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2.2.1 O apontador de caminhos

Com típica modéstia vitoriana, o naturalista Charles Darwin inicia o último parágrafo da Introdução de Origem das espécies (1859)29 confessando partilhar nossa ignorância sobre a diversidade e as “inter-relações” (mutual relations, no original; 1859b) dos besouros e de quaisquer outros seres:

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Utilizo neste trabalho quatro fontes distintas para o Origem das espécies. No caso das edições revisadas pelo autor, o procedimento justifica-se por haver mudanças de conteúdo importantes entre a 1a e a 6a edições. No caso das versões em português que tenho em mãos, há dúvidas quanto à tradução de algumas passagens e algumas inadequações (p. ex., as “Notícias históricas”, que nas versões brasileiras aparecem nas traduções da 1a edição só foram introduzidas por Darwin na 3a edição). O texto-base que utilizo para a 1a edição de 1859 é a edição brasileira da editora Itatiaia, 2002, tradução de Eugênio Amado, referida como “Darwin, 1859”. Para a 6a edição, referida aqui como “Darwin, 1872b”, o texto-base é a versão digitalizada por John van Wyhe em The writings of Charles Darwin on the web (http://pages.britishlibrary.net/charles.darwin/) e faz parte do acervo do projeto The complete work of Charles Darwin online (http://darwin-online.org.uk/) dirigido pelo professor van Wyhe, da

Universidade de Cambridge. Como textos auxiliares da 1a edição de 1859 utilizo a edição brasileira da Editora Hemus, de 1981, tradução de Eduardo Fonseca, e a versão original inglesa, também organizada por van Wyhe. Cito essas duas versões como “Darwin 1859b”e “Darwin 1859c”, respectivamente. Para as duas versões inglesas disponibilizo o trecho original em nota de pé-de-página, se necessário, sendo que a tradução para o português no corpo do texto é de minha inteira responsabilidade.

Ninguém deve surpreender-se com o fato de permanecerem obscuros tantos pontos relacionados com a origem das espécies e variedades, desde que se dê o devido desconto à nossa ignorância quanto às inter-relações existentes entre todos os seres vivos que nos circundam. Quem poderia explicar por que determinada espécie tem habitat amplo e é muito numerosa, enquanto que outra espécie afim é mais rara e vive em habitat restrito? Entretanto, tais relações são da mais alta importância, pois determinam nossa situação atual e, conforme acredito, as futuras modificações e adaptações positivas30 de todo habitante deste mundo. Sabemos ainda menos sobre as inter-relações dos incontáveis habitantes deste planeta através das numerosas épocas geológicas de sua história.

Logo em seguida, o autor confessa um equívoco pessoal ainda maior, se bem que, esse, posteriormente sanado. Incapaz de continuar imparcial após uma mudança tão radical de ponto de vista, Darwin finaliza o parágrafo e a própria Introdução de modo bem mais contundente do que começou:

Embora muita coisa ainda permaneça obscura, já não mais nutro qualquer dúvida, depois dos estudos mais diligentes e do julgamento mais imparcial de que sou capaz, de que o ponto de vista sustentado pela maior parte dos naturalistas, e que outrora eu próprio defendi - isto é, que cada espécie teria sido criada independentemente - é errôneo. Estou plenamente convencido de que as espécies não são imutáveis; e que aquelas pertencentes ao que chamamos de “mesmo gênero” são descendentes diretas de uma outra espécie, via de regra extinta; da mesma maneira que as variedades constatadas de uma espécie descendem de um dos tipos daquela espécie. Por fim, estou também convencido de que a seleção natural foi o principal meio de modificação, mas não o único.

Não leio essa passagem de Darwin, principalmente sobre os “pontos obscuros”, como uma estratégia de argumentação do autor, em que uma ignorância passada dá lugar à iluminação pela elegante resolução da seleção natural, como é tão comum em interpretações

