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CAPÍTULO 1 O BID E A AMÉRICA LATINA

1.2 FUNDAÇÃO DO BID E IDENTIDADE LATINO-AMERICANA

Como explicam Barria & Roper (2004), o contexto e as condições sob as quais um banco de desenvolvimento é fundado influenciam a membresia, a política de empréstimos, o seu mandato e a sua estrutura. No caso específico do BID, muitos autores enfatizam a persistência de determinadas características ao longo do tempo em função das particularidades de suas origens.

Para Couto (1999: 46), por exemplo, o BID seria, na prática, o mais próximo de um ideal de banco multilateral de desenvolvimento regional. Isso se justificaria, em grande medida, por causa do arranjo sui generis do mecanismo decisório no qual a maior parte do capital viria dos Estados Unidos, mas cuja maioria do poder de voto estaria nas mãos dos prestatários. Além disso, algumas das preocupações à época da fundação do banco conseguiram ser institucionalizadas como o atrelamento entre cooperação, assistência técnica e financiamento, além das exigências diferenciadas conforme a capacidade ou grau de desenvolvimento dos países-clientes.

O BID foi fundado em 1959 à luz das ideias cepalinas de desenvolvimento, com especial ênfase na industrialização da América Latina como elemento-chave na superação da dependência econômica em relação ao centro do sistema internacional. Surgiu sob condições políticas ímpares à época de sua fundação (contexto da “Operação Pan-Americana” lançada pelo presidente Juscelino Kubitschek), destacando-se especialmente a complacência estadunidense a uma instituição financeira mais flexível, face ao temor de que o subdesenvolvimento deixasse os latino-americanos mais vulneráveis à penetração da ideologia comunista.

Nesse período, a influência keynesiana de uma forte atuação do Estado, da expansão das políticas de bem-estar social nos EUA resultante da Era Roosevelt e da filosofia subjacente ao Plano Marshall ainda era forte e favorecia a construção de uma instituição desse tipo. Blyth (2002), por exemplo, interpreta os anos trinta como um processo de “imbricamento do liberalismo” e aos anos sententa, o “desimbricamento do liberalismo”. Em outras palavras, mesmo que o capitalismo estadunidense seja entendido pela literatura acadêmica, especificamente aquela sobre as variedades do capitalismo, como liberal de mercado,17 o período entre os anos trinta e setenta é, neste sentido, excepcional em sua maior tolerância a um Estado mais atuante. De forma semelhante, Hacker & Pierson (2010) entendem que, nesse período, o crescimento econômico implicava ganhos mais ou menos proporcionais aos diferentes estratos da sociedade o que pode ser atribuído ao papel de um Estado com políticas mais redistribucionista.18

A ideia da construção de uma instituição financeira de cooperação regional interamericana não nasceu nos anos cinquenta. Couto (1999) aponta que a ideia de criação de uma instituição de natureza e abrangência similares àquelas do BID remonta ao documento assinado por 18 países do continente americano de um Banco Internacional Americano em 14 de abril de 1890 ao final da Primeira Conferência Internacional Americana ocorrida em Washington nos Estados Unidos. Essa ideia por vezes reaparecia timidamente em congressos e reuniões intercontinentais como na VII Conferência Internacional Americana em Montevidéu em 1933 e na Primeira Reunião de Consulta de Chanceleres da América no Panamá em 1939. No entanto, apenas no pós-Segunda Guerra Mundial, houve uma conjugação de fatores que propiciou o surgimento do BID e influenciou fortemente em algumas de suas características marcantes, dentre os quais podem ser destacados: a ascensão das teorias do desenvolvimento e a configuração política internacional sob a égide da Guerra Fria.

Por um lado a ascensão das teorias do desenvolvimento ofereceu os subsídios que, no plano das ideias, norteariam os paradigmas estatais e delineariam o papel dos bancos

17 A literatura sobre as Variedades de Capitalismo parte do pressuposto de que não existe um único padrão de acumulação e reprodução do capital. Hall & Soskice (2001), uma das referências mais conhecidas no tema, diferenciam Economias Liberais de Mercado (LME) como no caso dos Estados Unidos e Reino Unido e Economias Coordenadas de Mercado (CME) como Alemanha, países escandinavos e Japão. Schneider (2008) diferencia quatro variedades de capitalismo: liberal, coordenada, de rede e hierárquica. A variedade hierárquica seria uma especificidade da América Latina.

18

Os autores usam a metáfora de Broadland para referirem-se a esse período mais redistribucionista e a metáfora do Richstan para o período após 1979 quando apenas as classes mais altas passaram a concentrar os benefícios da expansão econômica estadunidense.

internacionais de desenvolvimento; por outro, a ordem da Guerra Fria ofereceu as condições políticas para se tirar da gaveta o projeto de um banco interamericano. A participação dos Estados Unidos seria indispensável para a criação de um banco regional de desenvolvimento realmente funcional, mas, conforme o relato de Celso Furtado (COUTO, 1999:24), eles se demonstravam bem pouco entusiasmados com a ideia até meados da década de cinquenta da mesma forma que Brasil e México como se pôde observar na Reunião da Quitandinha em julho de 1955 que versou sobre o assunto.

