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4.3.1 A evolução ontológica do humano ao símio

Qual é a idade da evolução humana? Tecnicamente, essa pergunta não deveria fazer sentido. Todos os organismos têm uma história comum que ultrapassa os 3,5 bilhões de anos, e a pergunta sobre a idade evolutiva de qualquer um deles implica o reductio quase ad absurdum que nos leva às origens da própria vida. E, se por “humano” tomarmos estritamente

o táxon Homo sapiens62, a sua evolução tem a mesma idade do surgimento dessa espécie, há cerca de 200 Kaa (mil anos atrás)63. Ainda assim, há um acordo bastante satisfatório do que, para fins práticos, entende-se por período evolutivo humano.

Até o início dos anos 70, a evolução humana tinha uma idade de até 30 milhões de anos e, para o investigador atual, essa evolução começou há cerca de 7 Maa (milhões de anos atrás). O que mudou foi o ponto de divergência de nossa própria linhagem com a linhagem- irmã sobrevivente. Isso não deve ser entendido superficialmente, ou muito de minha discussão

sobre a evolução da linguagem no contexto evolutivo humano tornar-se-á igualmente confusa. Na primeira metade do século XX, a linhagem humana era considerada o táxon-irmão da linhagem comum de todos os demais grandes símios - orangotangos, gorilas e chimpanzés - idéia tornada canônica graças a um artigo de um dos “arquitetos” da síntese neodarwinista, George G. Simpson (1945) sobre classificação dos mamíferos. Dada a antiguidade dos fósseis de grandes símios, isso significava, traduzido em nomenclatura e datação atuais, que a

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Em muitos textos importantes (p. ex., Jones, Martin and Pilbeam, 1992; Mithen, 2002) usa-se o nome sub- específico - H. sapiens sapiens - e o motivo alegado é diferenciar-nos do chamado “Homo sapiens arcaico”

(assim, sem nome sub-específico), ainda que esse organismo tenha um registro fóssil substancial (outros autores adotam o nome específico H. heidelbergensis prática que aplaudo e sigo aqui; Stringer and Mckie, 1996). Mais que um problema de nomenclatura, o atributo “arcaico” para o H. heidelbergensis está diretamente ligado à maior importância dada à mente, discutida na parte 4.2.4. O H. s. sapiens, mas não o sapiens “arcaico”, deixou

evidências de produção simbólica tal como a reconhecemos hoje, ainda que haja semelhança nos detalhes anatômicos com nossa própria espécie. Um organismo de transição na Grande Cadeia da Cognição.

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divergência teria ocorrido no período Paleogeno, há cerca de 30 Maa. A certeza da antiguidade foi reforçada nos anos 60 com a sugestão de Elwyn Simons e David Pilbeam que os antigos fósseis do gênero Ramapithecus estaria “do lado de cá” da divergência, ou seja, tratar-se-ia do membro de uma longa linhagem humana (Lewin, 1999). Como resultado de evidências moleculares, corroboradas por outras tantas evidências fósseis e análises morfológicas64, não apenas o Ramapithecus65 foi colocado do “lado de lá” da divisão, como a própria divisão sofreu uma série de costuras taxonômicas. Os grandes símios não mais podem ser o táxon-irmão do humano, pois esse é colocado agora firmemente dentro do táxon dos grandes símios. Se formos realizar divisões no táxon, a primeira será entre os orangotangos e o resto de nós, e, se tivermos de fazer um segundo recorte, esse será entre os gorilas e o resto de nós, permanecendo intacto um táxon humano-chimpanzé (Groves, 2001).

O início de nossa evolução avançou até 7 Maa, não por estarmos mais esclarecidos sobre quando surgiu a linhagem humana, mas porque, hoje, é a partir da divergência com os chimpanzés (e bonobos, a outra espécie do gênero Pan) que concordamos em realizar a

contagem. Não são quaisquer traços definidores da humanidade - bipedia, grandes cérebros e linguagem, para citar os mais citados66 - que delimitam o percurso evolutivo de nossa linhagem na literatura científica, mas a nossa relação com os demais taxa primatas. A diminuição da antigüidade de nossa linhagem, dos anos 60 para cá está diretamente relacionada à transformação de nós mesmos, de organismos evolutivamente distantes de outros clados primatas - humanos lato sensu - em símios sensu stricto.

