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Biologia do Conhecer: “tudo é dito por um observador”

3.4.1 Aquí lo único peligroso que hay es la poesía50

Em 1971, um amigo do biólogo chileno Humberto Maturana havia redigido uma tese sobre Don Quixote, e dizia-lhe que o dilema do cavaleiro da triste figura era escolher entre o caminho das armas - a práxis - e o da literatura - poiese. Maturana entusiasmou-se com o termo: era esse o nome que devia dar ao processo de auto-produção que caracteriza os seres vivos, autopoiese. Uma amiga, professora de filosofia e conhecedora do grego, disse porém que não, o correto seria autopráxis. “Como era eu quem estava inventando, a palavra terminou sendo mesmo autopoiese” (Maturana, 1997; grifo do autor).

Uma dificuldade de se ler Maturana - principal expoente da escola chilena da Biologia do Conhecer, ao lado de Francisco Varela - é o reduzido diálogo, ao menos explícito, que esse autor mantém com outras tradições do pensamento biológico. Nos textos de Maturana é raro encontrarmos uma referência, e ficamos com a impressão que tudo parece acontecer porque o autor “estava inventando”, como na história de sua conversa sobre os termos gregos. Mas é só impressão. As raízes epistemológicas da Biologia do Conhecer podem ser encontradas no movimento da segunda cibernética, nascida nas conferências Macy, em Nova York, de 1946 a 1953 (uma boa análise das conferências pode ser encontrada no livro de Jean-Pierre Dupuy, 1995). As discussões entre estudiosos tão diversos quando engenheiros, biólogos, antropólogos, lingüistas, matemáticos, psicólogos e físicos levaram à criação do novíssimo campo das ciências cognitivas. A ênfase da segunda cibernética, em oposição à abordagem cognitivista também nascida das conferências Macy de, por exemplo, Chomsky e Fodor

(Fodor, 1996; Gardner, 1996) era a coerência interna, ou autonomia, de organismos e outros sistemas complexos.

Recuperando um tema discutido desde o início das conferências Macy, a recursividade e os processos de feedback ou auto-alimentadores em “máquinas inteligentes”, os cibernéticos chegaram à noção de circularidade causal, a base da proposta de fechamento operacional da futura Biologia do Conhecer. Um aspecto dessa abordagem sistêmica é que a relações de sistemas biológicos com o ambiente devem ser vistas como perturbações, e, não, fonte de informação, uma decorrência do tratamento do sistema como circular, auto-alimentador. O outro aspecto é a inclusão do papel do observador na análise do fenômeno observado, uma idéia compartilhada por outros cibernéticos51, como Heinz Von Foester, Ross Ashby e o antropólogo-psicólogo Gregory Bateson (outro parente - um filho - de William Bateson), levando à configuração de uma “epistemologia cibernética” (Bateson, 1972; Dupuy, 1995).

As idéias que constituem a epistemologia particular da Biologia do Conhecer (de agora em diante, BC) originaram-se com as investigações da biologia da visão de Humberto Maturana nos anos 60 (Maturana, 1997). Distanciando-se da tradição biológica hegemônica, Maturana desenvolveu uma concepção de sistema vivo em termos dos processos de sua própria realização, e, não, em termos da sua relação com o meio ou através de uma lista de propriedades. Maturana chamou a organização auto-realizadora e definidora do vivo de autopoiese - como vimos na historinha acima - e em 1973, publica com seu ex-aluno

Francisco Varela De máquinas y seres vivos (Maturana y Varela, 1973), onde os autores apresentam sua proposta de reformulação teórica da fenomenologia biológica.

A linguagem peculiar da BC reflete o desafio que a sua epistemologia oferece às velhas dicotomias a que estamos acostumados, particularmente aquelas derivadas da tradição representacionalista ou objetivista, tão comum no treinamento, na prática e na literatura

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científicas (Varela, Thompson and Rosch, 1997). Se sentimos um desconforto inicial, logo nos damos conta que determinadas premissas que exercitamos constantemente nem são arbitrárias (afinal, é com elas que temos vivido nossas interações em ciência) nem necessárias (ou não seria possível uma epistemologia alternativa). Ao questionar a importância de uma realidade independente para validar nosso conhecimento e sugerir que o caminho explicativo que seguimos depende das distinções particulares que fazemos e, não, da preexistência de um referente no mundo, a BC confere, a nós, cientistas, total responsabilidade pelas descrições, uma responsabilidade geralmente atribuída à própria realidade. É o que a BC chama de objetividade entre parênteses (Maturana, 1997b). Outra dificuldade inicial é a incorporação,

na explicação, da fenomenologia circular dos sistemas cibernéticos. “Argumentação circular” tem, é claro, uma longa história de má reputação - não só em ciência - e é necessário algum esforço para apreender e aceitar o modo explicativo circular da BC, que é uma decorrência de sua epistemologia, e, não, uma tautologia gratuita.

