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1.2 Perspectivas educacionais para surdos

1.2.3 Bilinguismo

No Brasil, a filosofia bilíngue começou a ser estudada no século XX, na década de oitenta, e foi implantada em escolas e centros especializados no atendimento ao Surdo na década de noventa. Portanto, constitui-se em um estudo relativamente novo, fato que faz com que o bilinguismo se configure como uma proposta que está em transição no cenário educacional brasileiro.

Assim como as outras filosofias já apresentadas, o bilinguismo não pode ser definido como uma proposta homogênea. Os profissionais que se identificam com essa perspectiva atuam seguindo diferentes abordagens que se relacionam a essa linha teórica. Embora todos os adeptos do bilinguismo reconheçam a importância da língua de sinais para o pleno desenvolvimento da pessoa Surda.

De acordo com Quadros (1997) o bilinguismo surge como uma forma de resistência dos Surdos ao Oralismo e à Comunicação Total, propostas educacionais que os prejudicaram por muitos anos; hoje, a comunidade Surda e a sociedade de forma geral estão percebendo a importância e o valor da língua de sinais e, essa tomada de consciência, tem refletido nas discussões sobre o ensino voltado aos Surdos no país.

Complementando a ideia defendida por Quadros (1997), sobre o surgimento de uma nova proposta educacional para as pessoas Surdas, Goldfeld (2002) afirma que o bilinguismo tem como origem a insatisfação dos Surdos com a proibição da língua de sinais, a mobilização de diversas comunidades em prol do uso dessa língua, aliado aos estudos linguísticos que comprovaram o status das línguas de sinais enquanto uma língua. Estudos iniciados por Willian Stokoe, em 1960, que apresentou uma análise descritiva dos níveis fonológicos e morfológicos da língua de sinais americana – ASL revolucionando os estudos linguísticos da época, pois as pesquisas existentes abordavam a análise linguística das línguas faladas.

No Brasil, Gladis Perlin, primeira Surda a se tornar doutora, em 2003, e Ana Regina e Souza Campello, doutora em educação e mestre em linguística, foram as primeiras Surdas a estudarem a língua brasileira de sinais, extrapolando suas discussões para além das questões linguísticas.

O bilinguismo é uma filosofia educacional que propõe tornar acessível à criança Surda tanto a língua de sinais, quanto a língua portuguesa, no contexto escolar e/ou nos diversos contextos em que estiver inserida. Muitas pesquisas apontam essa proposta como sendo a mais adequada ao ensino de crianças Surdas, pois consideram a língua de sinais como língua natural, de fácil acesso à pessoa Surda e parte desse pressuposto para o aprendizado da língua escrita.

Percebe-se que na perspectiva bilíngue o aprendizado da língua oral não é mais o centro da proposta educacional voltada para os Surdos. “Desenvolver-se cognitivamente não depende exclusivamente do domínio de uma língua, mas dominar uma língua natural garante os melhores recursos para as cadeias neuronais envolvidas no desenvolvimento dos processos cognitivos” (FERNANDES, 2000, p.49).

Segundo Quadros (1997), a criança até poderá aprender a língua portuguesa na modalidade oral, mas não de forma natural e espontânea como ocorre com a língua de sinais.

Se a língua de sinais é uma língua natural adquirida de forma espontânea pela pessoa surda em contato com pessoas que usam essa língua e se a língua oral é aprendida de forma sistematizada, então as pessoas surdas têm o direito de ser ensinadas na língua de sinais. A proposta bilíngüe busca captar esse direito (QUADROS, 1997, p. 27).

Concordando com Quadros (1997), Lacerda (2013) afirma que a língua de sinais é fundamental, pois, sem ela, o estabelecimento de relações mais aprofundadas torna-se impossível; para a autora, não se pode falar de sentimentos, de emoções, de dúvidas, de pontos de vista diversos sem o estabelecimento de uma língua compartilhada entre os interlocutores. Por isso, na proposta bilíngue “tem-se a língua de sinais como primeira língua do surdo e a língua portuguesa como segunda língua” (CAMPOS, 2013, p. 41).

