• Nenhum resultado encontrado

Os três primeiros capítulo deste trabalho foram reunidos sob um grande tema, “Biologia e Evolução”, por algumas boas razões. Primeiro, o tratamento proposto da linguagem neste trabalho é biológico, ou seja, pretendo discutir a linguagem como parte integrante do que acontece com o vivo em seus percursos históricos, tanto individual quanto transgeracional, e considero que os debates no âmbito dos estudos evolutivos são um palco privilegiado para a discussão da fenomenologia do vivo. Se, no contexto das questões lingüísticas, devemos considerar por “vivo” apenas o humano ou devemos incluir outros organismos, isso será, também, objeto de discussão deste trabalho.

Outro motivo para uma unificação temática dos três primeiros capítulos, e em sintonia com o contexto das preocupações mais atuais no ambiente acadêmico, é o fato de a investigação da linguagem do ponto de vista da biologia ter sido dominada, nos últimos 25 anos, por perguntas acerca da evolução da linguagem. Ainda que de modo indireto, esse viés evolutivo transparece nos debates sobre o caráter “inato” ou “emergente” da linguagem no humano (por exemplo, em Tomasello, 1995), nos estudos comparados da psicologia e na psicologia do desenvolvimento (Tomasello, 2000), e na possibilidade e no significado da existência de análogos lingüísticos na comunicação de organismos não-humanos, uma questão mais visível no âmbito dos estudos primatológicos (Savage-Rumbaugh and Lewin, 1994; King, 1999) mas com interesse crescente na investigação de outros organismos (Pepperberg, 1993; Oller and Griebel, 2004).

Mais diretamente, tem aumentado o volume de literatura dedicada à investigação das bases sócio-históricas, cognitivas, neurofisiológicas e até matemáticas5 da evolução da linguagem humana, ao lado das inquirições mais tradicionais das pesquisas paleoantropológica e arqueológica (Deacon, 1997; Hurford, Studdert-Kennedy and Knight, 1998; Jablonki and Aiello, 1998; Dunbar, 1998). Finalmente, há os debates recentes e internos da própria lingüística sobre o que, afinal de contas, estamos chamando de linguagem quando perguntamos sobre sua evolução (Jackendoff and Pinker, 2005; Fitch, Hauser and Chomsky, 2005). Em leve contradição com o modo como iniciei o parágrafo anterior, hoje já nem podemos falar que a evolução é um aspecto da discussão da linguagem enquanto biologia, mas a própria evolução da linguagem tornou-se um fenômeno amplo de inquirição científica, tratado sob vários aspectos. Um indicativo curioso da importância que assumiu a evolução da linguagem é a tendência “transdisciplinar” mais ou menos recente de se iniciar textos de

5

O exemplo clássico são as modelizações do modo e da taxa de evolução do sistema lingüístico, uma abordagem facilitada pela tradição das ciências cognitivas e lingüísticas de investigação dos aspectos formais e “computáveis” da sintaxe (ver, por exemplo Nowak, Komarova, and Niyogi, 2002).

lingüística com esse tema, enquanto se reservam os últimos capítulos de obras de evolução humana para discussões sobre a linguagem (p. ex.: Foley, 1997; Leakey 1997).

Penso ser fundamental, portanto, uma discussão sobre o que possamos entender por evolução, o que significa perguntarmos pela biologia de um organismo quando observamos suas estruturas, seu comportamento e suas relações com o entorno (o que inclui, além do ambiente “inerte”, outros organismos), e como esses entendimentos informam o modo como consideramos a linguagem como um fenômeno biológico. A citação no início deste capítulo, de Dobzhansky - a de que, sem considerar a evolução “nada faz sentido em biologia” -, não é despropositada, mesmo descontado o apreço inflacionado que qualquer estudioso tem pelo seu próprio campo de atuação. Desde Darwin (para utilizar o sintagma preposicionado que mais freqüentemente abre os textos de biologia), perguntar pela fenomenologia do vivo passa, em algum momento, pela constatação de que qualquer dado organismo tem uma história inter- geracional, e que, em algum ponto, essa história está entrelaçada com a história inter- geracional de qualquer outro dado organismo. No entanto, o modo particular de interpretar esse fenômeno bastante consensual e o modo particular de utilizá-lo em explicações sobre os mais variados processos do vivo é objeto de acirrada discussão entre os biólogos evolutivos.