Antes de discutir o tratamento dado pela BC ao sistema vivo e a seus processos históricos e sistema de relações, introduzo em 3.4.2 dois tópicos bastante sumários, mas necessários a uma compreensão mínima do sistema explicativo da BC: seu conceito de explicação científica e de distinção de objetos. Para conforto meu e do leitor, suprimo nessa parte 3.4.2 o alerta “segundo a BC”, considerando-o dado. Todas as informações em 3.4.2 foram retiradas de: Maturana, 1997; Maturana, 1997c; Maturana, 2001; Maturana, 2001b; Maturana and Varela, 1980; e Maturana and Varela, 1998.

3.4.2 Explicações científicas e distinção de objetos na BC

Uma explicação é uma proposição que reformula as observações de um fenômeno em um sistema de conceitos aceitáveis para uma comunidade que partilha um critério de

validação. O que é particular à ciência é o critério específico de validação, constituindo, então, uma explicação científica. O critério de validação das explicações científicas deve cumprir quatro condições: a) descrever o fenômeno a ser explicado de uma maneira aceitável a uma comunidade de observadores; b) propor um sistema conceptual capaz de gerar o fenômeno a ser explicado de maneira aceitável para essa comunidade; c) obter de b) outro fenômeno não explicitamente considerado naquela proposição e descrevê-lo de modo aceitável para a comunidade; d) gerá-lo de modo aceitável para a comunidade de observadores, validando assim a hipótese explicativa gerada em b).

Apesar de em linhas gerais esse critério de quatro passos ser aceito por qualquer cientista como uma descrição do que ele faz quando propõe e testa uma explicação, o que é explicitamente assumido aqui é que cada passo (ou condição) precisa ser dado no contexto da praxis de viver do observador, e, não, fazendo referência a uma realidade independente. Aliás,

essa referência externa nem pode ser usada como uma validação independente ou uma explicação, pois é exatamente uma distinção particular que é tomada como um fenômeno a ser explicado. O que valida uma explicação científica é ao mesmo tempo: uma distinção que é aceita como um fenômeno a ser explicado pela comunidade de observadores (na praxis de seu viver); e a proposição de um mecanismo que, aceito na práxis do viver da comunidade de observadores, gera o fenômeno ou fenômenos que foram descritos/especificados como tais.

Uma característica que deve ter um objeto de investigação científica é ser determinado estruturalmente, isto é, um fenômeno/objeto que não aceita interações instrutivas: qualquer

coisa que acontece a ele deve ser determinado, a cada momento, por sua estrutura. Isso é necessariamente assim, pois, se um fenômeno/objeto aceitasse interações instrutivas, o cientista não poderia distingui-lo de nada mais. Maturana (2001) nos dá uma ilustração bastante apropriada desse princípio: por transformar em ouro tudo o que toca, o legendário rei Midas nunca poderia ter sido um químico!

Qualquer coisa que possamos distinguir - apontando para ela, pronunciando seu nome, agarrando-a - é uma unidade. Ao especificar uma unidade, especificamos ao mesmo tempo seu background. Qualquer coisa - cadeiras, unicórnios, fórmulas matemáticas - constitui uma unidade (com um background), e, então, não faz sentido dizer que um ato de distinção é errado ou ilusório, apesar de podermos discordar a respeito dele. Nesse último caso, isso significa que estamos aplicando procedimentos de distinção diferentes. Se é uma unidade simples, distinguimo-na em termos de suas propriedades (comprida, incolor, verde, furiosa),

em sua totalidade, sem falar de seus componentes. Se a distinguimos como uma unidade composta, estamos fazendo referência a seus componentes, ou seja, estamos realizando uma

operação adicional de distinção que aponta tanto para os próprios componentes quanto para a relação entre eles.

Essa última operação - a de apontar os componentes e as relações entre os componentes de uma unidade composta - é crucial para falarmos de sistemas vivos. É através dela que distinguimos os dois aspectos da unidade composta: sua estrutura e sua organização. Se utilizamos os componentes e as relações entre os componentes para especificar sua classe, ou seja, aquilo sobre o que estamos falando, trata-se de sua organização. Se distinguimos os componentes e suas relações particulares, trata-se de sua estrutura. Se a organização muda, isso quer dizer que não se trata do mesmo objeto, mas a estrutura pode variar e continuarmos a distinguir a unidade como o mesmo objeto.