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Não há nenhum motivo para traduzir “future modifications and success” (Darwin, 1859c) como “futuras

modificações e adaptações positivas” (ou Darwin 1859b, em que o termo é traduzido por “progresso”). Tenderei a não me queixar das duas versões que decidi utilizar neste trabalho, mas nesse caso todo o arcabouço conceptual de Darwin é severamente modificado, e de modo que perpetua alguns enganos comuns sobre suas proposições: “sucesso”, “progresso” e “adaptação”, não são termos intercambiáveis em Darwin. Sucesso é viabilidade diferencial dos organismos; adaptação é correspondência entre estrutura e condições de existência; e progresso,

neodarwinistas (p. ex., Dennet, 1998). Nem o teor do Origem nem suas outras publicações diretamente ligadas ao problema dos mecanismos evolutivos (p. ex.: Darwin 1871; Darwin, 1872; Darwin, 1883) corroboram essa versão. O autor realmente pensa que a própria diversidade e as inter-relações particulares dos organismos são largamente mal- compreendidas, e provavelmente continuarão a sê-lo por muito tempo (and will long remain obscure, Darwin acrescenta, no original; 1859c). É certo que Darwin, de um lado, realmente

“explica” tais relações (a afinidade entre as espécies, as diversidades relativas dos vários grupo e a distribuição geográfica) que seriam de outro modo incoerentes, pela própria factualidade da evolução, em oposição a uma tese de criação especial das espécies, que hoje nem é mais, e espero, continuará não sendo, objeto de inquirição científica (apesar de que o interesse na criação especial seja, em si mesmo, um interessante objeto de estudo). É também certo que Darwin considera a seleção natural como o mecanismo principal - “mas não o único” (Darwin, 1859) - da factualidade da evolução. O que estou argumentando é que Darwin conscientemente aponta como alternativas à seleção natural tanto mecanismos discutidos ou por ele mesmo no Origem e em outras obras quanto as efetivas “inter-relações existentes entre todos os seres vivos”, que, para o autor, são tão pouco conhecidas quanto “da mais alta importância”.

Tenho consciência do alerta de Lewontin e Gould (1979), reproduzido nas citações iniciais deste capítulo, de que all sides invoke God´s allegiance quando se trata de Darwin, e não pretendo repetir aqui os mesmos erros. A leitura de Darwin como a de qualquer outro autor não escapa à exegese particular e às preferências de toda ordem do leitor, mas toda interpretação apóia-se em acordos mínimos e leituras cuidadosas do próprio texto e do contexto que envolve o texto. Concordo, portanto, com Lewontin e Gould quando eles reclamam que a transmutação de Darwin em neodarwinista ex post facto é de um realismo politicamente calculado, que excede tanto as virtudes quanto os defeitos do rei. Ainda assim,

por maiores e mais tendenciosas que sejam as apropriações políticas e filosóficas de Darwin, ou por isso mesmo, não há a necessidade de preservar seu texto como um legado de teses invioláveis (e nem Gould e Lewontin sugeriram isso). Sem releitura não há leitura, e nem há texto, em primeiro lugar. A situação hoje é que devemos dialogar com essa miríade de apropriações darwinianas tanto ou mais que com o próprio autor.

Para situar melhor o modo pelo qual escolhi negociar as leituras possíveis e desejáveis de Darwin, refiro-me a outra citação inicial deste capítulo, que traz a instigante pergunta de Donald Symons (1987): se somos todos darwinistas, what´s the fuss about? Utilizando uma resposta de Susan Oyama a essa pergunta (a autora aplica-a, na verdade, a outro contexto, o interacionismo, que será abordado adiante, na parte 3.3; Oyama, 2000), o fuss surge - e às

vezes não surge quando deveria surgir - de uma diversidade de concepções dos processos do vivo, na maioria das vezes incompatíveis nos debates sobre as questões evolutivas. E Darwin, que é unânime e justificadamente considerado um divisor de águas no debate a longo prazo, desliza, por assim dizer, de uma concepção a outra, ainda que o faça com uma honestidade e uma lucidez admiráveis.

Não vejo incoerência na obra de Darwin, mas é característica desse autor manter o debate aberto, não apenas acerca dos mecanismos evolutivos - incluindo sua defesa apaixonada, mas não exclusivista, da seleção natural - mas até sobre questões mais “quentes” no contexto geral da definição dos processos históricos do vivo. Por exemplo, sua discussão dos processos de “divergência de caracteres” (apresentada no final do capítulo 4 do Origem, Darwin, 1859) é interpretada de diferentes maneiras por diferentes autores: uma extrapolação temporal de processos de adaptação local, ou, em uma segunda análise, uma dinâmica própria no nível das espécies e taxa superiores (compare, p. ex., Dennet, 1998; e Gould, 2002), dependendo, via de regra, das concepções biológicas prévias de quem estiver lendo, ou seja, de sua linhagem acadêmica. O mais curioso é que essas diferentes linhagens, de uma forma ou

de outra, remetem ao próprio Darwin. Nesse aspecto, concordo com William Bateson e Thomas Hunt Morgan (ver parte 2.1.1, neste capítulo) em suas versões da importância de Darwin como um “apontador de caminhos”: no sentido duplo de indicar caminhos possíveis ou inusitados a seguir, e aprumar, aplainar, desbastar ou questionar caminhos tradicionais que sempre estiveram à disposição do peregrino.

