrumento da potência dominante.

37 Essa controvérsia será melhor escrutinada no próximo capítulo quando foremanalisados os casos das relações BID-Brasil e BID-Argentina.

soberania ou submissão aos interesses das grandes potências. Embora as condicionalidades mais atacadas por sindicados, partidos políticos, mídia e intelectuais tivessem sido as do FMI e do Banco Mundial, o BID também impunha algumas condicionalidades39, a maioria das quais nos cofinaciamentos de parcerias entre o BID e o Banco Mundial. Além disso, alguns estudos de casos apontam um altíssimo grau de coordenação entre essas três organizações internacionais, na qual os critérios de empréstimos seriam delineados pelo FMI40 e os desembolsos feitos pelo Banco Mundial e pelo BID, fato ao qual Acuña e Tuozzo (2000: 441; 443) chamam de “divisão do trabalho” entre as instituições financeiras multilaterais.

Se, por um lado, os críticos da construção de consenso latino-americano em torno do neoliberalismo argumentam que se ele existisse, as condicionalidades não seriam necessárias; por outro, isso não significa que elas eram uma maldição inescapável. Alguns países, como no caso do Brasil a ser comentado mais a frente, tiveram uma política deliberada de evitá-las41 para manter uma relativa autonomia e margem de manobra na promoção de suas reformas.42

A difusão pela oferta diz respeito à disponibilização de programas que contém princípios neoliberais como a descentralização, a privatização de empresas estatais, o Estado mínimo, a administração pública regida por uma lógica de administração privada, etc. Caberia, pois, aos próprios países discricionariamente recorrer a esses programas conforme suas próprias dinâmicas e timing. Assim, esse mecanismo seria privilegiado na observação de convergência entre o que os países demandavam e o que o banco oferecia, isto é, da complementaridade institucional entre eles.

Dentre as categorias de desembolso do BID, provavelmente a mais representativa desse mecanismo é a de “modernização de estado”. Introduzida no início dos anos noventa e promovida a uma das prioridades máximas no Oitavo Aumento de Capital do BID em 1995, contém grande parte dos programas dessa natureza. É uma categoria dinâmica, atualizada constantemente e testemunha das diferentes gerações de reforma de estado e das suas

39 É importante ressaltar que nos Relatórios Anuais do BID, utilizado como base de pesquisa para muitos acadêmicos, o termo “condicionalidade” raramente aparece.

40 É bom salientar que, segundo Joseph Stiglitz (2002), o FMI estava orientado por uma idea de um “trickle down plus”, de que estabilidade macroeconômica era pré-requisito para o crescimento econômico que, por sua vez, era uma condição necessária e suficiente para a redução da pobreza.

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No ano de 1995, foi aprovada uma resolução (69/95) que determinava que dívida externa só podia ser contraída mediante autorização do legislativo.

42 Essa estratégia de buscar determinados programas e esquivar-se de outros é chamada por DE SARDAN (2005) de “seletividade”, que juntamente com o “sidetracking” (desvio dos recursos de seu objetivo declarado) e a “resistência passiva” matizam a suposta unidirecionalidade e hierarquia na relação entre agências de desenvolvimento e recipiendários.

mudanças de foco ao longo do tempo – da promoção dos mecanismos alocativos de mercado ao trinômio participação, transparência e descentralização como conditio sine qua non de sociedades bem-sucedidas e do Estado de administração racional-legal weberiana com foco nos procedimentos à administração pública balizada por metas e resultados. A descrição em Bradford Jr (1994: 33) sintetiza bem o Estado o qual essa categoria deveria ajudar a forjar:

“Esse novo estado, que busca complementaridade com seus cidadãos e com o setor privado, é mais empreendedor que burocrático. Tende mais a empoderar seus cidadãos, empresas e organizações sociais do que controlá-los ou subsidiá-los. Esforça-se por antecipar os problemas em vez de apenas tentar resolvê-los quando eles aparecem. Está mais preocupado em gerar recursos que consumi-los. Descentraliza autoridade e adota formas mais participativas de administração. Promove competição entre produtores e busca que suas agências forneçam bons serviços a seus cidadãos. Prefere as agências focadas em resultados do que aquelas que visam apenas à regulação burocrática. É dedicada não apenas em prover serviços públicos, mas servir como catalisador do empoderamento de setores econômicos e sociais de modo que eles possam resolver seus problemas por si mesmos. (...)”