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Vários estudos moleculares já foram realizados, da comparação de reações imunológicas a proteínas sangüíneas até a análise de diferenças no DNA nuclear ou mitocondrial (Sarich and Wilson, 1964; Miyamoto et al, 1988; Arnason et al, 1996; Gagneux et al, 1999). Em todos os casos fala-se de “calibração do relógio molecular”, a comparação de diferenças moleculares com outras evidências (fósseis, por exemplo) para o estabelecimento de datações absolutas. Tanto as análises moleculares quanto as anatômicas têm apontado consistentemente para o clado humano-chimpanzé, com os gorilas como grupo de fora (Shoshani et al, 1996; Gyenis, 2002).

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Hoje colocado no clado do orangotango e absorvido pelo gênero também extinto Sivapithecus (Andrews and Cronin, 1982; Lewin, 1999; Chaimanee et al, 2003).

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4.3.2 A redução epistemológica do símio ao humano

Estando de acordo sobre o início do percurso evolutivo humano, há duas maneiras de contar a história. Uma é seguir os próprios passos da evolução, e, a outra, discutir as mudanças nas atitudes científicas quanto a essa mesma evolução, estratégia adotada com competência por John Reader em seu Missing links: the hunt for the earliest man (1988). Como uma história das idéias sobre a evolução humana, mesmo sucinta, ocuparia mais espaço que o permitido pelo tema deste trabalho, decidi pela primeira estratégia, que tem a vantagem de deixar aberta a discussão sobre o porquê desse percurso descrito, e não algum outro. Como outro recurso para resumir a história, vou abordar pontualmente um “início” (de 6 a 7 Maa) um “meio” (de 2,5 a 1,5 Maa) e um “fim” (os últimos 500 mil anos). Os três momentos ilustram o tema-título desta pequena parte 4.3.2, de redução - nas narrativas hegemônicas - de um arbusto de espécies diversificadas de símios (onde, sem dúvida, há um ramo sapiens) a uma linha progressiva única, conduzindo do símio ao humano. Essa visão linear é instrumental na localização do caractere Linguagem em um ponto da série evolutiva.

4.3.3 Início: o andar de Toumaï

No deserto de Djurab, ao norte do Sahel, no Chade, fala-se, entre outros línguas, o goran. Em goran, a criança que nasce próxima da estação seca é chamada toumaï, “esperança de vida”. Assim foi apelidado o crânio encontrado na região, em 2001, por Michel Brunet e a Mission Paléoanthropologique Franco-Tchadienne (Brunet et al, 2002). O Sahelantropus tchadensis teve grande destaque na imprensa do mundo inteiro, em manchetes que, via de

regra, decretavam um “abalo à teoria da evolução” (Vianna, 2002). Exageros à parte, Toumaï de fato surpreendeu os investigadores, a começar por sua antigüidade.

Até há bem pouco tempo, a idade da evolução humana era ainda menor que a atual. Os pioneiros na aplicação do “relógio molecular” à distância Homo-Pan (ver pé-de-página no 64), Vincent Sarich e Alan Wilson (1964), sugeriram uma divergência de apenas 5 Maa. Diz Roger Lewin (texto publicado originalmente em 1998):

... a grande maioria dessas técnicas [as análises moleculares das últimas três décadas] sustentou uma ligação entre seres humanos e símios africanos e tem apontado uma época de divergência próxima a 5 milhões de anos, e, provavelmente, não mais antiga do que 6 milhões de anos. Esta descoberta está em concordância com o registro fóssil conhecido.