Entretanto, Fernandes (2003) afirma que o bilinguismo extrapola as questões linguísticas, ou seja, representa bem mais do que o domínio de uma outra língua como mero instrumento de comunicação. Além da necessidade de considerar interlocução constante e efetiva entre as pessoas, o bilinguismo para Surdos leva ao reconhecimento da surdez enquanto diferença, experiência visual, percebendo o Surdo como um sujeito que é linguística e culturalmente diferente, além de reconhecer a importância da língua de sinais no desenvolvimento dos processos cognitivos dessas pessoas.

Em relação ao reconhecimento e valorização da língua de sinais na implantação de propostas educacionais bilíngues, Goldfeld (2002) considera fundamental pensarmos sobre o biculturalismo que envolve qualquer grupo minoritário. Segundo a autora, os Surdos, os negros, os imigrantes possuem características culturais próprias e a língua de sinais, como qualquer outra língua, carrega as marcas dessa cultura.

No caso dos Surdos o biculturalismo torna-se quase uma condição natural, pois participam de um grupo linguístico e cultural minoritário, mas estão inseridos em um contexto em que prevalece uma maioria ouvinte. Assim, estão expostos diariamente a duas línguas e suas respectivas marcas culturais; por isso, Goldfeld define o Surdo como “um indivíduo bicultural” (GOLDFELD, 2002, p. 110). Para a autora, a criança Surda que se desenvolve convivendo com as culturas Surda e ouvinte, será inevitavelmente um indivíduo bicultural.

Entretanto, sabemos que esta não é a realidade da maioria dos Surdos, pois, segundo Wrigley (1996, p. 34), “menos de 10% das crianças surdas possuem um familiar surdo”, complementando essa informação Goldfeld (2002, p. 44) afirma que “mais de 90% dos surdos têm familiares ouvintes”, ou seja, essas crianças nascem em lares cujos membros são ouvintes sendo expostas desde pequenas à língua oral utilizada pelos familiares que, na maioria das vezes, não conhecem e/ou não buscam aprender a língua de sinais, situação que dificulta o acesso da pessoa Surda a uma língua natural, contribuindo para que não sejam bilíngues e tãopouco biculturais.

O bilinguismo sugere que os familiares e responsáveis pela criança Surda aprendam a língua de sinais para que esta criança cresça exposta a uma língua natural e a internalize por meio de diálogos contextualizados; entretanto, nossa experiência profissional e as pesquisas que temos realizado revelam que esta não é a realidade encontrada.

Além da dificuldade natural em se aprender a língua de sinais os pais enfrentam outro problema que é a dificuldade em separar as duas línguas (língua de sinais e língua portuguesa) ao se comunicarem com o filho Surdo, a tendência entre a maioria das famílias é misturar as duas línguas para conseguirem se comunicar com o filho Surdo e acabam tendo uma conduta semelhante à praticada pelos adeptos da Comunicação Total. Por isso, o bilinguismo configura- se como um grande desafio tanto para as famílias quanto para o sistema educacional.

A proposta educacional bilíngue não desconsidera a importância da aprendizagem da língua portuguesa para os Surdos; mas, segundo Fernandes (2003), ela não pode ser confundida com a gramaticalidade e/ou com a mera convivência de duas línguas no espaço escolar. “Os princípios que regem o bilinguismo na educação não podem ser confundidos com a mera inclusão da língua de sinais na sala de aula, ao lado da língua portuguesa, ou pior ainda, da mera tradução do conteúdo para a língua de sinais” (FERNANDES, 2003, p. 56). Para a autora, a implantação do bilinguismo, além de uma conquista acadêmica para os Surdos e pesquisadores da área, envolve um processo de valorização cultural, não só para os Surdos, mas para a sociedade de forma geral.

Se consideramos a importância de qualquer língua para o desenvolvimento linguístico e cognitivo das pessoas, torna-se fundamental oferecer ao Surdo, desde a mais tenra idade, seja no contexto familiar ou educacional, a aquisição espontânea da língua de sinais que segundo Goldfeld (2002) evita o atraso de linguagem e todas as suas consequências referentes à percepção, generalização, formação de conceitos, atenção, memória e, também, na educação escolar.