Esses programas foram recebidos com diferentes graus de entusiasmo e desconfiança, refletindo a própria heterogeneidade da América Latina. Alguns países fizeram amplo uso deles, notavelmente a Argentina, e outros recorreram mais modestamente como o Brasil, que apesar de ser a maior economia latino-americana ocupou a sexta posição nos desembolsos totais da Modernização de Estado no período entre 1989 e 2002.

Quadro 6 - Desembolsos na (meta)categoria “Modernização de Estado” entre 1989 a 2002 Posição em relação ao valor total País Nº de Projetos Concluídos Valor Total (em milhões de dólares) 1 Argentina 44 7592 2 México 16 2415 3 Peru 47 2181 4 Colômbia 51 1879 5 Venezuela 32 1531 6 Brasil 39 1140 7 Uruguai 22 657 8 Equador 54 490 9 Guatemala 67 485 10 Panamá 24 471 11 Chile 15 447 12 Bolivia 56 414 13 El Salvador 41 282 14 Jamaica 15 256 15 Honduras 50 250 16 Rep. Dominicana 51 201

17 Paraguai 46 139 18 Costa Rica 25 134 19 Trinidad e Tobago 14 87 20 Haiti 26 62 21 Barbados 12 53 22 Guiana 11 47 23 Suriname 21 19 24 Bahamas 10 4 25 Belize 15 2

Fonte: Elaboração própria com base nos dados coletados na página de acompanhamento do BID

No entanto, a Modernização de Estado não era o único mecanismo de difusão do Neoliberalismo. Também é importante ressaltar os programas da área de educação sobre os quais há uma vasta literatura acadêmica crítica aos princípios neles contidos (em geral estudos de caso).43 Em geral, argumenta-se que a formação integral, crítica ou humanística foi posta em segundo plano em favor de um instrumental voltado às necessidades do mercado e de valores relacionados a ele.

A difusão ideacional-discursiva diz respeito à carga normativa e de persuasão comumente implícitas nas descrições do banco sobre as condições da América Latina, intermediada por conceitos, categorias e lógica neoliberais ao interpretar a realidade socioeconômica, dando direção e legitimidade às políticas inspiradas neles diante dos atores econômicos e políticos importantes. Os informes (Relatórios Anuais, Reuniões Anuais, Relatórios de Aumento de Capitais, Estratégias por País, etc) são um material extremamente profícuo para análise dos pressupostos que subjazem os diagnósticos e as sugestões de políticas a serem adotadas.

Lardone & Donadi (2007), por exemplo, ao estudar como a modernização de estado tornou-se uma prioridade na agenda de políticas públicas da Argentina, identificam a influência dos bancos multilaterais de desenvolvimento no próprio governo por meio de assessoria técnica e treinamento de pessoal ou intermediado pela comunidade epistêmica (rede de fundações, consultorias, centros de pesquisa e, especialmente, think tanks) patrocinada por esses bancos. Conforme salienta Schmidt (2008: 307; 321), esses institutos de pesquisa comumente são munidos de um potencial de validação de ideias a serem

43 Uma dissertação que descreve bem esse caráter de “voltado para o mercado” é a de Juliana Couto Ghisolfi (2003). Não apenas isso, mas a autora demonstra como o padrão de ensino superior defendido para o BID é o modelo norte-americano, sem levar em conta as especificidades e diferenças marcantes da América Latina em relação aos Estados Unidos.

institucionalizadas, veladas por uma áurea de neutralidade técnico-científica, mas que muitas dessas ideias, em sua versão conservadora, têm Washington como fonte de patrocínio.