(Lewin, 1999)

Mas Toumaï - então desconhecido - tem entre 6 e 7 milhões de anos (datação pela fauna associada no registro fóssil; Burnet et al, op. cit.), e, portanto, ou é mais antigo que as marcas do relógio molecular, ou está bem próximo da linha divisória. O problema é que Toumaï possui vários traços associados à linhagem humana, como o tamanho relativo e padrão de desgaste dos dentes, sendo necessário acomodar a nova evidência fóssil às datas aceitas de divergência. E essa não é a história toda. Por mais diagnósticos que sejam os dentes, nenhum traço é mais decisivo, nesse início da marcha rumo à humanidade, que a bipedia. Andamos com dois pés e, demais primatas, de quatro, como nas antigas famílias Bimana e Quadrumana, usadas na classificação de Lamarck (1809) e por Darwin (1872). Em três casos famosos da paleoantropologia, criaturas de cérebro pequeno - Homo erectus, em 189167, Australopithecus africanus, em 1925, e A. afarensis, em 1978 - ganharam a batalha pela distinção humana

graças às evidências do andar bípede (Dart, 1925; Reader, 1988; Johanson and Edey, 1990).

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Batizado originalmente Pithecanthropus erectus por seu descobridor Eugene Dubois, uma história que ilustra os três caracteres distintivos discutidos aqui: bipedia, cérebro e linguagem. O gênero homenageava o ser “sem linguagem” de Haeckel, Pithecanthropus alalus. Dubois partilhava com Haeckel o sistema evolutivo de aumento matematicamente progressivo do cérebro, e via seu fóssil como a última etapa antes do humano, a exemplo do P. alalus. Mas Dubois sabia que era a evidência do andar ereto, e não uma suposição inescrutável de “não-linguagem”, que iria garantir a aceitação científica de seu fóssil, e optou pelo nome específico erectus

(Reader, 1988; Gould, 1993). Hoje colocamos esse fóssil no nosso gênero Homo, mas o nome específico

Sendo um crânio, Toumaï não apresenta estruturas diretamente envolvidas na locomoção, mas possui outros indicativos diagnósticos de bipedia68. Se os dados moleculares estão corretos (e eles vêm concordando com poucas variações há mais de 30 anos), mesmo ajustados no máximo de 7 Maa, Toumaï deixa-nos pouco tempo para as enormes mudanças estruturais associadas ao andar ereto. Dawkins (2004) sugere quatro alternativas para o dilema. Na primeira, Toumaï não é realmente bípede, e o problema “desaparece”.

A não-bipedia de Toumaï nasce das críticas dos descobridores de outro fóssil quase tão antigo, Orrorin tugenensis (Pickford and Senut, 2001). Disputas de prioridade à parte, a crítica revela dois preconceitos ligados ao tema da redução do símio ao humano. Com a participação de Milford Wolpoff, a equipe do Orrorin publicou um artigo intitulado Sahelanthropus or Sahelpithecus?” (Wolpoff et al, 2002), referência irônica à não- humanidade (ou simiidade) de Toumaï. Confundir um fóssil símio por humano é crime de lesa-paleoantropologia, ainda que, consensualmente, nós sejamos símios! O outro preconceito é a necessidade de uma linha única conduzindo ao humano, não havendo espaço para acomodar Orrorin e Toumaï no “Início” de nossa narrativa. Qualquer ramo lateral, mesmo quando ligado a um organismo moderno, é tratado como um “experimento fracassado” e, portanto, de valor reduzido na marcha condutora (e redutora) do símio ao humano.

De todo modo, Zollikofer e outros (2005) ofereceram um bom conjunto de evidências de bipedia a partir da análise do crânio (ver também a resposta de Brunet à crítica de Wolpoff, em Wolpoff et al, 2002). Pressupondo a bipedia de Toumaï, ficamos com as demais alternativas, que frustram as expectativas dos cientistas, mas apenas se insistirmos em ver o humano como o produto necessário de uma evolução progressiva. As alternativas são: a) a modificação estrutural foi realmente muito rápida; b) a bipedia surgiu mais de uma vez na

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Os indicativos são: um plano nucal mais achatado; o ângulo mais aberto formado entre o plano orbital e o

foramen magnum (a abertura na base do crânio por onde passa a espinha); e a posição mais central desse mesmo foramen magnun na base do crânio (Brunet et al, 2002; Wolpoff et al, 2002; Zollikofer et al, 2005).

história símia (Toumaï sendo um segundo exemplo, além de nós mesmos); e, c) o ancestral humano-chimpanzé era bípede, e o chimpanzé sofreu a mudança estrutural.