Na citação da Introdução do Origem (p. 93, acima), Darwin textualmente aponta alguns caminhos, que os mais variados estudos dos processos do vivo têm encarado com também variados níveis de interesse e competência, desde o mais plenamente desenvolvido programa investigativo até questões que só têm suscitado um interesse cientifico marginal, quando muito. Para isso, nada melhor que nos voltarmos aos pontos que Darwin considera “ainda permanecerem obscuros” sobre “as origens das espécies e variedades”. Não estou apontando minúcias do texto de Darwin para adequá-lo à minha própria argumentação. Essas são questões gerais importantes para Darwin, e não apenas no Origem. Além do mais, foram propositalmente colocadas pelo autor no final da Introdução para indicar aquilo de que Darwin iria e não iria tratar no livro.

Para exemplificar onde permanecemos ignorantes, Darwin faz uma pergunta retórica sobre as razões da diversidade e da distribuição geográfica relativas das espécies. Apesar da pergunta ser sobre o tamanho das populações em uma mesma espécie (para lembrar do trecho: “... por que determinada espécie... é muito numerosa...?”) e não sobre o número de espécies, podemos estar confiantes que para Darwin, tanto quanto para Lamarck (1809), essa

é uma pergunta geral sobre a diversidade de formas e modos de relação dos seres vivos, pois ambos os pensadores viam as variedades e os variados hábitos e formas dentro de uma espécie como espécies incipientes, uma tradição extrapolacionista que, inclusive, irá perdurar entre os neodarwinistas (Mayr, 1998; Gould, 2002).

Podemos dizer quanto dessa pergunta já foi respondida, ou quanto interesse ela tem suscitado entre os investigadores, desde Darwin? Em a Diversidade da vida (1994) o entomologista e biólogo evolucionista Edward Osborne Wilson (mais conhecido entre não- biólogos, como eu, por inventar a sociobiologia, e propor a unificação das ciências - humanas, inclusive - em torno da biologia: a “consciliência”; Wilson, 1975; Wilson, 1998) traça um bom panorama do que sabemos e não sabemos acerca dos comos e porquês da diversidade. Como é usual em ciência, devemos sempre especificar melhor nossa pergunta. Para investigar, é preciso repartir um problema tão fenomenal como o de Darwin, sobre a diversidade em geral, em contextos mais específicos, tratáveis. Se perguntarmos primeiro qual a situação atual da diversidade, estaremos no terreno mais estreito, embora ainda imenso, da taxonomia.

Qual o tamanho da diversidade, hoje, em número de espécies? Segundo Edward O. Wilson, não podemos nem mesmo saber a ordem de magnitude. Estimativas variam de alguns milhões a dezenas ou centenas de milhões, e apenas cerca de 1,4 milhões de espécies foram descritas até o momento (Wilson, 1994). Wilson exemplifica esse ponto com os dois grupos mais diversificados de organismos conhecidos. De todas as espécies descritas, cerca de um sexto são de plantas floríferas e mais da metade são insetos. Desses últimos a grande maioria, com quase 300 mil espécies é de coleópteros (os besouros, é claro - a aí entendemos melhor o chiste de Haldane). Ou seja, de cada 3 espécies de organismos descritos, pelo menos uma delas ou é um besouro ou então é uma flor. Wilson chega a especular que a “predileção desmesurada” por plantas floríferas e insetos pode refletir as intricadas simbioses que essas duas linhagens vêm estabelecendo historicamente.

O problema é que a maior parte dos besouros e plantas floríferas vive nas regiões mais subestimadas do planeta - as florestas tropicais - e com dificuldade adicional de muitos habitarem as altas copas das árvores, ambiente virtualmente inacessível ao pesquisador

humano (Wilson, op. cit.). Usando a técnica do “fumegador (lançar inseticidas pro alto e recolher os cadáveres no solo), o entomólogo Terry Erwin calculou 163 espécies de besouros vivendo na abóbada de uma espécie de árvore no Panamá, a Luehea semanni. Se há 50 mil espécies de árvores nos trópicos, e se a diversidade na Luehea for típica, haveria mais de 8 milhões de espécies de besouros apenas nas abóbadas das árvores tropicais. Números surpreendentes para uma diversidade basicamente desconhecida. Talvez proceda o pessimismo relativo de Darwin, então, pois minorar nossa ignorância sobre a vida está muito além de apenas seguir o mandamento baconiano de investigar para saber.