3.4.3 Sistemas vivos

Apoiada na descrição sistêmica das interações moleculares em que “o DNA participa da síntese protéica tanto quanto as proteínas participam da síntese do DNA” (Maturana, 1997; ver também Keller, 2002), essa tornou-se a definição cibernética do sistema vivo na Biologia

do Conhecer: um processo circular de produções moleculares cujo produto é a própria manutenção dessa circularidade, em fechamento operacional. Para conservar sua organização circular - a autopoiese - o sistema precisa mudar constantemente sua estrutura, e sua estrutura muda continuamente dada a sua própria dinâmica interna. A estrutura dinâmica de um sistema vivo, portanto, define sua organização: se ela cessa, a unidade desintegra, ou, em outras palavras, o organismo não é mais um sistema vivo.

Mas como conciliar um sistema circular como esse, operacionalmente fechado, com a observada correspondência do organismo com o meio? Para o biólogo evolutivo de hoje, talvez o maior desafio para entender a BC seja o seu conceito de adaptação, embora essa não é de maneira alguma uma inovação desse sistema explicativo, mas uma conceituação antiga do pensamento ocidental, e presente no sistema evolutivo de Lamarck52. A dificuldade vem, portanto, de 60 anos de síntese moderna separando o estudante de biologia de conceituações pré-darwinianas. A BC considera a adaptação - assim como a organização - uma invariante. Como para Lamarck, não há possibilidade de variedades orgânicas mais ou menos adaptadas pois toda variação ao mesmo tempo implica e é resultado da adaptação. É ao derivar adaptar de estar adaptado que esse conceito recebe sua carga conceitual neodarwinista, levando autores como Lewontin a, preferencialmente, abandoná-lo (Levins and Lewontin, 1985).

Entendemos adaptação na BC através do acoplamento estrutural e do papel do observador. Ao distinguir um organismo, distinguimos dois domínios de existência: a fisiologia, onde o observador distingue o organismo como unidade composta; e o sistema organismo-meio, em que organismo e meio estão acoplados estruturalmente por sua história

de interações. Como tanto organismo quanto o meio são determinados estruturalmente, um sistema não determina o outro, ainda que as transformações que ocorrem a cada um momento em cada um desses sistemas sejam congruentes com sua história de interações. Esse domínio

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Não é possível, no entanto, confundir a BC com um sistema lamarckiano, pois, na BC, las variaciones en la

de existência é o domínio comportamental do organismo (ver figura 1, abaixo), também gerado pela operação de distinção de um observador.

unidade autopoiética (domínio da fisiologia)

domínio do comportamento meio

Figura 1: o organismo em seu meio (adaptado de Maturana y Mpodozis, 1992)

Comportamento, então, é um comentário do observador quando ele ou ela descreve as regularidades na história de interações entre um organismo e seu meio. Os dois domínios não se intersectam, ainda que um organismo sempre mude sua estrutura em congruência com sua história particular de interações e, inversamente, sua estrutura irá restringir os tipos de interação permitidas (Maturana, 1997c; Maturana y Mpodozis, 1992). O sistema vivo, portanto, além de determinado estruturalmente (todas as mudanças sofridas são determinadas a cada instante por sua própria estrutura), está acoplado estruturalmente com o meio, e precisa conservar essa relação para realizar sua autopoiese. Tanto quanto a organização, portanto, a adaptação é uma invariável e condição sine qua non da existência do organismo: retire a adaptação, e o sistema orgânico deixa de existir, tanto quanto se se interromperem seus processos metabólicos internos. A diferença entre estrutura e organização na BC tem também conseqüências para o modo de falar sobre a evolução e desenvolvimento individual.

Como na DST, o organismo da BC é um sistema ontogênico, mudando sua estrutura a cada momento, com conservação da autopoiese (da organização) e da adaptação (do acoplamento com o meio). E tanto quanto na DST, não é possível falar na BC de

da unidade autopoiética, integram o seu domínio fisiológico sistêmico. Particularmente na BC, não podemos falar da seleção natural como um mecanismo causal da evolução. Isso porque no processo de desenvolvimento e reprodução de cada fenótipo ontogênico (sistemas ontogênicos de classes semelhantes), é a conservação ou a mudança do modo específico de relação organismo-meio - ou seja, o comportamento - que determina a continuação da linhagem ou o estabelecimento de uma nova. Como vimos, a adaptação na BC é uma constante, e apenas em um sentido metafórico há “seleção”: há sucesso reprodutivo diferencial, não como um mecanismo, mas como um produto da evolução. Ao mudar sua relação específica com o meio - seu domínio comportamental - um fenótipo ontogênico passa a realizar a autopoiese de maneira diversa que os outros membros da linhagem. Com a mudança comportamental, muda também o “genótipo total” (as possibilidades epigenéticas) da nova linhagem em relação à linhagem ancestral, configurando portanto a mudança genética como secundária e dependente da relação organismo-meio. Esse é o processo chamado, na BC, de deriva natural (Maturana y Mpodozis, op. cit.).