“Mudança rápida” não é uma explicação bem vista pela ortodoxia evolucionista, como já foi discutido nos capítulos 2 e 3 deste trabalho. O discurso neodarwinista coloca a evolução de caracteres complexos como uma tendência progressiva, passo-a-passo, e moldada direcionalmente pela seleção natural. Para um traço distintivo do humano, isso torna-se ainda mais importante, pois preferimos que o que “nos faz humanos” seja um avanço (e um avanço explicável) em relação a outros modos de vida. Pelo mesmo motivo, a alternativa de mais de uma linhagem bípede evoluindo paralelamente traz problemas para a idéia de evolução linear. A bipedia é, na notação ortodoxa, uma adaptação complexa e uma vantagem adaptativa humana (não por haver muito consenso sobre que vantagem seria essa, mas pelo fato de

apenas nós, e não outros símios atuais, andarmos eretos). Há uma vasta literatura sobre os benefícios da locomoção humana (Dawkins, 2004) e o “nicho bípede” é, nessa visão, prerrogativa nossa. A tendência, no meio científico, é duvidar de linhagens bípedes paralelas.

A última alternativa - de que nós e os chimpanzés temos um ancestral bípede - é talvez a mais desafiadora, não apenas para os cientistas, mas para todo um mito ocidental criado em torno da evolução do-macaco-ao-humano. Virando o mito de ponta-cabeça, essa alternativa diz “o macaco veio do homem”: de um antepassado humanóide surgiu uma linhagem chimpanzé que passou por extensas modificações. Para minimizar o choque cultural dessa mudança de perspectiva, evolucionistas falam da irreversibilidade de mudanças complexas (a “Lei de Dollo”; Dawkins, 2004), e parcimônia (somos os únicos Bimana em um universo Quadrumana). Mas várias linhagens evolutivas - mesmo a nossa - estão repletas de exemplos de caracteres revertidos e de modificações e conservações pouco parcimoniosas (ver, p. ex., evolução dos tetrápodes em Zimmer, 1998). A bipedia bem pode ser uma delas, e é bom lembrarmos disso ao falarmos de outros traços distintivos do humano, como grandes cérebros.

4.3.4 Meio: o cérebro de Zinj

Há 2,5 Maa surgiu um novo tipo de símio bípede, de cérebro grande e mais “ordens de intencionalidade”69 que qualquer outro organismo vivo, segundo as evidências arqueológicas de acampamentos e da indústria de artefatos líticos mais antiga da história. O Homo habilis prosperou com a fabricação de ferramentas, uma organização social mais complexa, rudimentos da linguagem, infância prolongada e mais longamente assistida, o início da divisão de tarefas e da caça coletiva (ou carniçaria coletiva, em segunda análise), incorporando a carne à dieta e permitindo que a energia gasta em grandes estômagos fosse redirecionada para o aumento do órgão cerebral, alimentando, recursivamente, os avanços cognitivos do habilis. Outro experimento de nossa linhagem, o Australopithecus, revelou-se um beco sem saída evolutivo, ao passo que o Homo evoluiu em direção a uma humanidade cada vez maior, que começa e termina em um grande cérebro.

O trecho acima é uma colagem das opiniões mais consensuais sobre o período da evolução humana que vai de 2,5 a 1,5 Maa e os processos auto-alimentadores envolvidos no modo de vida do Homo habilis70 (Leakey e Lewin, 1978; Johanson and Edey, 1990; Jones, Martin and Pilbeam, 1992; Leakey, 1997; Lewin, 1999; Mithen, 2002), o que, em linhas gerais, considero um quadro coerente. O que é questionável é que esse quadro, aliado à concepção de redução epistemológica de minha discussão, implica uma única espécie - nossa ancestral - sobressaindo nos cenários evolutivo e ecológico, graças ao diferencial cognitivo.