A exploração do mundo natural é feita diligentemente e há muito tempo pela comunidade científica, e novas espécies surgem a cada momento. Como diz Wilson (op. cit.), “é um mito que os cientistas estourem uma garrafa de champanhe sempre que uma nova espécie é descoberta. Nossos museus estão abarrotados de espécies”. Quando passamos dos besouros a seres ainda menos conspícuos, como as bactérias, até as melhores estimativas são desanimadoras. Como saber quantos tipos diferentes de bactérias há no planeta, se nem ao menos sabemos como aplicar o conceito de espécie a uma bactéria? Muitos desses organismos trocam seus genes diretamente uns com os outros, mesmo entre linhagens bastante distintas (Margulis e Sagan, 2002).

Segundo dados de Wilson (op. cit.), em 1989 havia cerca de 4 mil “espécies” de bactérias catalogadas. De um punhado de solo coletado próximo ao seu laboratório, os microbiólogos Jostein Goksøyr e Vigdis Torsvik (citados por Wilson, op. cit.) removeram e purificaram o DNA dos organismos encontrados, reunindo-o em uma massa comum. Aquecidas, as moléculas separam-se nos dois filamentos simples que as constituem. Resfriado, o DNA é “espiralado” novamente: quanto maior a concentração de filamentos complementares, mais rápido o espiralamento ocorrerá. Por essa técnica (utilizando como comparação a velocidade de espiralamento do DNA de uma bactéria famosa nas bancadas dos

biólogos experimentais, a Escherichia coli), Goksøyr e Torsvik estimaram haver ali 5 mil espécies diferentes de bactérias. Como critério, determinaram que seriam classificadas como espécies distintas quaisquer duas células que diferissem no mínimo em 30% em seu DNA, um critério conservador (humanos e chimpanzés diferem em muitíssimo menos que isso, e nem por isso costumamos juntá-los em uma mesma espécie). Resumindo, em uma pitada de solo da Noruega havia mais diversidade bacteriana que o total catalogado até então pela ciência.

É claro, a mera distinção das espécies - muitas vezes examinando um espécime empalhado em um museu ou através da análise de diferenças no nível do DNA - não garante nosso conhecimento sobre os modos de vida desses organismos. As relações que eles mantêm entre si e com seu ambiente permanecem, nesse nível de análise, “obscuras”, como disse Darwin. Se, agora, colocarmos nossa lupa sobre uma comunidade específica de organismos, entramos no tradicional campo de investigação dos estudos ecológicos, e a pergunta, também um pouco mais modesta que aquela inicial de Darwin é: “como a diversidade se forma pela criação de ecossistemas?” Diz Edward Wilson:

A águia de cabeça branca (Haliaeetus leucocephalus), uma espécie, voa sobre a Floresta nacional Chippewa, em Minnesota. Mil espécies de plantas compõe a vegetação lá embaixo. Por que essa combinação específica, e não mil águias e uma planta? É natural perguntar se esses números que efetivamente existem são regidos por leis matemáticas. Se houver tais leis, segue-se que poderemos um dia prever a diversidade de outros lugares, de outros grupos de organismos. Dominar a complexidade por um meio tão econômico seria o coroamento da ecologia.

(Wilson, 1994)

Wilson segue dizendo que, infelizmente, não há essas leis (“não no sentido determinado pelos físicos e químicos”). Os ecossistemas são redes de organismos interligados, mas os caminhos e as etapas da ligação não é decifrável com rigor matemático. Ainda assim, é sempre possível colocar alguma ordem na incômoda complexidade, e é mesmo urgente Diversidade da vida é um impressionante manifesto

contra as extinções em massa provocadas pelos desajustes individuais e coletivos do cérebro humano, e devemos aplaudir Wilson em sua tentativa de compreender e nos ajudar a compreender. Talvez a relativa raridade da águia de cabeça branca indique que ela seja, mais que um símbolo da opulência norte-americana, uma “espécie-chave” (Wilson, op. cit.) em sua comunidade ecológica. A extinção ou a introdução de uma espécie dessa importância faz com que parte substancial da comunidade modifique-se drasticamente, promovendo tanto o declínio quanto a superabundância de outros membros, e há risco da comunidade desmoronar, como um castelo de cartas.