É preciso deixar claro desde já minha posição sobre duas questões, posição essa que, não acidentalmente, irá informar todas as minhas escolhas epistemológicas ao longo deste trabalho. Uma é a cisão histórica - nas mais variadas tradições filosóficas e científicas - entre o humano e o restante do mundo natural, como objetos de inquirição ontologicamente distintos; e, a outra, a consideração, principalmente nas ciências humanas (de forma muitas vezes depreciativa), mas também nas ciências biológicas (aí com maior condescendência, quando não claro entusiasmo), de que o tratamento evolutivo de sistemas vivos implica, ou é equivalente, à utilização da determinação biológica como princípio explicativo. Nessa visão, a biologia só pode oferecer um nível de análise “mais profundo” ou anterior aos processos

observados no vivo, e a herança biológica estabelece a condição inicial para a realização de tais processos. Nature antes e a base de nurture.

Começando com o problema da cisão, sugiro que essa longa tradição não é apenas o reflexo da observação de descontinuidades de todo tipo entre o restante do mundo vivo e o humano, mas, o que é apenas aparentemente paradoxal, também um reflexo de continuidades observadas. O que é aparente (e equivocado) aqui é que haja de fato uma dicotomia continuidade-descontinuidade6 na base das tomadas de posição sobre a singularidade humana. Vimos na introdução como a idéia da Grande Cadeia apóia-se necessariamente em alguma noção de continuidade ontológica. Em muitos discursos evolutivos - pelo menos na interpretação atual e hegemônica dos processos evolutivos - ocorre um fenômeno semelhante, uma “temporalização da cadeia” (Lovejoy, 1936). Livramo-nos mais rápido do falso paradoxo ao entendermos que “cisão” não quer dizer apenas a exclusão total do humano do mundo do vivo (ainda que essa também seja uma opção disponível), mas o seu deslocamento para uma posição diferenciada, o topo ou a resolução de um continuum, respectivamente nas perspectivas estática e temporal. A oposição dicotômica sobrevive em uma background gradualista, pois nem sempre importa se a diferença é de “tipo” ou de “grau”, desde que a distância seja mantida em níveis seguros.

Esse modo peculiar de encarar a posição do humano no mundo vivo - uma espécie de “dicotomia na continuidade” - é instrumental, também, em nossa perspectiva sobre a diversidade de relações no mundo vivo. Assim como consideramos o humano ao mesmo

tempo parte integrante e distinto de um conjunto de objetos naturais, o mesmo fazemos com

6

Não nego que, em alguns momentos específicos, a dicotomia possa se tornar relevante, quando um dos lados é efetivamente usado na argumentação. Isso aconteceu nos anos imediatamente posteriores à publicação do

Origem das espécies, de Darwin (1859), principalmente através de Thomas Huxley, que fez da continuidade seu

cavalo de batalha contra a criação especial ou “fixidez” das espécies (Huxley, 1863). Mais recentemente, a dicotomia ressurgiu nos debates entre lingüistas (principalmente os defensores de uma gramática humana universal), de um lado, e psicólogos comparativos e proponentes das pesquisas em linguagem símia, de outro (Savage-Rumbaugh and Lewin, 1994; Fouts, 1998). Mantenho, contudo, que no long run do imaginário

científico, e principalmente no contexto a que estou aqui me referindo, do debate sobre as similaridades e diferenças dos processos relacionais entre os organismos, mantenho minha convicção de que não é a dicotomia continuidade-descontinuidade que informa a cisão humano-mundo natural.

os processos relacionais atribuídos aos seres vivos. Organismos “mais semelhantes” ao humano (na perspectiva desses processos) também receberão tratamento diferenciado. Essa extensão da particularização do humano responde pelo motivo porque chegamos a perguntar se alguns animais “possuem” uma linguagem ou uma cognição (os golfinhos? os chimpanzés?) e estamos sempre mais propensos a negar essas qualidades a organismos “abaixo na escala”, como é o caso dos seres unicelulares e das plantas.

