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CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2 Introdução do capítulo

2.4 Bilinguismo e Diglossia: algumas considerações conceituais

Não só no Brasil, mas mundialmente, é uma realidade a presença de falantes de duas ou mais línguas no mesmo país. Para os estudos dessas realidades, parte dos linguistas tende a estudar e a descrever o contato de línguas como sistema isolado das realidades sociais, e parte tende a estudá-lo sob o viés social. Segundo Martiny e Menoncin (2013),

[...] em trabalhos mais recentes sobre contato linguístico, têm-se discutido mais profundamente os conflitos lingüísticos, os conceitos de bilinguismo e de diglossia, como fenômenos não somente linguísticos, mas também socioculturais, principalmente com relação ao português brasileiro em contato com as línguas minoritárias, ou seja, as línguas que não possuem prestígio social. (MARTINY E MENONCIN, 2013, p.307)

Assim, ao se reconhecer que há fatores extralinguísticos que interferem nos contextos de multilinguismo, além dos estudos linguísticos, áreas como a sociologia e a psicologia

também têm tido interesse no tema, investigando, por exemplo, os efeitos do bilinguismo nos processos mentais e na inteligência dos indivíduos “bilíngues”. Todavia, para qualquer um desses estudos talvez surja a questão “o que é bilinguismo?” ou “quem são os sujeitos bilíngues?”. Essas questões são importantes, porém de difícil resposta, visto que ao longo de décadas teóricos têm considerado diferentes parâmetros ou critérios para definirem “bilinguismo”. Para o momento, tomaremos os apontamentos de Mackey (1968 apud ROMAINE, 1991). Para esse autor, o conceito de bilinguismo tornou-se cada vez mais amplo e conclui que,

para estudar o bilinguismo, somos forçados a considerá-lo como algo inteiramente relativo, porque o ponto em que um falante de uma segunda língua se torna bilíngue é arbitrário ou impossível de determinar. (ROMAINE, 1991, p.11 Tradução nossa)5

É arbitrário ou impossível determinar definitivamente, por muitas questões, como se se considerará que um sujeito pode ser bilíngue quando possui conhecimento e habilidade em apenas uma das modalidades da língua segunda ou das línguas em questão: por exemplo, ele poderia saber ler em uma língua e falar em outra. Será que isso é bilinguismo? Fato é que os teóricos não encontraram um consenso ainda. Além disso, o autor sugere que há diversos fatores que influenciam o bilinguismo, como a idade, o sexo, a inteligência, a memória, a motivação e a atitude bilíngue do falante (idem). Diante de tantas variáveis, como conceber o conceito de “bilinguismo”? Mackey (1968), por reconhecer a sua complexidade, considera o “bilinguismo como uma característica individual que pode ocorrer em graus variáveis, desde uma competência mínima até um domínio completo de mais de uma língua” (Mackey, 1968, apud MARTINY E MENONCIN, 2013, p.307). Nas palavras de Ramos (1994),

Ao esboçar a descrição de bilinguismo, Mackey (1968) demonstra lucidez sobre a complexidade do fenômeno, na medida em que apresenta um perfil detalhado em que considera, não só os elementos internos às línguas, mas também, o comportamento do falante e o contexto no qual este se encontra inserido. (RAMOS, 1994, p.64)

Talvez em contraste com a noção de “diglossia”, esse conceito ganhe maior delineamento. Nas contribuições de Mackey (1968), o bilinguismo foi observado sob a perspectiva do indivíduo, já a noção de diglossia é concebida numa perspectiva social e foi inicialmente definida por Ferguson (1974), ao considerar que,

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“Mackey (1968:555) concludes that in order to study bilingualism we are forced to consider it as something entirely relative because the point at which the speaker of a second language becomes bilingual is either arbitrary or impossible to determine.”

Diglossia é uma situação lingüística relativamente estável na qual, além da ou das variedades adquiridas em primeiro lugar (variedades que podem conter um padrão ou vários padrões regionais), se encontra também uma variedade sobreposta, muito divergente e altamente codificada, por vezes mais complexa ao nível gramatical, e que é a base de uma vasta literatura escrita e prestigiada. Esta variedade é geralmente adquirida por meio do sistema educativo e utilizada a maior parte das vezes na escrita ou nas situações formais do discurso. Não é, no entanto, utilizada por nenhum grupo da comunidade na conversação corrente (FERGUSON, 1974, p. 102, apud MARTINY E MENONCIN, 2013, p.310).