A lontra marinha (Enhydra lutris) vive preferencialmente em meio aos leitos de algas castanhas (Macrocystis pyrifera). Caçada até a quase extinção na costa oeste dos EUA, no século XIX, seu declínio deu lugar a uma rápida sucessão de novos eventos (Wilson, op. cit.). Os ouriços-do-mar, presa preferencial da lontra, superpovoaram os locais de onde esse animal desapareceu, e consumiram o tapete de algas castanhas, uma floresta marinha que sustentava dezenas de outras espécies de crustáceos, moluscos, peixes e outros organismos. Em um final feliz, e uma importante corroboração da importância de focos específicos de diversidade (mas não uma regra geral), os ambientalistas conseguiram reintroduzir a lontra nos locais originais, e o ecossistema se recuperou. Mas Wilson alerta que em outras comunidades o problema deve ser bem mais intricado, principalmente e infelizmente nas regiões mais importantes, que seguem a perversa correlação “positiva” entre biodiversidade e pobreza das populações humanas locais. Eu acrescentaria à excelente abordagem de Wilson que esses locais estão também política e emocionalmente mais distantes do interesse da comunidade internacional de cientistas, que, via de regra, nasceram ou construíram suas carreiras nos países mais ricos. A lontra é um testemunho vivo dessa desigualdade.

O exame dos dois recortes que fizemos na pergunta de Darwin sobre a “origem da diversidade” revelam que, como previra Darwin, continuamos a compreender pouco, ainda

que os processos relacionados à mera existência da diversidade (as “inter-relações”) não tenham deixado de ser importantes. Não segue dos cuidadosos relatos de Wilson que a própria diversidade e a sua teia de relações, ainda que algo frouxa e não regida por leis matemáticas, tenha um papel causal importante na dinâmica dos processo históricos de conservação, transformação e diversificação dos organismos-indivíduos e das linhagens, ou seja, em seu desenvolvimento e evolução? Aqui Wilson - e a ortodoxia - recua. Estivemos descrevendo a situação atual da diversidade e como se estabelecem teias ecológicas particulares, mas isso é tudo. A explicação da “origem das espécies” e da “origem do indivíduo”, diz a ortodoxia neodarwinista, é bem outro assunto. Diz Wilson:

O que impele a evolução? essa é uma pergunta que Darwin respondeu em essência e os biólogos do século XIX refinaram produzindo a síntese, conhecida como neodarwinismo (...) Respondê-la em linguagem moderna é descer além das espécies e subespécies, até os genes e cromossomos - às origens derradeiras da diversidade biológica, portanto.

(Wilson, op. cit.)

Veja que, aqui, Wilson categoricamente respondeu aos “pontos obscuros” de Darwin. A belíssima descida que fizemos com Wilson à diversidade em ação com as lupas da taxonomia e da ecologia, são, para Wilson, a descrição de uma situação, mais como uma fonte de questões a serem respondidas que de explicações. Wilson repete o mantra neodarwinista que evolução é igual a mudança na freqüência das configurações de genes e cromossomos em uma população, e diz que esse pensamento populacional é “uma decorrência inelutável da idéia de seleção natural, que é o cerne do darwinismo. Há outras causas da evolução, mas a seleção natural é, esmagadoramente, a dominante” (Wilson, op. cit.).

Em uma leitura inicial, parece que há algo fora do lugar no discurso acima, de Wilson. Como podem partículas fundamentais - as moléculas mestras do DNA - serem “a origem derradeira da diversidade”, e, ao mesmo tempo, a seleção natural ser “esmagadoramente”

dominante como causa da evolução? Só visualizamos a estrutura do quebra-cabeças quando encaixamos a peça da noção do genoma como uma representação da natureza. Como é a seleção quem decide que pacote genético vai ou não sobreviver, os genes da geração seguinte “representam” o ambiente vivido nas gerações passadas, e é esse genoma que irá “causar” o indivíduo resultante, em corpo (o fenótipo) e alma (as relações que ele irá manter com seu próprio ambiente de sobrevivência).

Essa é uma noção difícil de conciliar com o esquema geral e preferido de Darwin, não