A Grande Cadeia do Ser é comumente apresentada na literatura acadêmica como uma visão de mundo pré-científica, movida por preferências religiosas, e finalmente derrubada pela moderna e secular teoria evolutiva. Mas uma breve pesquisa em textos acadêmicos contemporâneos em várias áreas (com destaque para a filosofia, a lingüística, a psicologia e, é claro, a própria biologia evolutiva), inclusive aqueles que manifestam expressamente sua discordância com o ideário progressivista da Grande Cadeia, é suficiente para detectar, em sua grande maioria, a presença desse modo particular de ver o mundo, tamanho é o seu apelo na tradição ocidental. Há inúmeros exemplos na literatura, e seria inútil listar mesmo uma pequena parte com o intuito de cobrir as várias nuances que essa adesão, consciente ou não, assume. Cito aqui, como ilustração, apenas dois exemplos.

Em O animal moral, o psicólogo evolutivo Robert Wright, após três centenas de páginas deplorando a separação tradicional entre o humano e o mundo natural (pois esse é um princípio importante da psicologia evolutiva: demonstrar que o humano é “apenas” um animal) termina seu livro enaltecendo a complexidade da mente humana. Diz Wright (1996):

...[sabemos que a mente humana é] projetada para produzir um amplo leque de comportamentos, dependentes de todo o tipo de sutilezas circunstanciais, e que o leque de comportamentos que produz é expandido pela inédita diversidade de circunstâncias do ambiente social moderno.

O adjetivo “moderno” também revela o ideário da Grande Cadeia nas diferenças entre as sociedades humanas (espacial e temporalmente), e é automática distinção de Wright entre um atributo biológico projetado - a mente - e a diversidade posterior, atribuída ao ambiente.

O filósofo Daniel Dennet, que em A perigosa idéia de Darwin faz a defesa enérgica do “reducionismo triunfante, do mecanicismo triunfante e do materialismo triunfante” (palavras do autor) e propõe ser toda a diversidade da vida o produto de processos algorítmicos irracionais, modera o tom mecanicista diante de nossas capacidades especiais. Nas duas passagens abaixo, respectivamente, a cisão humano-mundo natural e em seguida o próprio ideário da Grande Cadeia (superioridade na continuidade), transparecem na argumentação de que a diferença qualitativa é evidente demais para ser contestada. Como em vários outros textos científicos, vemos aqui a utilização da “capacidade da linguagem” como um argumento específico sobre a condição especial do humano.

... as mentes humanas são (...) artefatos, e todos os seus poderes devem ter no fundo uma explicação “mecânica” (...) Ainda assim, existe uma enorme diferença entre nossas mentes e das outras espécies, um abismo grande o bastante até para fazer uma diferença moral (...) podemos não ser a espécie mais admirável do planeta, mas somos sem dúvida alguma a mais inteligente. Somos também a única espécie com linguagem.

(Dennet, 1998)

Mais adiante, Dennet atribui condições intermediárias a seres um pouco “abaixo” na escala (a idéia da continuidade e de complexidade relativa, novamente):

... os poderes que outras espécies adquirem em virtude do uso de protolinguagens, hemi-semi-meio-linguagens, são realmente semelhantes aos poderes que adquirimos graças ao nosso uso da verdadeira linguagem. Estas espécies sobem, sem dúvida, alguns patamares da montanha cujo ápice habitamos...