Na abordagem de Ferguson (1972), conforme explica RAMOS (1994),

A variedade “superior”, que desempenha funções de prestígio tem herança literária e estabilidade, é padronizada, possui gramática, léxico e fonologia descritos, Ferguson denomina de “High” ou simplesmente “H”. A outra ou outras, que não possui nenhum desses atributos, é denominada de “Low” ou somente “L”. Em alguns contextos, apenas “H” é apropriado; em outros, só “L”. Entretanto, podem existir situações em que as duas variedades são utilizadas, mas, mesmo assim, com funções diferentes. É o caso de contextos em que, por exemplo, o jornal está escrito em “H”, mas é discutido em “L”. Neste sentido, a marca fundamental que caracteriza uma situação diglóssica é o caráter funcional de cada uma das variedades. (RAMOS, p.72)

Mais tarde, a noção de diglossia foi ampliada, passando a se referir não só a duas variantes de uma mesma língua em situação de co-ocorrência e em relação assimétrica, mas também a duas línguas nesta mesma situação social. Fishman (1974) distinguiu estas duas situações como “diglossia interna (quando duas variedades pertencem ao mesmo sistema) e diglossia externa (quando as variedades pertencem a línguas distintas)” (MARTINY E MENONCIN, 2013, p.311). Além disso, ao caracterizar o bilinguismo numa perspectiva do individuo e a diglossia numa perspectiva social ou coletiva, portanto, da comunidade, abre-se espaço para mais de uma possibilidade de situação linguística. Em Fishman (1980) encontramos quatro possíveis relações entre bilinguismo e diglossia: diglossia e bilinguismo; diglossia sem bilinguismo; bilinguismo com diglossia; sem diglossia e sem bilinguismo (apud ROMAINE,1991).

Desse modo, percebe-se que o bilinguismo não exclui, necessariamente, a diglossia, e vice-versa, e também que tais condições linguísticas não são “imutáveis”, pelo contrário, são, assim como definimos a linguagem, sistemas ou organizações: dinâmicas, complexas e passiveis de mudança. Assim, num contexto específico, podemos entender que a situação linguística da comunidade pode ser distinta da condição linguística de cada indivíduo que a compõe e que, por isso, pode haver a possibilidade de se ter indivíduos bilíngues em uma comunidade diglóssica, por exemplo. Tais possibilidades são válidas para pensarmos na situação linguística das diversas comunidades brasileiras.

Ao reconhecermos a diversidade identitária do Brasil e o seu plurilinguismo, devemos considerar que nesse território há, além das comunidades falantes de língua portuguesa como primeira língua, as comunidades que possuem outras línguas como materna/primeira e que têm, por direito legal, a língua portuguesa sob o estatuto de segunda língua (LINS, 2014). Exemplo disso são as comunidades indígenas, a comunidade surda, as comunidades de fronteira e as comunidades de migrantes/estrangeiros (DORNELLES, 2011).

Apesar de o Estado reconhecer a importância da diversidade sociolinguística e cultural, Dornelles (2011, p.25) afirma que, “com a globalização, as tensões entre visões unificadoras fixas e complexas/contraditórias sobre a(s) língua(s) e a(s) identidade(s) tornam-se cada vez mais visíveis.” Nesse sentido, tanto o reconhecimento do Estado da diversidade sociolinguística pode ser frágil e instável, quanto a própria situação linguística de uma comunidade pode sofrer mudanças.

Talvez seja prudente considerarmos que as tensões ocorrem, não só por causa da globalização, mas também porque as noções de identidade e de língua são complexas e de difícil definição. Talvez esse seja um primeiro ponto. Além disso, quanto ao que tange às políticas linguísticas, Maher (2013) nos atenta para outra questão: o papel das sociedades no empreendimento de políticas linguísticas em co-ocorrência ao papel do Estado:

um equívoco frequente é o entendimento de que elas seriam sempre explícitas e engendradas pelo Estado. Políticas linguísticas podem também ser arquitetadas e colocadas em ação localmente: uma escola ou uma família, por exemplo, podem estabelecer – e colocar em prática – planos para alterar uma certa situação (sócio)linguística, mesmo que isso nem sempre seja explícito: muitas vezes, só é possível depreender políticas linguísticas em andamento das ações e dos discursos dos agentes nelas envolvidos. (MAHER, 2013, p.120)

Assim, as tensões ocorrem “naturalmente” por se tratar de relações dialógicas entre língua e identidade ou políticas linguísticas e políticas de identidade, e por estes não serem processos neutros ou livres de conflitos (MAHER, 2013).

Diante de tais conceitos teóricos e também das reflexões críticas acerca das tensões entre as visões de língua e de identidade, empreendidas por Dornelles e por Maher, pretendemos investigar a realidade sociolinguística da comunidade surda brasileira e da comunidade de fronteira de Puerto Iguazú, a partir do conceito de ecossistema, da

Ecolinguística (COUTO, 2009), e da noção de rede de práticas sociais, da ADC (FAIRCLOUGH, 2001, 2003), já expostas no item ordens de discurso (ver no capítulo 1). Através desse levantamento, objetivamos conhecer essas comunidades e formar uma imagem sobre elas, além de, sobretudo, iniciar a nossa investigação sobre a função da língua portuguesa para elas, aspecto que carrega em si ideologias linguísticas e que podem desvelar o desejo ou não e a necessidade ou não de intervenções linguísticas, tanto propostas por elas, se for o caso, quanto propostas por outros agentes de poder, como o Estado, bem como as suas justificativas.