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CAPÍTULO 2 – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2 Introdução do capítulo

2.2 Linguagem como prática social

2.2.2 Poder e Discurso

O conceito de poder ser enfocado de diferentes maneiras. Para o momento, abordaremos o “poder” como um das funções da linguagem e/ou a linguagem enquanto “poder”. Gnerre (1991), em seu livro “Linguagem, escrita e poder”, aborda a linguagem como forma de legitimação do poder, por exemplo, a partir da criação, divulgação e uso de gramáticas de línguas. Numa perspectiva histórica, a primeira estratégia política de instauração de poder na Idade Média foi “associar a uma determinada variedade linguística o poder da escrita” (GNERRE, 1991, p.11), e a segunda estratégia foi a associação desta variedade com a tradição gramatical greco-latina:

O pensamento linguístico grego apontou o caminho da elaboração ideológica de legitimação de uma variedade linguística de prestígio. Desde o “legislador” platônico que impõe e escolhe os nomes apropriados dos objetos; até chegar à tradição gramatical divulgada, estruturada talvez na época alexandrina, a elaboração da ideologia e da reflexão relativas à linguagem foi constante. (GNERRE, 1991, p.12)

Conforme Gnerre (1991), na introdução da primeira gramática castelhana, de Antonio de Nebrija (1492), consta uma justificativa para a sua existência: a necessidade de sistematização e difusão da língua para os povos “bárbaros”. Tempos depois, Fernão de Oliveira, em 1953, e João de Barros, empreenderam a escrita da gramática da língua portuguesa. Assim, tanto a escolha de variedades linguísticas como “padrão” quanto a sua prescrição em gramáticas, portanto, a valorização da modalidade escrita das línguas, são instrumentos de legitimação de poder do Estado. Ainda em Gnerre, encontramos uma visão de língua que desnuda esta articulação: “[...] a língua é para ele [...] um instrumento para a difusão da “doutrina” e dos “costumes”, mas não é somente instrumento de difusão [...]. Quer dizer, a língua será o instrumento para perpetuar a presença portuguesa, também quando a dominação acabe.” (GNERRE, 1991, p.14) Avançando a discussão sobre a linguagem enquanto poder, Gnerre (1991) reflete que a palavra em si possui poder, visto que a sua utilização é passível de uma escolha minuciosa por parte de quem a enuncia, assim, a linguagem pode ser usada tanto para comunicar quanto para impedir a comunicação, a depender do público-alvo e de suas motivações e objetivos para com o uso da linguagem. A própria escolha da língua na modalidade padrão escrita já é, por si só, uma delimitação no acesso por meio do canal transmissor:

Nas sociedades complexas como as nossas, é necessário um aparato de conhecimentos sócio-políticos relativamente amplo para poder ter um acesso qualquer à compreensão e principalmente à produção das mensagens de nível sócio-político. [...] Para reduzir ou ampliar a faixa dos eventuais receptores das mensagens políticas e culturais é suficiente ajustar a sintaxe, o quadro de referências e o léxico. (GNERRE, 1991, p.21)

Complementando a ideia de que é possível, por meio da linguagem, dar ou não acesso à informação, bem como estabelecer ou impedir a comunicação, o autor esclarece que para compreender uma mensagem, por vezes não basta conhecer o léxico utilizado no discurso, mas “é necessário ser de alguma forma “interno” aos conteúdos referenciais para entender as mensagens” (1991, p.24). A noção de poder da linguagem, então, nos remeta à noção de que a função central da linguagem é social e de que a função das linguagens especiais também é, porém o que muda é alcance do acesso e a sua legitimidade social. A linguagem especial exclui da comunicação os grupos externos a ela e reafirma a identidade dos que a ela tem acesso.

de prática política e ideológica:

[...] o discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. [...] Assim, a prática política é não apenas um local de luta de poder, mas também um marco delimitador na luta de poder: a prática discursiva recorre a convenções que naturalizam relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções, e os modos em que se articulam são um foco de luta. (FAIRCLOUGH, 2001, p.94-95)

Assim, o poder é realizado por meio do discurso (da linguagem) ideológico. Como tentativa de compreender melhor este conceito, pensemos no conceito de poder de Marx, caracterizado como um poder disciplinar, soberano, que se exerce, e no conceito de poder dialético (ou biopoder, de Foucault (1999)), que pode ser questionado e alterado por meio da resistência às hegemonias – por isso a instabilidade das hegemonias é relativa. A ADC se vale dessa segunda concepção de poder, em que ora a hegemonia é reforçada, ora ela é contraposta pela linguagem e, por isso, considera-se a ideologia como um “instrumento semiótico de lutas de poder” (RAMALHO e RESENDE, 2011, p.25).

Na ADC entende-se que os sujeitos são ativos e possuem capacidade para reestruturar as práticas consagradas como hegemônicas. As ideologias, portanto,

surgem nas sociedades caracterizadas por relações de dominação com base na classe, no gênero social, no grupo cultural, e assim por diante, e, à medida que os seres humanos são capazes de transcender tais sociedades, são capazes de transcender as ideologias (FAIRCLOUGH, 2001, p.121).

Neste sentido, Fairclough define ideologia da seguinte maneira:

[...] as ideologias são significações/construções da realidade (mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (FAIRCLOUGH, 2001, p.117).

Assim, “[...] o primeiro passo para a superação de relações assimétricas de poder, e para a (auto) emancipação daqueles/as que se encontram em desvantagem, pode estar no desvelamento de ideologias” (RAMALHO e RESENDE, 2011, p.25). E, os modos gerais de operação da ideologia, portanto, os quais se buscam desvelar nas análises são: a legitimação; a dissimulação; a unificação; a fragmentação; e a reificação (THOMPSON, 1990).