Minha posição quanto à cisão, diversa das acima exemplificadas, não é nova ou idiossincrática, mas fruto de uma leitura radical do processo evolutivo. Essa leitura por sua vez também não tem nada de nova, mas encontra-se esboçada já nas primeiras abordagens evolutivas originais de Lamarck (1809) e de Darwin (1859), e polida, ou mesmo substancialmente modificada, por autores subseqüentes, principalmente com a introdução de uma abordagem sistêmica dos processos vivos e da evolução (p. ex.: Bateson, 1972; Maturana and Varela, 1980; Maturana y Mpodozis, 1992; Oyama, Griffiths and Gray, 2001) e uma biologia “dialética”, “pluralista” e “estrutural” (p. ex., e respectivamente: Levins and Lewontin, 1985; Lewontin and Gould, 1979; Gould, 2002), que serão tratadas no terceiro capítulo deste trabalho. Nessa leitura de evolução (radical, no sentido de encarar os processos vivos do ponto de vista do que acontece efetivamente em seu devir histórico e relacional), o problema da cisão deixa de ser cientificamente interessante, com conseqüências para a investigação de quaisquer dos sub-sistemas envolvidos nos processos vivos, entre eles, a linguagem. Dado o papel crucial que a linguagem desempenha na distinção do humano em nossa tradição filosófico-científica, é necessário levar a sério uma crítica ao compromisso tradicional que temos com a cisão e, por outro lado, levar a sério as propostas disponíveis nos estudos evolutivos, para livrarmo-nos desse “jogo de linguagem” (Wittgenstein, 1987). Isso requer, no meu entendimento, que tanto as leituras hegemônicas quantos as alternativas das relações do mundo vivo sejam discutidas nos três capítulos sobre biologia e evolução, antes de um posicionamento sobre a própria linguagem.

A segunda questão relevante diz respeito às “duas culturas” da inquirição científica - para usar o termo já clássico de C. P. Snow (1959). Nós, pessoas envolvidas nas discussões acadêmicas no âmbito das ciências humanas e biológicas, temos a tendência de atribuir à biologia, quando utilizamo-la como instrumento para abordar os processos relacionais do humano e de outros organismos, um nível mais fundamental (se o nosso discurso é favorável)

ou simplesmente inadequado (se não é) de investigação. Essa questão anda de mãos dadas à cisão entre o humano e o mundo natural - e não escolhi citar os autores acima por acaso.

Wright é representante da psicologia evolutiva, linha de investigação que contribui para a reprodução, no nível da distinção entre disciplinas acadêmicas, do eterno debate ocidental entre “natureza e cultura” (p. ex., Magro, 1999). Os psicólogos evolutivos atraem assim a crítica de cientistas sociais, de que um desconhecimento nas áreas das humanidades não impede seus autores de estabelecer hipóteses “fortes” sobre a configuração atual das relações humanas com base na herança das condições em um passado evolutivo7. É o que os psicólogos evolutivos chamam de “ambiente de adaptação evolutiva”, ou EEA (environment of evolutionary adaptedness; Barkow, Cosmides and Tooby, 1992). O outro autor citado,

Dennet, é menos enfático em defender a insuficiência de estudos sócio-históricos frente a realidades biológicas mais profundas, mas, como os primeiros, também advoga causas últimas para a diversidade de processos atuais, e a sua leitura da evolução como um acúmulo de micro-processos algoritmicamente analisáveis deixa pouco espaço para uma “descrição densa” (Geertz, 1978; Pereira, 2005) do que acontece nos processos efetivos do vivo, e passível, portanto, de críticas semelhantes àquelas direcionadas à psicologia evolutiva.

Quer nossa perspectiva seja de maior ou menor distância entre nós mesmos e outros organismos, nossas dúvidas filosóficas sobre o estatuto do humano irão sempre respingar no tratamento dispensado ao vivo em geral, o que é pouco iluminador em um quadro de diversidade irredutível de modos de vida. E se continuarmos a desconfiar da biologia evolutiva como intrinsicamente reducionista - em virtude da posição, ainda que hegemônica, de alguns de seus representantes - perdemos uma oportunidade dupla: a de enriquecer nossa compreensão das relações do vivo na perspectiva de seus percursos históricos, e de enriquecer as descrições dos processos do vivo disponíveis nas abordagens evolutivas tradicionais.

7