Nesse período, uma dezena de símios bípedes circulava pela África, algumas contemporâneas e até congruentes, como algumas espécies Homo e os Australopithecus “robustos” . O sítio sul-africano de Swartkrans, pesquisado por Robert Broom em 1948, revelou fósseis de A. robustus e H. ergaster. No leste da África, Mary e Louis Leakey desvendaram outra associação, entre o H. habilis e um australopitecíneo a que Louis chamou Zinjanthropus boisei, ou, do antigo nome árabe para os habitantes do leste africano, “Zinj”71

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O termo é de Daniel Dennet (1989), discutindo a inteligência social em humanos e outros primatas.

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Muitos autores atribuem alguns fósseis de habilis à espécie H. rudolfensis (Johanson and Blake, 1996), como é o caso do KNM-ER 1470, descoberto por Richard Leakey (Reader, 1988). Hoje há a segunda tendência de colocar o rudolfensis no gênero Kenyanthropus, após a descoberta do K. platyops, ancestral putativo do gênero Homo (Leakey et al, 2001; Aiello and Collard, 2001). Utilizei H. habilis no sentido tradicional de Homo antigo.

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Reader (1988). Muitos autores colocam Zinj e outros Australopithecus robustos - incluindo o A.boisei, o A.

Encontrado por Mary Leakey72 em 1959, na garganta de Olduvai, Tanzânia, Zinj é chamado “hiper-robusto”, por levar ao extremo uma característica comum em seu grupo: a forte mandíbula e os grandes dentes molares. Esses traços apontam para uma especialização dietária de valor energético relativamente baixo, como sementes e nozes. A análise da dentição dos espécimes sugere também um padrão de maturação mais rápido que no humano e mais próximo do chimpanzé, com várias implicações para o ambiente de aprendizado no grupo. Finalmente, a capacidade craniana é relativamente pequena, cerca de 500cc, contra 400cc do chimpanzé (e dos bípedes mais antigos) e cerca de 700cc do H. habilis (Lewin, 1999). No modelo bem aceito de Leslie Aiello, complexidade cognitiva está diretamente ligada à dieta: um órgão “caro” como o cérebro só vai se desenvolver às custas da diminuição correlata do estômago e um consumo energético mais proveitoso (Aiello and Wheeler , 1995). Em outro ponto desse circuito cognitivo - a obtenção do alimento necessário e o resultado de uma mente mais aguda - está a fabricação de ferramentas. Como em outros casos, acima das evidências estão fortes pressupostos da comunidade científica. Nos sítios em que foram encontrados os robustos há também artefatos, mas esse bípedes, de cérebros diminutos e descartados da linha evolutiva principal, não podem ser os fabricantes. Espera-se sempre encontrar um fóssil Homo para cumprir o papel. A associação entre Homo e robustos levou muitos investigadores a propor um modelo ecológico em que os segundos eram presas dos primeiros, os ajuntamentos como “abatedouros” de nossos ancestrais (Lewin, 1999). Um importante estudo de Charles Brain (1981) em Swartkram revelou outra história: A. robustos e H. ergaster eram, igualmente, presas de outra criatura de cérebro ainda menor, o leopardo.

Quando foi encontrado em Olduvai, um sítio famoso pela riqueza de utensílios de pedra, Zinj transformou-se em um problema para Louis Leakey que, como tantos outros colegas, esperava uma linhagem de cérebros grandes para associar aos artefatos. Essa é a razão da

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Louis, mesmo assim, publicou um artigo na revista Current Anthropology no ano seguinte, com o sub-título “the discovery by L.S.B. Leakey of Zinjanthropus Boisei” (Leakey, 1960).

escolha do gênero Zinjanthropus: distingui-lo do “ramo lateral” dos australopitecíneos, ainda que fosse difícil algum profissional duvidar das afinidades de Zinj com os bípedes robustos. Os Leakey encontraram fósseis de habilis em Olduvai no ano seguinte, e livraram-se do duplo problema da identidade de Zinj e da identidade do fabricante de ferramentas (Reader, 1988).