3.4.4 Relações co-ontogênicas

Uma distinção importante desde Darwin, em sua explicação dos vários modos de relação reunidos sobre seu termo “luta pela existência” é entre: a) interações com um meio inerte; b) interações com outros organismos; c) e interações com organismos da mesma espécie (Darwin, 1859; ver também parte 2.2 deste trabalho). Para Darwin, a interação biótica

é mais importante que a abiótica, e a interação entre organismos de mesma espécie mais importante que as demais, sempre levando em conta o efeito que essas interações terão para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo do organismo. Em termos da BC, essas distinções, assim postas, não fazem sentido, pois do ponto de vista do organismo tudo o que há são

perturbações, tanto aquelas próprias à sua dinâmica interna quanto as originadas no meio, e, nesse último caso, não há distinção entre um meio inerte e um vivo. No entanto, um observador pode descrever dois (ou mais) organismos em interação, e, nesse caso, será observada, além da coerência de mudanças já esperada em qualquer relação organismo-meio, um acoplamento estrutural co-ontogênico (Figura 2, abaixo).

Tempo 1

Tempo 2

Figura 2: relações co-ontogênicas no tempo (adaptado de Maturana y Mpodozis, 1992)

Ainda que para cada organismo o outro seja apenas mais uma fonte de perturbações, na descrição do sistema inteiro o observador irá apontar mudanças estruturais ontogênicas correspondentes, no tempo, entre os dois organismos. Nos termos da BC, isso significa que as respectivas autopoieses são conservadas em coerência com a história de relações entre os dois sistemas. É preciso dizer que a unidade autopoiética foi concebida na BC como uma rede de produções moleculares, e, portanto faz referência à dinâmica celular (Maturana and Varela, 1980). Nesse nível celular, um acoplamento histórico como da Figura 2 é gerativo de sistemas autopoiéticos de segunda ordem, como colônias historicamente integradas e organismos que

Tal configuração histórica de sistemas de segunda ordem mostra que há, sim, distinção na BC entre relações organismo-organismo e as estabelecidas com sistemas não-vivos, ainda que em ambos os casos o organismo mude sua dinâmica em coerência com uma fonte - qualquer fonte - de perturbações. O acoplamento histórico entre sistemas de segunda ordem possibilita a configuração de um terceiro nível de organização, os sistemas sociais. Para a BC, a manutenção recursiva desse acoplamento entre os organismos participantes de um sistema de terceira ordem configura um domínio lingüístico (Maturana and Varela, 1998). Nesse caso, seja o sistema de terceira ordem uma colônia de formigas ou um bando de maritacas (eu incluiria também qualquer colônia de organismos unicelulares, ainda que a BC insista na distinção entre sistemas de primeira e segunda ordens quanto ao domínio de relações) as relações historicamente conservadas são necessariamente domínios lingüísticos.

Como a deriva natural é o mecanismo evolutivo por excelência na BC, e a deriva é própria da “dinámica de relación entre ser vivo y medio” (Maturana y Mpodozis, 1992), é clara, na BC, a importância também do domínio comportamental estabelecido pelo acoplamento estrutural entre sistemas vivos para a evolução. É a realização comportamental que assegura, na BC, as condições que tornam possível a conservação da linhagem, bem como, no curso da reprodução de um determinado fenótipo ontogênico, a mudança comportamental sem perda da realização autopoiética (Maturana y Mpodozis, op. cit.).

Portanto (ainda que na BC isso não seja expresso assim; então, a responsabilidade pela conclusão é minha), considerando que: o domínio comportamental é instrumental na deriva; e, a relação entre organismos é um sistema gerativo distinto ao estabelecer sistemas de terceira ordem; o domínio lingüístico tem um papel importante, diferencial, no processo de

conservação e mudança em uma linhagem. A melhor maneira de abordar essa distinção é estabelecer o contexto em que tais relações façam uma diferença de fato. Um desses contextos é a espécie, e a abordagem disponível, a evolução hierárquica de Stephen Jay Gould.