Algumas mudanças alteraram o cenário na segunda metade da década de cinquenta. O aviltamento do então vice-presidente norte-americano Richard Nixon em visita ao Peru e à Venezuela em maio de 1958 era sintomático do aumento do sentimento antiestadunidense na região. Autores como Couto (1999: 27-40) e Cervo & Bueno (2002: 290-295) apontam como o presidente Juscelino Kubitschek aproveitou a situação por meio de trocas diretas de cartas com a presidência dos Estados Unidos para apresentar a relevância de sua “Operação Pan- Americana”, um projeto de cooperação no continente americano que partia do pressuposto de que a melhor forma de combater a penetração de ideologias exóticas (leia-se Socialismo) era o combate à pobreza e à miséria.

Segundo Gonçalves (2003: 81), o enfoque econômico da Operação Pan-Americana era consequência da influência dos trabalhos da CEPAL e o BID seria o principal resultado concreto dessa iniciativa. Além disso, deve-se acrescentar que a própria Revolução em Cuba, antiga aliada e a 120 quilômetros do território estadunidense, que ocorria quase que concomitantemente com a negociação constitutiva do BID aos fins de 1958 e início de 1959, parecia reforçar a tese de Kubitschek.

Algumas características peculiares seriam: maior tolerância e melhor compreensão dos problemas regionais; empatia natural com o desenvolvimento latino-americano, decorrente da própria razão de ser da instituição; adoção, desde o início de regras diferenciadas para empréstimos aos países, sempre mais favoráveis aos de menor nível de desenvolvimento; condicionamento dos financiamentos de investimentos à adoção de políticas macroeconômicas ou setoriais por ele aprovadas: as decisões são baseadas na avaliação dos méritos e da viabilidade técnica e financeira dos projetos. “(...) o Banco é servidor de seus países-membros, não o seu mestre.” (COUTO, 1999: 40)

Sobre a questão da diferenciação nas regras de empréstimos conforme as capacidades e os graus de desenvolvimento, o BID a partir de 1974 classificava os países latino- americanos em quatro categorias: na categoria A, estavam Brasil, Argentina, México e

Venezuela; na categoria B, estavam Chile, Colômbia e Peru; na categoria C, estavam Bahamas, Barbados, Suriname, Costa Rica, Jamaica, Trinidad & Tobago e Uruguai; e na D estavam Belize, Bolívia, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Nicarágua, Panamá e Paraguai. Embora autores como Araújo (1991: 31) destaquem que os critérios dessa classificação não seriam claros.

Quadro 2 - Critérios de diferenciação de crédito

Condições Grupos

A B C D

Carência (anos) Até 5 Até 7 Até 8 Até 10

Prazo de

Amortização

Até 25 Até 30 Até 35 Até 40

Taxa de Juros (% a.a.) 3 a 4 2 2 1 a 2 Comissões de Compromisso (% a.a.) 0,5 0,5 0,5 0,5 Participação do BID no Investimento (%) 50 50 70 a 80 80 a 90

Fonte: ARAÚJO (1991); BID, Documento GN-870-6

Apesar dessas características aparentemente mais favoráveis no que diz respeito ao acesso a recursos por parte dos países latino-americanos e caribenhos, não se pode perder de vista outros pontos importantes sobre o BID. Assim como qualquer instituição (especialmente de uma instituição financeira internacional), sempre há pressão e interesses de pessoas e grupos pela continuidade de sua existência. Ao competir em um nicho específico, o do “mercado” do desenvolvimento, apresentar vantagens em relação a outras instituições congêneres é uma estratégia de sobrevivência.

“O traço mais distintivo do BID foi sua natureza regional, não apenas por ser o primeiro banco de desenvolvimento de âmbito regional latino-americano, mas também porque sua estrutura, políticas, pessoal e estilo de trabalho tiveram, desde um primeiro momento, raízes latino-americanas. Isso se expressou na composição da membresia, a integração de seu capital, a organização e poderes de decisão internos, e na correlaçao entre suas políticas e programas operativos e as necessidades do desenvolvimento latino-americano.” (Brezina, 1999: 17-18)19

A ênfase no protagonismo dos futuros países prestatários na fundação do banco e na ideia de participação efetiva na gestão do banco é uma forma de autopropaganda, presente no próprio material informativo produzido pelo banco como nos Relatórios Anuais, nos Relatórios de Encerramento de Projetos, no sítio eletrônico oficial, em seminários organizados pela instituição, etc. Obviamente, a percepção de participação alinhada com outras facilidades colocava o banco como uma opção de destaque para os países prestatários. No entanto, a verdadeira influência da origem do banco em sua trajetória histórica e a participação efetiva dos países prestatários na direção do banco não são questões simples.

O foco excessivo na identidade latino-americana para análise do BID pode eclipsar a verdadeira influência dos Estados Unidos no banco. Todavia, alguns episódios chamam atenção para o papel, muitas vezes, subestimados da grande potência como a não membresia de Cuba, o bloqueio do processamento de empréstimos à Nicarágua sandinista e ao Panamá de Noriega ao final dos anos oitenta, que fazia parte da estratégia norte-americana para seus desafetos políticos na América Central e Caribe. Na realidade, até a primeira metade dos anos noventa nunca houve um empréstimo feito a contragosto do maior acionário do banco (TUSSIE, 1995: 31; 45). Nas próximas subseções, serão apresentados alguns fatos que matizam um pouco mais o peso dos Estados Unidos na economia política do banco e o distanciamento do mandato original.

1.3 O BID E A ERA CLÁSSICA DO DESENVOLVIMENTISMO LATINO-AMERICANO