Diante dessas considerações percebe-se a necessidade de utilizar a língua de sinais como principal instrumento linguístico nas relações que se estabelecem dentro e fora da escola. Nesse aspecto, a escola precisa pensar como conduzir com a criança Surda que inicia suas atividades escolares na educação infantil ou séries iniciais do Ensino Fundamental para que consiga oferecer a ela oportunidades reais de comunicação, interação e aprendizagem por meio de uma língua compartilhada entre todos os interlocutores.

Se voltarmos às reflexões de Fernandes (2003), entendemos que a presença do intérprete de Libras ou de um profissional de apoio não atende às necessidades dessas crianças que estão em plena fase de desenvolvimento linguístico e precisam da mediação constante do professor,

de interagir com seus pares por meio de uma língua compartilhada, de brincar, socializar-se, comunicar-se com todos que estão a sua volta e não apenas com o intérprete que tem entre suas funções mediar a comunicação entre surdos e ouvintes, “com o objetivo de que o aluno surdo tenha acesso ao conhecimento veiculado na escola” (ALBRES, 2015, p. 33).

Então, faz-se necessário pensar sobre como oferecer uma proposta bilíngue aos alunos Surdos mediante à estrutura vigente em nosso sistema educacional que traz uma matriz curricular pensada para os alunos ouvintes, que não qualifica os professores para entenderem sobre as especificidades que esses alunos trazem devido as suas diferenças linguísticas e culturais, que não oferece material didático e pedagógico acessível em Libras, que não oportuniza o aprendizado da Libras como disciplina curricular, que não ressalta o uso de metodologias que valorizem a experiência visual do Surdo e o aprendizado da língua portuguesa como segunda língua.

Enfim, como pensar em um ambiente educacional bilíngue em que o Surdo não se sente integralmente pertencente a esse espaço? Discutimos sobre essas possibilidades e desafios quando tratamos da educação de surdos a partir de uma perspectiva da escola inclusiva.

Fernandes (2012), afirmou que embora a proposta em defesa da educação bilíngue para Surdos esteja veiculada nas políticas públicas vigentes e faça parte do discurso de muitos educadores de Surdos, a prática retrata de forma contraditória uma realidade bastante distante do discurso que se defende. Por isso, consideramos muito pertinente trazer à tona a discussão sobre as filosofias educacionais que influenciaram as condutas dos profissionais em relação à educação dos Surdos, não para exaltar seus pontos positivos (se é que existem em alguns casos) e/ou apenas para criticá-las, mas para reconhecer seus reflexos na educação contemporânea e na formação oferecida ao Surdo no contexto educacional brasileiro atual.

As três filosofias educacionais apresentadas neste estudo refletem representações diversas sobre a surdez e o Surdo ao longo da história e apontam para condutas diferentes em relação ao seu processo educacional. Portanto, a escolha de uma abordagem ao se pensar a educação de Surdos estará sempre ligada à visão de homem que se tem e que se pretende formar. Além disso, as discussões relacionadas aos desafios da escola contemporânea são fundamentais para uma revisão profunda das propostas educacionais oferecidas a esses alunos uma vez que a educação de Surdos não está desligada do processo educacional brasileiro, mas nele incluída.

Como a língua de sinais, a partir do surgimento do bilinguismo, passou a fazer parte das discussões acerca da surdez e das propostas metodológicas oferecidas aos alunos Surdos, pretende-se nesse momento apresentar, além de informações que esclareçam sobre a organização e o funcionamento dessa língua, elementos que a caracterizam como traço

identitário da comunidade Surda e um importante instrumento para o desenvolvimento linguístico, cognitivo, social e afetivo dessas pessoas. A partir dessas reflexões será possível problematizar sobre o papel que a língua de sinais vem ocupando nas escolas inclusivas e nas propostas pedagógicas voltadas aos alunos Surdos, no atual contexto contemporâneo.