Podemos aceitar a fabricação de ferramentas como um modo de vida Homo típico, mas antes de corroborar o percurso redutor do símio ao humano, e o grande cérebro, a cognição e a cultura como elementos de sucesso do clado, é preciso dar conta da diversificação dos símios bípedes do Plioceno. A partir de um ancestral comum - segundo o consenso, um tipo “grácil” de australopitecíneo (Johanson and Blake, 1996; Lewin, 1999) - os clados Homo e robusto prosperaram por um longo tempo, mas com algumas diferenças importantes.

Figura 1 - Bípedes do Plioceno tardio e suas relações evolutivas (adaptado de Johanson and Blake, 1996)

(Obs: tabela original reproduzida parcialmente, e acrescentada a espécie A. garhi, segundo informações de Asfaw et al (1999)

A conclusão usual de que o H. habilis “evoluiu”, e, os robustos são um experimento fracassado ignora o fato de que os taxa robustos tiveram uma sobrevida média maior que as espécies Homo em sua época (ver Figura 1, acima). Como clado ou como espécies-indivíduos, os robustos foram tão ou mais bem sucedidos que o Homo. O H. habilis, por exemplo, tinha

um modo de vida adequado às suas condições de existência, mas o fato de conservarmos esse modo de vida (em alguns aspectos, e até certo ponto) não significa a sobrevivência daquele táxon, em nenhum sentido cientificamente importante. Segundo o registro fóssil, o habilis está tão extinto quanto Zinj. E a fauna bípede do Plioceno tardio não se resumia aos robustos, mas há evidências, nesse período, de representantes dos australopitecíneos gráceis, como o A. africanus (às vezes considerado ancestral nosso e dos robustos; Lewin, 1999) e o A. garhi,

esse último talvez um fabricante de ferramentas de pedra (Asfaw et al, 1999; Groves, 1999). Um modo de vida australopitecíneo - o andar bípede, grupos sociais menores, maturação mais rápida, dentes relativamente maiores, vegetarianismo predominante e alguma insetivoria (com a modificação de ferramentas ósseas para a “pesca” de cupins: outra surpresa desenterrada em Swartkrans; Backwell and d'Errico, 2001), provavelmente alguma carnivoria (Johanson and Blake, 1996) e talvez uma indústria lítica - tão produzido quanto produtor de cérebros pequenos, teve uma duração atestada de pelo menos 5 milhões de anos, de Toumaï a Zinj, e esse é o dobro do caminho percorrido, até agora, pelo modo de vida Homo. Mas não é a longevidade dos australopithecus que deve guiar um questionamento ao sucesso relativo dos grandes cérebros, mas a diversidade, e ela nunca foi tão grande, para os símios bípedes, quanto há dois milhões e meio de anos atrás.

4.3.5 Fim: a linguagem do Gnomo

A diversidade dos símios bípedes é atestada no registro fóssil para o Plioceno tardio, e em grau menor para outros períodos, com a exceção de dois momentos bastante precisos do percurso da linhagem. Mesmo que a bipedia tenha ocorrido mais de uma vez entre os símios, o clado sobre que estamos falando - o clado que divergiu dos chimpanzés há 7 Maa - só pode

O outro momento de “diversidade zero” são os últimos 13 mil anos da nossa história, em que, segundo as evidências (negativas, diga-se), o H. sapiens é o único ramo sobrevivente da linhagem de símios bípedes. Essa situação cria uma tendência interpretativa, que Stephen Jay Gould chamou de “o pequeno gracejo da vida” (“Life´s little joke”; Gould, 1987). Ao lado de toda uma história do pensamento ocidental de construção da escala evolutiva, e da